Casa inundada no bairro Rio Branco, em Canoas (RS), em 17 de maio. Mais de 600 mil pessoas foram desalojadas pelas chuvas, enchentes e deslizamentos de terra no estado -  (crédito: Anselmo Cunha/AFP)

Casa inundada no bairro Rio Branco, em Canoas (RS), em 17 de maio. Mais de 600 mil pessoas foram desalojadas pelas chuvas, enchentes e deslizamentos de terra no estado

crédito: Anselmo Cunha/AFP

A definição dos silêncios indizível e inefável está didática e cuidadosamente explicada pelo professor e filósofo Clóvis Salgado Gontijo em seu podcast “Quarenta dias com Vladimir Jankélévitch”. O silêncio indizível é da ordem do que não se pode expressar pelo discurso, não cabe em palavras, é o silêncio diante do inexprimível negativo. É esse silêncio indizível que vivo enquanto a força das águas transborda no Sul e o ser humano percebe-se impotente.


Os especialistas não usam a expressão “desastre natural”, uma vez que afirmam não ter nada de natural em desastres causados por ações humanas. Os rios transbordantes seguiram seus ritos enquanto o governador Eduardo Leite “capitaneou esforços para dinamitar o código ambiental do Rio Grande do Sul”, parafraseando Bernardo Esteves no episódio “Dentro da tempestade: as chuvas e a política na tragédia do Rio Grande do Sul”, do podcast Foro de Teresina.

 

 
O governador Eduardo Leite, em 2019, permitiu (i) a exploração de áreas de preservação permanente, (ii) afrouxou a proteção de nascentes, (iii) liberou o comércio de espécies de árvores ameaçadas de extinção, (iv) tornou o RS o estado mais permissivo no uso de agrotóxicos e, pasmem(!), (v) instituiu o auto licenciamento para operação do próprio empreendimento empresarial. Enfim, seguiu à risca a cartilha Sales e colocou a raposa para cuidar do galinheiro.  

 

 

Na esfera municipal, o atual prefeito de Porto Alegre (POA), com quase R$400 milhões em caixa, em 2023, optou por não investir absolutamente nada na prevenção de enchentes. E mais, também não gastou nada com o sistema de contenção de enchentes. Mas tudo isso são ações conjunturais que, nos idos de 2015, o renomado Observatório do Clima – leia-se também MapBiomas e outros especialistas – vinha alertando para a necessidade de ações estruturais.


Nenhuma esfera pública deu atenção! Nem as linhas políticas de esquerda, nem as de direita – prefiro excluir o fisiologismo do centro desse debate. Não há preocupação para o desenho de políticas de preservação ambiental em projetos de governo de nenhum dos lados. Mas tem algo pior: nem mesmo o Presidente da República levando os líderes do Congresso para verem de perto a tragédia no RS fez com que os parlamentares derrubassem os vetos ao PL do Veneno.

 


E a hipocrisia da crise climática no Sul atinge seu ápice quando o vice-prefeito de POA resolve gravar vídeos mostrando sua atuação em resgates de pessoas, vestindo um boné da Brasil Paralelo – produtora gaúcha com geração de conteúdos negacionistas sobre as pressões climáticas. O vice-prefeito é apresentador da Brasil Paralelo e endossa a linha de que o aquecimento global é uma conspiração nacional para tirar o Brasil do jogo do agronegócio.


Há tempos, penso que os políticos do PL do Veneno, os governantes que liberam licenças ambientais e os parlamentares da “turma que quer passar a boiada” não imaginavam que, de fato, o rio transbordaria e o caldo entornaria “tão cedo”. Não se iludam! Todos esses continuam não se importando. A destruição simbólica das instituições assume, cada vez mais, expressões concretas de abandono social. E a boiada vai passar, o rio vai transbordar e os mais vulneráveis vão se afogar.

 


E o conluio de políticos e empresários de má-fé continua se aproveitando do entornado, do que transborda, ao mesmo tempo em que a ciência, a sociedade civil alienada e manipulada e as pessoas realmente comprometidas com a vida são levadas pela enxurrada e afogadas pela politicagem e pela ganância. Enquanto isso, milhares de civis se mobilizam, de todos os cantos do país, para ajudar a salvar vidas daqueles(as) que agora habitam cidades destruídas.


Perdoem-me o pessimismo que ocupou meu silêncio indizível, constituído pela dor dilacerante da impotência que, por fim, paralisou minha escrita e não me permitiu preparar a coluna que deveria ter sido publicada há uma semana. O indizível ocupou minhas páginas em branco. E fiquei ainda mais atônita ao saber que, em Pelotas, moradores de um condomínio de luxo criaram drenagem para abaixar a água e o destino era um pobre bairro vizinho.


Que o silêncio inefável, aquele que se faz presente diante da beleza infinita da vida, tome conta de nossos corações para além das doações de curto prazo. A pandemia nos mostrou que nada aprendemos diante de catástrofes humanitárias. Os transbordamentos nos trazem mais uma oportunidade, pois, enquanto há vida, há movimento, há água limpa a nos renovar a alma, apesar daqueles que insistem em drenar a lama para os vizinhos mais pobres.