A pós-verdade nas bolhas digitais
Estamos sendo "influenciados" por algoritmos pensados para nos fazer "felizes" ... e não sujeitos críticos
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Às vezes, olho para a realidade e custo a acreditar que, em pleno século 21, ainda precisemos explicar coisas que já estão mais que assentadas e fundamentadas pela ciência ou pela realidade social. Não são poucas as pessoas que, sem qualquer dado empírico ou lógico, decidem sobre questões relevantes, deixando-se guiar unicamente por suas crenças pessoais e por suas emoções. Os inúmeros séculos de pesquisas realizadas para analisar cada pequena parte da realidade são simplesmente desprezados. Por arrogância? Talvez, mas não necessariamente.
O dramaturgo sérvio-americano, Steve Tesich, denominou de pós-verdade uma espécie do que ele chamou de autodemolição da verdade pública. Em seu ensaio, escrito em 1992, intitulado, em livre tradução, “O governo mente”, Tesich analisa o contexto norte-americano e conclui que aquele povo preferia acreditar em boatos ou leituras parciais da realidade do que renunciar às suas convicções pessoais. Ele defende no ensaio que os norte-americanos mudaram de uma cidadania crítica para um conforto apático, que aceita as narrativas oficiais ou midiáticas sem muita reflexão, e isso acontecia não porque sofreram alguma coerção, mas por puro cansaço moral.
Segundo o autor, na pós-verdade, os fatos são o menos relevante. Se houver um choque entre aquilo que a pessoa acredita e aquilo que os próprios olhos veem, ela preferirá reafirmar suas convicções a pôr em dúvida seu sistema de crenças. Não se trata de falta de informação, mas de um cansaço de estar sempre no papel de julgador da realidade. Isso dá trabalho e exige esforço e disposição moral, justamente o que, na análise de Tesich, estamos cansados de fazer. Segundo ele, preferimos nos guiar cegamente por nossas convicções, algumas já há muito assentadas, a nos abrir para uma compreensão Da realidade, na qual as diferentes vozes possam ser consideradas.
Em 1992, quando o artigo Tesich foi publicado, existiam pouquíssimas redes sociais disponíveis nos EUA, e as poucas que existiam eram caras e de acesso mais restrito aos profissionais de informática, estudantes de exatas e entusiastas. Portanto o contexto que o autor considerou ao fazer sua análise não previu ainda o impacto das redes sociais como facilitadoras e propagadoras dessa pós-verdade reconfortante. Esse lugar no qual preferimos negar a realidade, dados e estatísticas a renunciar àquilo que acreditamos ser verdadeiro, simplesmente porque estamos cansados de pensar no assunto.
Há um documentário, disponível na Netflix, chamado “O Dilema das Redes”, dirigido por Jeff Orlowski, que nos escancara o quanto estamos sendo “influenciados” por algoritmos pensados para nos fazer “felizes”, de um lado, e, ao mesmo tempo, possibilitar que empresas de tecnologia usem nossos dados de modo abusivo para se enriquecerem. De escolhas de restaurantes até mesmo questões políticas profundas, as chamadas Big-Tecs, formadas por empresas como Google, Apple, Meta, Amazon e Microsoft, estão interferindo na nossa percepção da realidade.
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Para elas, somos meros produtos e, no desejo de lucrar - e elas lucram pelo tempo que permanecemos conectados - os algoritmos nos colocam em “bolhas”, nas quais quase tudo o que nos é mostrado é para nos distrair e não para nos incomodar. Não temos acesso ao outro lado e, com isso, se criam realidades paralelas, nas quais, cada “bolha” acredita estar com a verdade, pois não tem acesso ao discurso dos demais.
O problema é que nas “bolhas”, nos esquecemos que a única verdade possível de ser construída é aquela originária do consenso entre pessoas que se respeitam, ainda, e principalmente, quando pensam de modo diverso. Na medida em que as redes sociais ampliam nossas convicções em nossas crenças, ao mostrar apenas o que nos agrada, elas nos dão a falsa impressão de que todos pensam como nós, e, com isso, a formação de acordos majoritários vantajosos para todos, vai se tornado cada vez mais difícil, pois ninguém acredita que precisa ceder.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
