Artista traduz na tela "Pé-de-urucum" um sonho que teve
Tela da mineira Daiely Gonçalves integra a exposição "Plantar memórias, colher futuros", em cartaz no Museu de Artes e Ofícios até esta sexta (28/2)
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Siga noOs sonhos podem nos ajudar a conhecer nossas origens? Eles nos ajudam a compreender o futuro? São sementes da vida que desejamos para nós?
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Quando você sonha, compartilha o sonho com alguém próximo? Contaria seu sonho em sua comunidade? A artista Daiely Gonçalves traduziu um de seus sonhos em uma pintura e deu-lhe o título “Pé-de-urucum”.
À beira do rio, um imponente pé de urucum se erguia, com seus frutos e sementes. O urucum, que faz parte da cultura brasileira, é originário das práticas indígenas, desde a pintura corporal e seus grafismos até os temperos que enriquecem nossa gastronomia. Além disso, o urucum exerce um papel de proteção na cosmopercepção indígena.
A tela “Pé-de-urucum”, de Daiely, é um gesto limiar, uma travessia, um rito de passagem. Ela retoma, por meio da pintura, as histórias entrelaçadas ao seu cenário cultural, no percurso de Coroaci a Belo Horizonte e vice-versa.
Esse trajeto é narrado pelas vozes das mulheres e artistas da sua família, com suas histórias contadas e recontadas no aconchego da cozinha, seu espaço de memória, e nas brincadeiras no quintal, seu território de invenção.
Os fios das histórias formam as linhas que tecem as memórias de quem migrou do interior para a capital, percorrendo as estradas do sertão, às margens do rio, até as ruas da cidade. Em meio a esse ir e vir constante, destacam-se as visitas à casa da avó, as lembranças das brincadeiras e os brinquedos inventados por ela — como o apito de mamão, presente em uma das telas de Daiely, que retrata o espaço das fabulações da infância.
Lembranças
Ao contar as histórias das vivências de sua família, especialmente de sua mãe e avós, Daiely realiza na pintura um trabalho de salvaguarda, registrando as marcas, os traços, as linhas e as cores que formam as camadas de lembranças e esquecimentos de sua memória afro-indígena.
A artista reconhece nas sabedorias ancestrais de sua avó, desde o trançado da palha até o preparo do acaçá, os marcadores de suas heranças culturais.
Daiely investiga as múltiplas temporalidades de uma cena familiar, mexendo nos anacronismos das imagens, esmiuçando cuidadosamente as dimensões das sobrevivências visíveis e invisíveis da convivência e das transmissões de experiências.
Ela sobrepõe presenças e ausências, incompletudes e saudades, os ditos e os não ditos. Sua obra nos convida a refletir sobre a possibilidade de imaginarmos a realidade e nos conhecermos melhor por meio de seu sonho com o pé-de-urucum.
A exposição “Plantar memórias, colher futuros”, em cartaz no Museu de Artes e Ofícios, com curadoria de Letícia Reis, nos convida a mergulhar nesse sonho. Ela nos convida a plantar o pé de urucum, colher seus frutos, separar as sementes, triturá-las, se necessário, e depois cozinhá-las. Entre os povos indígenas, as mulheres são as detentoras do conhecimento sobre a colheita e a produção da tinta vermelha.
O vermelho do urucum, base para a pintura corporal, oferece flexibilidade, força e proteção. Ele é uma arte do existir e da resistência, um cuidado e um ato de cura. “Plantar memórias, colher futuros” é também aprender os significados e as complexidades das pinturas indígenas.
Conhecer os grafismos de cada etnia pode ser parte do caminho de Daiely Gonçalves, que se dedica a um repertório de referências e criações, a um "corpo que aprende e vive é um atravessamento dos caminhos do tempo".
Pertencimento
Para Daiely, a construção do pertencimento se faz por meio do trabalho das mãos que operam as memórias. Por isso, a tela “Pé-de-urucum” é uma obra que não apenas reflete um sonho, mas também traduz o gesto de tocar com as mãos em busca de um pertencimento indígena, de olhar para a terra, de pisar em seu território cultural com os próprios pés e deixar fluir um grafismo, um desenho, uma pintura que expresse o sentimento de retomar seu lugar como artista afro-indígena.
Às mulheres, ao Matriarcado Pindorama, às Yabas, às mais velhas, às que lutam, às que sonham, às que resistem, às que insistem, às que nos contam histórias, às que nos transmitem o patrimônio cultural e seus conhecimentos, a todas as vivências compartilhadas, nosso respeito.
Daiely nos conduz por meio do portal do pé-de-urucum, como uma miçanga preservada, uma joia de camafeu, nos revelando as histórias cotidianas da presença fundamental das mulheres afro-indígenas em nossas vidas. Agradecemos ao artista-curador Benício Pitaguary (1993 – 2022).
*Doutora em História da Arte pela Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne e professora em Teoria, Crítica e História da Arte na Escola de Belas Artes da UFMG.
“PLANTAR MEMÓRIAS, COLHER FUTUROS”
Exposição individual de Dailey Gonçalves. Curadoria: Letícia Reis. Em cartaz até esta sexta-feira (28/2), no Museu de Artes e Ofícios (Praça Rui Barbosa, 600 - Centro). Visitação das 11h às 17h, com entrada até as 16h30. Entrada gratuita.