Eleonora Cruz Santos
Eleonora Cruz Santos
Economista, com mestrado em Demografia, doutorado em Administração e pós-doutorado em Economia, trabalha como consultora para organismos internacionais, atuando nas áreas sociais, de mercado de trabalho, migração e desenvolvimento humano; também leciona p
ELEONORA CRUZ SANTOS

A cultura é nosso melhor golpe

Somente a cultura, mesmo aquela que se perde por falta de zelo, é capaz de nos nutrir em golpes de sobrevivência que mantêm nossos mais íntimos sonhos e desejos

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Em uma semana que tinha tudo para exaltar a recepção, o pacto, os acordos e a visibilidade do elevado nível da gestão da atual política externa brasileira, o primeiro encontro do G-20 no Brasil poderia ter tido protagonismo muito maior não fosse a mancha deixada, mais uma vez, pela revelação das tentativas de um novo Golpe de Estado que carregava ações de envenenamento do atual presidente da república e de seu vice e de assassinato do presidente do Supremo Tribunal Federal.

 

 

Sempre rio por dentro quando ouço alguém dizer que “Deus é brasileiro”. Na semana passada, por fração de segundos, acreditei nesse ditado. Só mesmo muita generosidade divina para trazer, em momento de tanta conturbação política, o filme “Ainda estou aqui” para os cinemas brasileiros e relembrar, ou explicar para os que desconhecem, que ditadura é o pior regime politico que qualquer sociedade pode experimentar. O filme não poderia ter chegado em hora mais propícia.

 

Seguindo a máxima de Churchill, “a democracia é a pior forma de governo, exceto por todas as demais” e o belo filme de Walter Sales faz parte da memória viva do que isso significa para a sociedade brasileira. O plano de um novo golpe militar trazia pistas do desastre, seguido de tragédia, a que estaríamos expostos. Um misto de arrogância, prepotência e ignorância que, na prática, e, se bem-sucedido, certamente traria prejuízos dificilmente estimados para o País.

 

Vale lembrar que, entre as principais ações dos militares quando realizaram o Golpe Militar, em 1964, foi a censura que assolou o meio cultural e intelectual do país. Apreço à cultura é apreço à vida em suas raízes. A cultura diz muito do povo. É pela cultura que nos expressamos e que nos constituímos. Um país é reconhecido, antes de mais nada, por suas riquezas naturais e culturais. Portanto, censurar a cultura é abrir caminho para a morte de uma sociedade, ou seu adoecimento em alto grau.

 

A cultura sobrevive às intempéries econômicas e parece ser tomada pelo dom da ressurreição. É vida que não se acaba, é história que se reconta. Saber apreciar a cultura em suas raízes é reconhecer o ser humano em suas essências. E essa diversidade de mundos, em um único mundo, é a unicidade do ser humano em um universo de infinitas possibilidades e formas de expressão. Cultura é o infinito em universos particulares de expressão, ação, história, memória, vida e morte.

 

Adentrei-me no universo da cultura popular do Vale do Jequitinhonha, região situada ao nordeste do estado de Minas Gerais, na mesma semana em que o Presidente da República recebia, no Museu de Arte Moderna, na cidade do Rio de Janeiro, os chefes de Estado das Nações mais poderosas do mundo. Assisti à contradição que nos acompanha historicamente e me perguntei como sobreviver a tanta disparidade.

 

 

Somente a cultura, mesmo aquela que se perde por falta de zelo, é capaz de nos nutrir em golpes de sobrevivência que mantêm nossos mais íntimos sonhos e desejos. É pela cultura que nutrimos nossa liberdade interior; é pela educação e pela cultura que somos capazes de construir nossos pilares de vida e memória, de mantermos bombeado o sangue das ancestralidades em nossas veias, identificarmo-nos com nossas origens e termos apreço e apego à nossa história. O Vale é cultura!

 

Parede do Museu de Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha (MG), com objetos de uso doméstico e frase pintada sobre uso de violência

Museu de Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha (MG): 'O Vale é cultura!'

Eleonora Cruz/EM/DA Press
 

 

O Vale do Jequitinhonha carrega marcas indeléveis, destacando-se: (i) seus personagens mais característicos, como tropeiros, canoeiros, pescadores, artesãos, lavadeiras e romeiros; (ii) suas músicas de verso e viola, que encantam e se transformam em canções para as festas do Congado e da própria igreja católica, essas últimas pelas mãos do Frei Chico, holandês que dedicou mais de 40 anos de sua vida a valorizar e promover a cultura popular do Vale.

 

Frei Chico produziu grandes obras, dentre elas, o “Dicionário da Religiosidade Popular: Cultura e Religião no Brasil”, verdadeira relíquia da alma cristã e popular brasileira. Promoveu artesãos e outros artistas que ganharam projeção nacional e deixou marcado o senso de pertença e apreço às raízes, no povo do Vale, em especial nos cidadãos do município de Araçuaí que integram a região do Médio Jequitinhonha.

 

 

Foi nesse município que me deparei com o “Museu de Araçuaí”, um primor da cultura daquele município que tanto carrega da região na sua totalidade. No Museu de Araçuaí, pode-se conhecer mais a fundo a história marcada pela presença do Frei Chico naquele município e sua influência na perpetuidade da cultura regional. Na figura da idealizadora do museu, podemos conhecer o orgulho de ser uma cidadã de Araçuaí, assim como de tantas outras mulheres que lá vêm tecendo sua cultura.

 

No Carnaval de 2024, o bloco belo-horizontino “Pisa na Fulô, criado em 2015 e considerado o primeiro bloco carnavalesco de forró do país, teve como tema a cultura do Vale do Jequitinhonha – o tema foi intitulado “Jequi Xaxado”. Afirmo, sem hesitar, que o Pisa na Fulô fechou com chave de ouro o carnaval de 2024!

 

Além de prestar linda homenagem a Frei Chico e sua amiga e multiartista Lira Marquês, hoje reconhecida nacionalmente, o Pisa na Fulô também incluiu, em seu elenco de homenageados, os cantores e compositores Rubinho do Vale, Wilson Dias, Pereira da Viola, Carlos Farias e Saulo Laranjeira; o poeta Gonzaga Medeiros; o Coral das Lavadeiras do Vale; o grupo de artesãs e bordadeiras Mulheres do Jequitinhonha e o Festivale – Festival de Arte e de Cultura Popular.

 

Enquanto o carnaval do Pisa na Fulô retratou marcada e alegremente o Vale do Jequitinhonha, conhecer a região de perto ou mesmo por indicadores socioeconômicos dá a noção de quão penoso tem sido preservar sua cultura. Araçuaí, por exemplo, carrega traços de colonização marcada pela pobreza que perdura até hoje e é refletida nos índices de desenvolvimento humano e nos desafios do setor público local em restaurar e dar vida ao seu patrimônio histórico.

 

O município é cada vez mais procurado por investidores nacionais e internacionais que veem na riqueza do lítio, material em abundância na região, a mais normal forma de extração de riqueza que sempre marcou a região. Mas é desejado e esperado que a cultura empresarial pós-contemporânea, apegada às normas de governança (ESG) e igualdade de oportunidades (DEI), mude a realidade atual.

 

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Até o momento, a indescritível cultura do Vale do Jequitinhonha tem sido preservada pela força de seus artistas que, na insanidade de suas devoções e entregas, encontram na figura de seres iluminados como Frei Chico, nas benzedeiras centenárias, na idealizadora do Museu de Araçuaí e em outros anjos invisíveis ou visíveis a força para seguirem em golpes de sorte que sustentam sua cultura cujos alicerces simbolicamente ainda preservam pedaços de prédios históricos arruinados.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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