Mia Couto costuma dizer que não escreve pensando em um público específico. Por isso, segundo o escritor, “O rio infinito”, que ele lança agora no Brasil pela Companhia das Letras, com ilustrações de Danuta Wojciechowska, não pode ser classificado como livro infantil. “Escrevo para alguém que, dentro de mim, me dá licença para conversar com a escrita”, afirma o escritor, em entrevista por e-mail.
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“Não sei se existe uma entidade chamada ‘as crianças’. Lembro-me de uma bibliotecária que se queixava de receber pedidos sobre livros adequados para crianças de 9 a 10 anos. Ela respondia: 'E você sabe qual é o livro adequado para pessoas entre 35 e 40 anos?'”, comenta.
O autor moçambicano, que estará em Belo Horizonte nesta segunda-feira (20/10) para participar do Sempre um Papo – TCE Cultural, reconhece, no entanto, que existem formas de compreensão marcadas pela idade e que cada leitor tem seu entendimento individual, embora, segundo ele, a linguagem poética permita que crianças criem relações mais lúdicas com a palavra possivelmente mais livres do que os adultos.
É essa relação que Mia Couto procura estimular com “O rio infinito”. Inspirada em uma lenda africana, a trama acompanha Kianda, seu marido Kalunga e os três filhos. A família é pobre, mas tem um quê de magia – Kalunga, por exemplo, transforma pedaços de madeira em figuras de pessoas e animais que ganham vida própria.
Durante um inverno rigoroso, o Sol desaparece, mergulhando o mundo na escuridão e no frio, levando a família à beira da fome. Kianda decide que é vital contar histórias às crianças para alimentá-las, mas, como a família não conhece nenhuma, parte pelo mundo em busca delas.
Reis do oceano
Ao longo da jornada, Kianda encontra diversos animais da savana, mas todos se recusam a contar histórias, por medo ou pressa. Finalmente, ela encontra uma tartaruga gigante em uma praia, que a leva ao fundo do mar, lar dos espíritos do oceano, que possuem histórias para compartilhar.
No fundo do mar, Kianda encontra o rei e a rainha do oceano. Eles concordam em lhe dar histórias, mas pedem em troca que ela mostre como é o mundo que fica acima do mar. De volta à terra, Kianda pede a Kalunga que escolha sua mais bela escultura e a leva ao fundo do mar. Impressionados, o rei e a rainha do mar entregam a Kianda um enorme búzio, que permite que qualquer um ouça histórias ao encostá-lo no ouvido.
Ao voltar para casa, Kianda entrega o búzio aos filhos, que ficam fascinados com as histórias e se reencontram em si mesmos. Assim, o Sol retorna à savana, encerrando o período de escuridão, fome e frio.
“Este livro se inspira em uma lenda dos povos do litoral da África do Sul. Mas o que a lenda exalta é universal: a importância de encontrar histórias que nos humanizam e de eternizá-las como vínculo para construir sentido para o mundo”, afirma Mia Couto.
“Acho que as crianças – ou mesmo a criança que ainda mora em nós – podem nos ensinar sobre o que é a casa. Nossa casa original não é apenas um lugar físico, mas um espaço de vozes e silêncios onde começamos a nos formar”, acrescenta o escritor.
Reconstrução do passado
O último lançamento do autor no Brasil foi “A cegueira do rio”, também pela Companhia das Letras, em outubro do ano passado. Ambientada no Norte de Moçambique, na região do Niassa, que faz fronteira com a Tanzânia pelo Rio Rovuma, a trama é inspirada na Revolta dos Maji-Maji, que deu início a um conflito armado contra o domínio colonial alemão na África Oriental.
Em formato que lembra um documentário, a narrativa se divide em múltiplas vozes, incluindo o narrador em terceira pessoa, o militar Nataniel Jalasi, o médico alemão Hadrian Schreiber, a aristocrata Constança Sá de Meireles e a profetisa Aluzi Msafiri.
“A revolta dos Maji-Maji é muito conhecida na Tanzânia, mas do nosso lado essa lembrança foi apagada. Muitas pessoas em Moçambique foram assassinadas quando a revolta foi esmagada pelos colonizadores alemães. Escolhi esse ponto de partida porque havia um silêncio imposto, um apagamento que me parecia importante evocar”, explica o escritor.
Durante a escrita, ele esteve no Norte de Moçambique, na província de Niassa. Embora já tivesse pesquisado em livros, optou por se instalar em regiões de difícil acesso para recolher elementos da tradição oral local. “As pessoas reconstroem o passado, e é nesse processo de falsificação da chamada ‘realidade’ que encontro inspiração para escrever”, destaca.
Mia Couto garante que não busca “ancestralidade” como algo perdido em sua literatura. “Em Moçambique, esse passado não passou. Está vivo, recriado nas línguas indígenas ainda faladas pela maioria da população. A dimensão colonial da relação entre africanos e europeus não é coisa do passado, a desigualdade apenas mudou de formato”.
SEMPRE UM PAPO
Com Mia Couto. Nesta segunda-feira (20/10), às 19h, no Auditório do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (Av. Raja Gabáglia, 1.315 – Luxemburgo). Entrada franca.
“O RIO INFINITO”
De Mia Couto
Ilustração: Danuta Wojciechowska
Companhia das Letrinhas
32 páginas
Preço: R$ 59,90
