A partir do golpe militar de 1964, a figura dos censores passou a frequentar gradativamente as redações de jornais brasileiros. Jornalistas foram perseguidos e matérias barradas sem qualquer justificativa. Ignácio de Loyola Brandão, que à época era auxiliar de editor do Última Hora em São Paulo, de repente se viu na função de editor-chefe aos 28 anos, pois o antigo ocupante do cargo havia desaparecido.
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“A redação tinha sido depredada depois do 1º de abril (primeiro dia da ditadura no Brasil). Muitos jornalistas fugiram e outros foram presos. O jornal só voltou a funcionar em 17 de abril”, lembra o jornalista e escritor de Araraquara (SP). “Quando voltamos a trabalhar, chegou um homem e disse: ‘A partir de hoje, cada página que você fechar, você me passa, porque eu quero ver a matéria’. Perguntei: 'Por quê?'. Ele respondeu: ‘Eu não sou nada da redação. Sou do governo. Nós é que sabemos o que pode ou não ser publicado’”, acrescentou.
Ignácio via matérias censuradas diariamente e não entendia o critério: havia dias em que reportagens sobre política e polícia passavam, enquanto alguma de gastronomia era vetada. “Quando eu perguntei para o censor, ele disse que, se eu perguntasse novamente, seria preso”, conta.
De maneira intuitiva, o jornalista passou a guardar todo o material proibido. Em 10 anos, acumulou mais de mil páginas e, por sugestão de uma amiga, decidiu transformá-las em um romance. Assim nasceu “Zero”, um dos livros mais peculiares da literatura brasileira, cuja edição brasileira completa 50 anos neste 2025.
Matador de ratos
Para amarrar as histórias das matérias censuradas, Ignácio criou o personagem José. E, para não bater de frente com o governo de forma tão direta, decidiu ambientar a narrativa em um país da “América Latíndia”, continente fictício localizado abaixo dos Estados Unidos.
O país em que se passa a história sofreu um golpe de Estado e, desde então, vive sob o autoritarismo. José, um homem de classe baixa cuja profissão é matar ratos em um dos cinemas da cidade, se revolta contra o regime e entra para a luta armada.
A narrativa, no entanto, é fragmentada. Ignácio mistura prosa em terceira pessoa com colagens de desenhos, manchetes da época e relatórios. Em alguns trechos, o foco narrativo muda da terceira para a primeira pessoa, e a história ganha ares de delírio.
Também são recorrentes as onomatopeias e os diferentes tipos e tamanhos de fonte – como o enorme “PAM”, que ocupa duas páginas para representar uma explosão. Em outras passagens, o texto se divide em colunas, com uma delas contando determinada história, enquanto a outra narra outra, sem relação com a anterior.
Tudo isso fez de “Zero” uma espécie de mosaico que reflete o Brasil sob a ditadura militar: caótico, desconexo da realidade e, sobretudo, estilhaçado.
“Obviamente, nenhuma editora quis publicar o livro. Não só pelo medo da reação do governo, mas também pelo enorme trabalho gráfico que teriam”, diz Ignácio, sem rancor. “Eu também não tinha muita expectativa com esse romance. Tinha certeza de que seria um fracasso absoluto. Quem se interessaria por um livro sem estrutura, sem começo, sem meio e sem fim, onde tudo é caos? Mas é um caos porque o Brasil era um caos naquele momento”, ressalta.
Edição italiana
Isso era em 1974. No ano seguinte, o dramaturgo e amigo do autor, Jorge Andrade, estava indo para a Itália e perguntou se poderia levar o original de “Zero” para tentar publicá-lo. No país europeu, conheceu a professora universitária Luciana Pelugi, que se interessou pelo livro e conseguiu viabilizar a publicação por intermédio do romancista Antônio Tabucchi (1943-2012), então seu aluno.
“Zero” foi publicado em português na Itália e, no ano seguinte, a editora Brasília/Rio topou lançá-lo no Brasil. Pouco depois, contudo, o romance foi censurado pelo governo militar. O livro não precisou ser retirado das livrarias, mas ficou proibido de ser reeditado ou reimpresso.
Ignácio consultou um advogado para saber quais providências poderia tomar. Descobriu que, se a censura fosse por atentado à moral e aos bons costumes, a situação poderia ser revertida. Mas, se fosse por motivos políticos, dificilmente conseguiria mudar a decisão do governo.
“Quando eu fui olhar o processo, vi que tinha gabaritado o código penal. Tudo de ruim e que não prestava para o governo tinha no livro”, afirma o autor, lembrando que, além da crítica política, o romance também contém descrições de sexo que foram consideradas atentado à moral.
A censura de “Zero” só caiu em 1978, com a Lei da Anistia e após um abaixo-assinado de brasileiros pela liberação da obra. No entanto, passados 50 anos desde a primeira publicação no país, o Brasil fragmentado, cruel, caótico e distópico criado por Ignácio ainda guarda semelhanças com o contemporâneo.
Ao leitor, o que permanece é a vontade de repetir o desabafo do narrador no final do livro, em que, pelo simples uso da vírgula, muda-se todo o sentido da famigerada frase: “Deus, salve a América”.
“ZERO”
• De Ignácio de Loyola Brandão
• Global Editora
• 304 páginas
• Preço: R$ 90
