
Um eleitor que incomoda muita gente
"Não creio que a sombra de Trump tenha penetrado na Capela Sistina. Mas esteve entre os cardeais, antes de se reunirem em conclave"
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As atitudes cada vez mais estapafúrdias de Donald Trump e as expectativas de que terão resultados globais adversos fortaleceram o governo canadense, apesar da renúncia de Justin Trudeau, deram a vitória à esquerda social-democrata na Austrália, ajudaram a convencer o parlamento alemão a confirmar Friedrich Merz como chanceler, para não gerar instabilidade política em momento delicado de guerra tarifária do americano contra todos. E podem ter influído na escolha de um papa americano, impedindo retrocesso conservador. Não foi o único fator em nenhuma dessas decisões, mas teve seu peso.
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Merz se recuperou de inédita derrota parlamentar e ganhou o cargo em inesperada segunda votação. No após-guerra, nunca havia acontecido de um indicado a Chanceler por uma coalizão majoritária perder a confirmação do parlamento. A derrota, com um travo de humilhação, teria consequências muito negativas, em uma conjuntura geopolítica tão delicada, com uma guerra em casa e ameaça protecionista dos EUA à economia alemã.
Merz teve habilidade para contornar as divisões internas em sua base, a CDU-CSU, a mesma que manteve Angela Merkel como chanceler por 16 anos. Atribuiu sua derrota a diferenças dentro do partido sobre política fiscal e migratória. Foi confirmado por 325 de 630 votos. Margem apertada que não elimina a fragilidade de seu governo. Além do vacilante apoio da SDU-CSU, ele tem na coalizão os social-democratas, cujo governo, liderado por Olaf Scholz, desabou em novembro do ano passado.
O maior desafio de Merz é conseguir administrar esta frágil aliança, porque não tem como trocar parceiros ao centro. Restou apenas o ultradireitista AfD, liderado por Alice Weidel, que os demais partidos combinaram isolar. É nesta estreita linha entre a coalizão meio desconfortável para todos e a extrema-direita encastelada em insólito número de cadeiras que terá que se equilibrar.
Na Austrália, histórica virada deu vitória acachapante aos Trabalhistas, elegendo Anthony Albanese primeiro-ministro. Venceram em todos os estados, inclusive em distritos tradicionalmente conservadores. Tomaram quatro cadeiras da direita em South East Queensland, três em Sydney, duas cada na Tasmânia do Norte e em Brisbane. Fato inédito, o líder da oposição conservadora, Peter Dutton, com retórica imitando Trump, perdeu sua cadeira para uma trabalhista do movimento de base. Foi a vitória mais simbólica.
Ali France, será a primeira liderança política trabalhista a ocupar a cadeira por Dickson. Nesta sua terceira tentativa, conseguiu virar o eleitorado de Dickson de ponta-cabeça e derrotar Dutton em casa. Ali perdeu uma perna em um acidente de carro para salvar seu filho menor e o maior morreu de leucemia. Fez da tragédia inspiração para sua militância a favor dos direitos dos diferentemente habilitados e da reforma do sistema de saúde pública.
A sombra da ameaça que Trump representa para o equilíbrio geopolítico e a economia globais levou os parlamentares alemães à cautela e os eleitores australianos a repelirem os conservadores. A Austrália, parte da região Ásia-Pacífico sob influência da poderosa China, fica sem muita área de manobra com a conquista dos EUA por um ultranacionalista e imperialista tão ultrapassado como Trump. A União Europeia não só perde tradicional apoio dos EUA, como sabe que uma ordem internacional à la guerra-fria, com o mundo dividido entre EUA e China, como foi entre EUA e URSS, lhe seria adversa.
Não creio que a sombra de Trump tenha penetrado na Capela Sistina. Mas esteve entre os cardeais, antes de se reunirem em conclave. Talvez tenham encontrado entre a sombra de Trump e a luz de Francisco o caminho que levou ao novo papa. A escolha do cardeal Robert Francis Prevost tem significado. É o segundo papa das Américas, Francisco foi o primeiro. Este o levou para um cargo da hierarquia do Vaticano, onde se tornou muito conhecido. No Dicastério para os Bispos participava da nomeação de novos bispos e dos assuntos das dioceses.
A eleição de alguém de fora do establishment da Cúria Romana mostra a extensão do legado reformista do papa Francisco. Era muito difícil sair do conclave um conservador, em um mundo com os EUA presidido por Trump. Outro fator foi a evasão de fiéis estancada por Francisco ao se aproximar dos diferentes. Em um colégio eleitoral novo, global, mais heterogêneo que qualquer outro na história, onde muitos não se conheciam, o cardeal Prevost tinha a vantagem de ter a confiança de Francisco e ser talvez o mais conhecido entre os cardeais.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.