João Bosco trabalhou ao lado do filho Francisco Bosco e de outros parceiros de longa data na composição do disco -  (crédito: Victor Correa / divulgação)

João Bosco trabalhou ao lado do filho Francisco Bosco e de outros parceiros de longa data na composição do disco

crédito: Victor Correa / divulgação

João Bosco acredita. Ele vislumbra um futuro de abundância, livre de desigualdades, não porque algo aponte objetivamente para isso, mas porque considera que é necessário sonhar e buscar. O ponto de partida em direção a esse lugar, no entanto, é uma terra arrasada, que agoniza. Em linhas gerais, esse é o caminho que percorre seu novo álbum, “Boca cheia de frutas”, que chega nesta sexta-feira (10/5) às plataformas.

 

O disco traz 11 faixas, sendo que 10 são composições inéditas de João: uma instrumental, que ele assina sozinho; sete escritas com o filho, Francisco Bosco, responsável, com o pai, pela concepção do álbum; uma parceria com Roque Ferreira; uma com Aldir Blanc (1946-2020), a partir de uma letra deixada pelo amigo; e uma releitura de "O cio da Terra", clássico de Milton Nascimento e Chico Buarque.

 

A ancestralidade de matriz africana, desde sempre presente na obra de João, divide espaço, neste trabalho, com os saberes, vivências e culturas dos povos originários. Para o artista, o futuro de bonança está necessariamente enraizado no passado. Na entrevista a seguir, João Bosco fala sobre a criação do novo trabalho.

 

 

Como se deu essa concepção compartilhada de “Boca cheia de frutas” entre você e Francisco Bosco? Qual o ponto de partida e que caminhos foram percorridos para se chegar a esse novo trabalho?

Em música popular, é muito difícil a gente ter a noção de um momento que seja o marco de iniciação de um novo trabalho. É muito subjetivo, porque, na verdade, sou um músico com uma atividade intensa no dia a dia. Estou viajando, fazendo shows, experimentando coisas com aqueles que compartilham minha música comigo; estou no hotel, na rua, ouvindo alguma coisa acidentalmente num táxi, e a inspiração pode vir de qualquer um desses lugares. É um processo enigmático. Tem uma canção do disco, “Vir-a-ser”, que fala sobre isso, essa “esfinge de antemão”, que nada revela, mas que também não esconde. Nem sei quantos discos já gravei, dezenas, e nos meus 77 anos de vida, isso é uma história que se repete. Lembro do Drummond dizer uma coisa que acho linda: ele intuía que um poema estava por vir quando sentia a temperatura do corpo se modificar. São sintomas, sinais. Acho lindo isso, porque todos temos sinais de que algo está vindo, e cada um sente isso de uma maneira diferente. Guimarães Rosa também falava sobre isso, que os sinais, geralmente, tinham sua origem debaixo do barro do chão, querendo dizer da questão da nação, de onde você pisa, onde nasce, onde mora, onde forma sua personalidade, onde se cria. Esses sinais são captados de alguma maneira por antenas especiais. São apenas dois grandes artistas, criadores, coincidentemente ambos mineiros, mas falando que sinais existem, e há maneiras de se senti-los. Acho que senti que esse disco estava vindo na música “Canto da Terra por um fio”. Tanto que logo fizemos uma gravação, só eu e o Jaques Morelenbaum, um amigo de muitas décadas, que trabalhou comigo de forma sublime em "Benguelê", a trilha sonora para o Grupo Corpo, e em vários discos meus. Eu o convidei para entender comigo essa canção. Gravamos o que se chama de single, esse prenúncio de que algo maior está vindo. A partir dali, soube que algo estava em marcha.

 

É correto dizer que “O canto da Terra por um fio” e “O cio da terra” são as balizas desse álbum, os extremos por entre os quais ele flui?

Com certeza. “O cio da Terra” veio a partir de “O canto da Terra por um fio”, que já tem logo nos versos iniciais um mantra yanomami, “waruku waruku waruku këëi moramak, waruku waruku waruku këëi”, que quer dizer “boca cheia, boca cheia, boca cheia, boca cheia de frutas, boca cheia, boca cheia”. Naturalmente, esse canto nos remete a um planeta de abundância, a uma terra frutífera, uma terra fecundada, uma terra que é tratada com o devido respeito, pelo tanto que ela nos dá. O “Canto da Terra por um fio” não tem a utopia que existe em “O cio da terra”, pelo contrário, é distópico, mas vai dar no “Cio da Terra”, porque é um caminho de reflexão. Lembro que no “Zona de fronteira” (1991), com Waly Salomão e Antônio Cícero, começava com “rei sei que sou, sei que fui, serei sempre Obá, de algum reino para se descobrir”. Algo que está por ser descoberto já está explodindo, nem foi erguido e já está desmoronando. E lá na frente, a canção diz “sim, bem em cima do Barril, exato na zona de fronteira, eu improviso o Brasil”. Todo artista faz isso, improvisa um país. Essa reflexão está aí, improvisada nas 11 faixas de “Boca cheia de frutas”. E ela começa com certo ceticismo, com a distopia, mas termina com a boca cheia de frutas após o “Cio da Terra”.

 

 

Nesse sentido, “Boca cheia de frutas” é um álbum propositivo?

Se não acreditarmos em utopias, sonhos e realizações, vamos acreditar em quê? Outro grande mineiro, Darcy Ribeiro, dizia que nós devemos nos orgulhar dos nossos fracassos – ele está dizendo o seguinte: os fracassos fazem parte da vontade de prosseguirmos e tentarmos algo novo. Mesmo considerando que não vá dar certo, a tentativa é fundamental, o sonho de perseguir uma ideia é o que interessa. O disco termina com essa utopia, com essa busca pela realização do sonho. Se isso resultar em fracasso, paciência, tentemos de novo; o que não podemos é deixar de procurar.

 

Que homenagens são essas que o disco presta – a Aldir, Tom Jobim, João Gilberto? Como esses artistas se inserem no conceito de “Boca cheia de frutas”?

Em cada disco que a gente grava existe uma presença, ancestral ou mesmo contemporânea, como referência. Num disco aparecem algumas, noutro aparecem outras. Neste "Boca cheia de frutas" tem o Jobim. Faço uma alusão a um disco dele, o "The composer of 'Desafinado' plays", que foi o primeiro que ele gravou nos Estados Unidos, em 1963. O Tom tinha duas músicas conhecidas nos EUA, "Desafinado" e "Garota de Ipanema". Tinha ali o Jobim ao piano, ao violão, e foi naquele momento que ele foi apresentado a um arranjador de cordas, Claus Ogerman. Para quem conhece bem esse disco – eu convivi muito com ele na época em que estudava em Ouro Preto – é fácil perceber que Jobim usa muito a mão direita ao piano, porque a esquerda ele reservava para o violão. É um disco suave, com cordas, é acústico, com baixo acústico, piano, flautas, violão e trombone. Fiz uma homenagem ao som por meio dessa reflexão sonora. Dois ou três meses depois desse disco, o mesmo produtor, Creed Taylor, formatou o "Getz/Gilberto", que tem o Jobim ao piano. "The composer of 'Desafinado' plays" é um disco instrumental. Por isso minha homenagem ao Tom (com a faixa “Sobre Tom”) é uma música instrumental, com a mesma formação, Cristóvão Bastos tocando só com a mão direita e todo o restante do arranjo.

 

E com relação a João Gilberto e outros ícones da MPB que, de alguma forma, orbitam esse trabalho?

A presença do João Gilberto se traduz no "Samba sonhado". João foi uma grande antena de sambas antigos, das décadas de 30, 40 e 50, que ele trouxe para um repertório dele, atual, o que é parecido com o que estamos fazendo nesse disco: nos baseando tanto na ancestralidade indígena quanto na africana no Brasil, uma ancestralidade contemporânea até, já que Martinho (da Vila) já pode ser considerado, como compositor, um contemporâneo que está aí há décadas. Zeca (Pagodinho) também é um artista que está muito marcado por compositores ancestrais, como é o caso do Manacéa, da Velha Guarda da Portela, do Monarco e etc. Candeia é a mesma coisa e Clementina nem se fala, é a própria ancestralidade, porque trazia no seu canto aquilo que já havia se perdido no caminho. Graças a ela, se pôde resgatar uma série de situações afro-brasileiras que tanto nos tem sido útil, como o próprio partido alto "Vai pro lado de lá", em que Candeia contribuiu com versos novos. Isso está num samba, o "Dinossauros da Candelária", que é o combustível fóssil desse disco. João Gilberto praticava isso. Em "Samba sonhado" trago explicitamente o samba "Isaura", do Herivelto Martins, gravado por João Gilberto e Miúcha, que trata da condição do trabalhador brasileiro, que é muito pressionado pelo pouco tempo que lhe sobra para se dedicar ao lazer e ao amor, duas coisas que andam juntas – “Se eu cair em seus braços, não há despertador que me faça acordar". Estamos, no "Samba sonhado", a falar desse magnífico trabalho de resgate de João. "Isaura" me diz muito e me comove muito, me traz muita alegria, muita vontade de viver, é um samba muito transformador. Ele e "Dinossauros da Candelária" falam a mesma coisa. Tinha a combinação com Zeca e Martinho de fazer esse samba, o "Dinossauros da Candelária", só que marcamos para o dia de Cosme e Damião, e Zeca não podia ir porque tinha que estar em Xerém entregando balas, doces, para as crianças. Passei uma mensagem para a pessoa que ia transmitir o recado para o Martinho, e ele acabou indo sozinho para o lugar que tínhamos combinado. No dia seguinte, ele mandou um recado dizendo que estava lá, esperando por Zeca e João. Acabei fazendo o samba "Dinossauros da Candelária" com Francisco; e era um samba para ter Pagodinho e Martinho. “Me vi só com meu pinho, pedindo aos orixás para vir nos socorrer”. Mas agora temos um compromisso de fazer outro.

 

Os arranjos chamam a atenção, desde uns muito encorpados, com cordas orquestrais, até outros bem enxutos, com um, dois, no máximo quatro instrumentos. O que determina essas opções de vestimenta das músicas?

Os arranjos são as próprias canções que dizem isso, elas vão definindo isso à medida que vão surgindo. No samba "Gurufim” – uma despedida para o Aldir que não pudemos realizar na época, por conta da pandemia –, eu e Chico fizemos isso da maneira como Aldir pedia. Gurufim é um ritual africano onde se despede com alegria, com festa. Minha parceria com ele é uma coisa muito íntima, muito pessoal, então quis gravar sozinho ao violão. No "Samba sonhado", quis gravar como João Gilberto fez várias vezes, começando com acompanhamento só de cordas, depois entrando baixo e bateria. Esse é um disco que tem uma fluidez de uma canção para outra que é difícil de conseguir, e acho que nele eu consegui. Não acontece com todos os meus discos.

 

“BOCA CHEIA DE FRUTAS”
• João Bosco
• Som Livre / MP,B Produções (11 faixas)
• Disponível nas plataformas digitais a partir desta sexta (10/5)