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O consumidor na era digital e o superendividamento: proteção ou ilusão?

Na era do crédito instantâneo e dos algoritmos que sabem o que queremos antes mesmo de sabermos, o consumidor vive em status de superendividamento

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Por Cláudia Viegas*

O novo rosto da vulnerabilidade

O Código de Defesa do Consumidor (CDC), promulgado em 1990, marcou uma revolução silenciosa nas relações de consumo, em uma época de compras presenciais, contratos em papel e publicidade limitada à televisão e aos jornais. Na época, a lei equilibrou forças e deu voz ao lado mais frágil da relação: o consumidor.

Trinta e cinco anos depois, esse equilíbrio se dissolve na imensidão digital. As vitrines migraram para as telas, os contratos se tornaram hiperlinks e o consumo passou a ser regido por algoritmos que antecipam comportamentos. O que antes era uma escolha livre do consumidor se tornou uma jornada guiada por dados e estímulos invisíveis.

O perigo já não se esconde apenas em cláusulas abusivas, mas na própria arquitetura do sistema. O botão “aceito” substituiu a leitura atenta; a notificação substituiu o raciocínio; o crédito aparece antes da necessidade. A vulnerabilidade clássica — técnica, informacional e econômica — deu lugar à vulnerabilidade comportamental, marcada pela manipulação das emoções e pela previsibilidade das escolhas.

Atualmente, o consumidor é monitorado, classificado e persuadido com precisão algorítmica. A publicidade não se limita a vender, mas antecipa desejos, direciona decisões e transforma impulsos em dívidas. A liberdade de escolha, tão celebrada na era digital, talvez seja o maior mito do mercado contemporâneo.

O crédito que empodera e aprisiona

A digitalização das finanças criou uma nova ilusão: a do crédito fácil. Basta um clique para obter um empréstimo, parcelar um PIX, contratar um limite emergencial. No entanto, a facilidade de acesso não vem acompanhada de igual capacidade de compreensão sobre o risco de superendividamento.

Nesse contexto, a Lei nº 14.181/2021, conhecida como Lei do Superendividamento, surgiu como um fôlego de esperança, consagrando o princípio do crédito responsável, obrigando fornecedores a avaliarem a capacidade de pagamento e permitindo a repactuação judicial das dívidas, por meio de um plano de pagamento de até cinco anos. Na realidade, trata-se do reconhecimento de que o consumidor superendividado não é um fracassado moral, mas sim um cidadão em situação de vulnerabilidade econômica e emocional.

A legislação introduziu o art. 54-A, §1º e §2º do Código de Defesa do Consumidor, permitindo a repactuação de obrigações de consumo típicas, continuadas e de boa-fé, tais como empréstimos pessoais e consignados, inclusive com bancos, financeiras, cooperativas e fintechs; cartões de crédito e crédito rotativo, um dos principais focos da lei, engloba juros abusivos, parcelamentos sucessivos e cobranças acumuladas, bem como contratos de prestação continuada de serviços e operações de crédito vinculadas a consumo digital.

A Lei também promoveu a educação financeira e a preservação do mínimo existencial, conceito que protege a dignidade humana acima da matemática bancária. Entretanto, a aplicação prática ainda é tímida, pois muitos credores ainda resistem ao acordo e a ausência de políticas públicas integradas transforma o processo em um caminho burocrático e solitário.

O resultado é um retrato alarmante: segundo a Confederação Nacional do Comércio, mais de 78% das famílias brasileiras estão endividadas, e quase 30% já não conseguem pagar o básico. É o endividamento que deixa de ser contingência para se tornar modo de vida. Mas não se pode olvidar que a ausência de acordo não impede que o juiz conceda a repactuação compulsória das dívidas do consumidor.

A engrenagem invisível: consumo e obsolescência

O ciclo do superendividamento vem sendo alimentado por um velho motor disfarçado de novidade: a obsolescência programada. Produtos são fabricados para durar menos e desejados para durar ainda menos. A cada nova versão de um celular, o anterior parece inútil e, junto com o desejo de consumo, cresce o lixo eletrônico e o passivo financeiro.

A França, desde 2015, criminaliza práticas de obsolescência deliberada e adota um índice de reparabilidade para produtos. O Parlamento Europeu discute o “direito de reparar”, em nome da sustentabilidade e da proteção do consumidor.

No Brasil, o debate ainda engatinha. O resultado é um consumidor que paga caro por produtos que envelhecem rápido e por dívidas que nunca terminam.

Entre o recomeço e a ilusão

O superendividamento é mais do que um problema econômico. É um fenômeno social e humano, que atinge principalmente mulheres, aposentados e jovens conectados. É o colapso da promessa de liberdade financeira em uma economia que incentiva o consumo, mas pune o endividamento.

A boa notícia é que o Direito oferece caminhos de recomeço. A audiência conciliatória prevista na Lei 14.181/2021 permite que consumidores renegociem suas dívidas sem perder a dignidade. Tribunais de Justiça têm criado núcleos de conciliação e prevenção, e projetos de educação financeira nas escolas começam a surgir.

Mas ainda é preciso coragem institucional para enfrentar o sistema que lucra com o descontrole. Enquanto o crédito for mais acessível que a informação, e a publicidade mais poderosa que a reflexão, a proteção será parcial e o risco, coletivo.

O futuro da proteção consumerista

O CDC nasceu para proteger o consumidor do produto defeituoso. Hoje, precisa protegê-lo do contrato invisível, do crédito abusivo e do algoritmo persuasivo.

O desafio do Direito não é criar mais normas, mas torná-las eficazes. É resgatar o equilíbrio em um mercado que explora a pressa e a distração. A resposta, talvez, esteja na tríade educação, regulação e empatia. Educação para formar consumidores conscientes.

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Regulação para responsabilizar fornecedores que lucram com a vulnerabilidade. E empatia, para lembrar que o endividado não é culpado, sendo apenas uma vítima de um sistema que naturalizou o excesso. No fim, a pergunta que ecoa é: o Direito do Consumidor, na era digital, ainda protege ou apenas promete?

*Cláudia Mara de Almeida Rabelo Viegas é Professora de Direito Civil, Doutora e Mestre em Direito Privado

Instagram: @claudia_viegas77

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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