Leandro Rossi

Leandro Rossi

Arquivo Pessoal
A epidermólise bolhosa (EB) é uma doença multissistêmica hereditária rara, não contagiosa e ainda sem cura. Sua característica comum é a formação de bolhas ao mínimo atrito na pele e/ou membranas mucosas. Por ser rara, muitos profissionais desconhecem a epidermólise bolhosa, assim como a sociedade.

O paciente com EB precisa dos cuidados de uma equipe multidisciplinar para que possa ter qualidade de vida, os familiares de políticas públicas de suporte e a sociedade civil de um olhar empático para saber que o desafio envolve todos. Leandro Rossi, presidente da Debra Brasil, fala sobre como seu olhar sobre a vida se transformou ao ter um afilhado e sobrinho diagnosticado com EB, como reagiu e da sua luta ao lado de voluntários, familiares e portadores de EB para que a sociedade brasileira –  civil e política – , enxergue a necessidade  de criar ações concretas para cuidar das pessoas com doenças raras, no caso dele, especialmente, frente à luta para um dia a dia mais leve e menos doloroso para as pessoas com EB. 
 
Theo é afilhado de Leandro

Theo, afilhado de Leandro

Márcio Rodrigues/Divulgação
 
 

Como sociedade, não podemos fechar os olhos para as doenças raras. Será que o ônus e o bônus de quem nasce com uma doença rara é só da pessoa?

Leandro Rossi, presidente da Debra Brasil

 
 
Como você conheceu a epidermólise bolhosa  e qual impacto teve na sua vida?
Conheci a EB com o nascimento do meu afilhado e sobrinho, Theo. Momento em que passamos todos a ressignificar nossas vidas e valores em função da doença. A EB não é só hereditária, os pais não portavam o gene e, quando meu sobrinho nasceu, houve uma nova mutação, ocorreu uma danificação do gene, mesmo ele não tendo a doença. Foi grande o impacto com o nascimento do Theo, muitas partes do corpo sem pele. Por ledo engano, ainda achei que era uma descamação, não fazia ideia de que um outro mundo abriria para minha vida. Anotei o nome epidermólise bolhosa em um guardanapo e andei com ele por três semanas para decorar, entender e buscar referências. Um pouco da experiência que a vida me deu serviu para que a obstetra me procurasse e conversasse comigo. Ela disse que eu assumiria o suporte naquele momento. A mãe do Theo é irmã da minha mulher, quase minha irmã mais nova e o Theo é como se fosse meu segundo filho que não tive, já que tenho uma menina de 16 anos. Bem, a primeira coisa que pensei foi falar para ninguém voar para o Google, não procurar saber nada. Foi a melhor atitude. Acabou que um vizinho, dermatologista, grande pesquisador no Brasil e no mundo, me ajudou, alertou e aí eu soube que não seria fácil, mas passei a atender a dinâmica, o que se faz, o que pode acontecer quando se tem uma doença como essa, que é para a vida, não tem cura.
Depois do impacto do diagnóstico, a desinformação é um primeiro obstáculo considerável. Como lidou?
A doença rara requer algumas coisas muito importantes. Brinco que, se você tem recurso, dinheiro, ajuda, claro, sem hipocrisia, sem tem família, um núcleo familiar estruturado, com as pessoas apoiando, faz toda a diferença. Mas a doença rara é a seguinte: se tem a informação certa, na hora certa, ela faz muita diferença para a vida. No hospital, fomos orientados, mas fomos vítimas da falta de informação correta. O Theo ficou 20 dias na maternidade, tempo em que fomos absorvendo a doença rara, a ponto de falar, de buscar o conhecimento e ir diminuindo o tamanho do inimigo e ter clareza. Foi o que aconteceu. Mas quando o Theo foi para o CTI no 21º dia, o CTI não tem mais romantismo, não tem mais nada a fazer, não adianta se preocupar com doenças raras. A preocupação passa a ser com os sinais vitais, em viver, o que nos deu casca e força para começar a entender além da EB. Ao lidar com a situação de vida e morte, ela te encoraja a resumir o tamanho do problema porque tem mais coisa. Ele ficou cinco meses no hospital e isso foi por falta de informação, porque no consenso da doença de pele, aprendemos que, ao identificar a EB no hospital, é preciso acelerar, antecipar a alta da criança e levá-la para casa. É o que vai estabilizar, já que a doença não tem cura. Informação é fundamental. E os 20 primeiros dias são fundamentais para a melhoria de diagnóstico e de tratamento para evitar percalços maiores. O caminho quando uma criança nasce, é colocá-la numa incubadora. Se fizer isso com uma criança com EB, você vai detonar a pele dela, levando-a para um ambiente úmido e com calor, tudo o que a pele não gosta. É complicado. Tem de ensinar não só o que fazer, mas o que não fazer para não ocorrerem erros que possam prejudicar a sequência de vida de quem nasce com EB.
 
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O que fazer para desmistificar e conseguir ajuda e apoio da sociedade com relação às doenças raras?
Eu passei por um processo de ressignificação da vida muito forte. Não adianta imaginar que todas as pessoas terão o mesmo nível de entendimento que eu tenho hoje; o que se pode esperar é empatia. Entender, não vão. As pessoas podem ter empatia, carinho e isso faz total diferença. Nós, como sociedade, não podemos fechar os olhos para as doenças raras. Será que o ônus e o bônus de quem nasce com uma doença rara é só da pessoa? Não podemos fazer isso. Como sociedade, vivemos de mãos dadas, hoje aconteceu comigo, amanhã com outro alguém. Esse é o maior aprendizado. Quem acha que é infalível, que é importante demais, que tem muito dinheiro, enfim, que acha que pode comprar a cura, não existe. Aconteceu com minha família, então, é entender que o tempo de vida, de busca de uma cura, de uma pesquisa - nada é simples. O que nos cabe fazer? Virou meu propósito, tocar as pessoas e, como sociedade, buscar trazer os melhores recursos, não só financeiro, mas cabeças, pesquisadores que possam dedicar tempo à pesquisa, trabalhando na melhoria de qualidade de vida, de atendimento. É o desafio. Atalhar caminhos.

O SUS é um suporte, um ator adequado para lidar com as doenças raras?
Temos hoje um bom sistema de saúde pública, mas ele foi feito e desenhado para lidar com doenças de amplo espectro, de grande incidência, como diabetes, pressão alta, câncer e vacinação. Nesses casos, o SUS responde muito bem. Porém, não com a doença rara. Não defendo que seja feito tudo para todos. Defendo que seja feito o necessário para cada pessoa. E isso faz a diferença, que é ter acesso a diagnóstico e tratamento individualizados. Isso o SUS não responde com eficiência pelo modelo de existência. Quando pega a instituição que poderia prover isso, ela é lenta, não consegue dar tempo de resposta. Mas a doença rara não pode esperar, requer senso de urgência, foco no resultado, busca por soluções que são diferentes, e não é só o dinheiro. Mas o modelo, a inteligência do atendimento, a dedicação. No mundo, são mais de 8 mil doenças raras catalogadas, imagina o desafio. No Brasil, são mais de 13 milhões de pessoas, falamos de 5% da população aproximadamente. Casos de EB são de 500 a 600 mil pessoas no mundo. Se fizer um retrato do tratamento e atendimento da EB, e das doenças raras como um todo e da saúde no Brasil, a grande maioria é atendida pelo SUS. São 80% na rede pública, em torno de 15% que tem plano de saúde ou tentam atendimento particular e 5% que não tem acesso a nada, vão viver à margem de tudo. Esse é o retrato da pirâmide do perfil de saúde no país. O desafio não pode ser a lei do mais forte. Quem tem condição de ter um plano de saúde bom ou um bom advogado, para judicializar o Estado e conseguir um tratamento, maravilha. E quem não tem? Conheço histórias de famílias que têm plano de saúde; umas são atendidas e outras, não. O tratamento da EB, por mês, varia muito, dependendo da severidade, e pode ficar mais ou menos entre R$ 30 mil e R$ 70 mil mensais. Não tem um medicamento de alto custo, mas como não há cura e você tem de usar o medicamento todos os dias, o custo mensal é alto. Não é somente comprar os produtos corretos, que são curativos e coberturas especiais para ajudar na cicatrização de pele, mas tem todo o processo de atendimento, a parte de curativos, nutricional. É uma doença sistêmica.

Como a família lida com o paciente com epidermólise bolhosa? 
Não são só os pais os impactados diante de um diagnóstico de uma doença rara, mas todo o núcleo familiar fica doente. Numa doença genética, a consanguinidade é um dos efeitos para aumentar a chance de ter uma doença genética com mutação. Então, grandes famílias com nível socioeconômico mais baixo, em cidades do interior, é comum o relacionamento de primo com primo, que se casam e aumentam ainda mais o risco de uma doença rara exponencial. E é o que ocorre com a EB. Pessoas com condição financeira e social complicada, têm dois, três filhos com EB por falta de informação. A probabilidade está lá. Como é consanguínea, aumenta ainda mais. Outro problema. Quem tem acesso a um bom atendimento, é possível buscar apoio e confiança na sociedade. Mas quando não tem um suporte, a família se desestrutura toda. Ao ter alguém com uma doença rara na família, automaticamente o pai ou a mãe vai sair do mercado de trabalho, porque um dos dois vai ter de cuidar da pessoa. E surge mais um problema sério, e não só financeiro, mas mental - diante de uma dedicação pesada, ela praticamente anula sua vida em função de alguém, e é para a vida inteira.

Imagino que, até pela falta de informação, há muito preconceito. Como desmistificar a EB?
A EB não é transmissível. Mas por ser uma doença de pele, atrai o olhar do preconceito. Porém, ficar tranquilo ao lado de uma pessoa gripada é pior, pois transmite. Vamos deixar o preconceito visual de lado. Se tem alguma dúvida, pergunte à pessoa com EB o que ela tem, é muito mais humano do que um olhar velado e preconceituoso. O processo de conscientização e inclusão é lento, mas necessário. Temos depoimento de crianças em piscinas de bolinhas de shopping que os pais, sem saber, vê a ferida da pele e acha que é contagiosa. Têm uma reação, que é agressiva e ofensiva. Então, temos uma campanha no mês de outubro, chamada “Vire do Avesso”. O foco está nas roupas porque a costura raspa na pele e machuca quem tem EB. É comum a mãe vestir o filho ou a filha com a roupa do lado avesso para protegê-lo. O dia 25 de outubro é a data da conscientização mundial sobre a EB e aproveitamos essa semana para divulgar a EB junto à sociedade civil como um todo com campanhas nas escolas, com um momento de conversar, e debater para que as pessoas se engajem. Campanhas educativas não para as famílias que vivem a EB, mas para os demais que desconhecem. Nas redes sociais, há muita exposição de crianças, chocantes, mas na Debra Brasil trabalhamos de modo contrário, dizendo que a “EB não nos define”, que é questão de integração e de um olhar carinhoso e inclusivo que fazemos. Buscamos o caminho da conscientização.

Diante dos obstáculos no SUS, como buscar políticas públicas  efetivas?
Ter o acesso correto via SUS é um dos grandes pilares que a Debra Brasil tem, a implantação de uma política pública no SUS, mas não é fácil e também não é simples. Desde 2019, trabalhamos na construção do Protocolo de Diretrizes Clínicas para Tratamento (PDCT) da EB no SUS, que absorveria a doença com as pessoas tendo acesso ao atendimento. Foi feito um estudo, junto à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), do Ministério da Saúde (MS). Acabamos fazendo duas versões: a segunda com um trabalho técnico revisado para que o protocolo fosse mais forte e completo, capaz de atender as necessidades de um paciente com EB. Com a pandemia, o protocolo acabou sendo publicado em dezembro de 2021. E onde estamos? Agora, há uma agenda para o processo de implantação, com questões como orçamento, recurso, guia de atendimento. Como cidadão, ao ter o protocolo aprovado para uma doença rara como a EB, achei que já estava tudo certo, porém, essa agenda está em discussão até as pessoas terem acesso.  A publicação do protocolo já é uma grande conquista, mas o desafio é chegar até as pessoas. O cenário no Brasil é de mais de 13 milhões de pessoas com doenças raras, que requerem atenção diferenciada. Elas vivem em situação difícil, porque vivem em nichos, em grupos para buscar seu melhor apoio e a melhor maneira de ser cuidado. Hoje, temos a Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras (Febrararas), temos de trabalhar com políticas públicas junto ao Legislativo, com quem defende o orçamento, a verba para dentro do SUS, e é necessário ter espaço de conscientização como este, da mídia, tão importante, e a busca por políticas públicas claras de tratamento. São os caminhos. A doença rara exige acompanhamento médico, atenção primária, diagnóstico de alta performance, que são os sequenciamentos genéticos para identificar o tipo de doença que acontece, e isso para fazer a pessoa se sentir incluída, um grande desafio que toda a sociedade enfrenta. Tem de pensar em dar uma resposta para todas as pessoas.

Qual é o papel da Debra e da Debra Brasil?
A Debra tem um posicionamento muito claro. É uma instituição técnica, que está em busca da cura e, enquanto ela não vem, a missão é ir atrás de protocolos clínicos, de maneiras de suporte para que essas pessoas tenham melhor qualidade de vida. Ela se dedica a gerar conteúdo, desenvolver procedimentos, melhores tratamentos, em vários idiomas, para o mundo inteiro, compartilhando práticas. No caso da Debra Brasil, temos vários programas, como o “Kit Borboletinha”, em que suportamos as famílias e os profissionais de saúde quando nasce uma criança em qualquer lugar do Brasil. Temos uma rede de voluntários, aproximadamente 45 pessoas só para recém-nascidos, no total são 100. Esse número espalhado no país parece pouco, mas é um esforço muito grande, de conseguir chegar nas pessoas e dar o suporte necessário. É o nosso papel. Eu era voluntário, hoje sou presidente, e fui conversar com as “Debras” de referência no mundo e entendi que as famílias se envolvem na condução da instituição, na estratégia, na condução de trabalho e estabelece-se também um corpo clínico, todo um atendimento. A presidente anterior, era médica. A dra. Jeanine (Jeanine Magno, diretora médica da Debra Brasil) cuida do corpo clínico, parte técnica e atendimento, eu que não sou profissional da saúde, do administrativo, uma combinação perfeita. Assim, por meio de um processo de digitalização, redes sociais e de alcance, fizemos um trabalho para chegar na casa das pessoas e ter um contato mais próximo. E, com autoridade digital forte, temos até destaque na América Latina. O trabalho que temos de fazer é de capacitação, de suporte às famílias e de conscientização com a sociedade civil. Nossos quatro pilares: atendimento, capacitação, pesquisas técnico-científicas e políticas públicas. É a nossa estratégia, o nosso papel no Brasil e a maneira que acreditamos de  fazer a diferença na vida dessas pessoas.