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Estado de Minas ENTREVISTA COM A VICE-PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Ministra Cármen Lúcia diz que brasileiros precisam fazer mais do que reclamar para mudar o país


postado em 20/09/2015 00:12 / atualizado em 24/09/2018 16:22

(foto: ACRJ/Divulgação)
(foto: ACRJ/Divulgação)
Ela foi a primeira mulher a presidir o Tribunal Superior Eleitoral. No próximo ano, assumirá a presidência da mais alta Corte de Justiça do país, o Supremo Tribunal Federal. A mineira Cármen Lúcia Antunes Rocha se considera uma juíza 24 horas por dia, tamanha a dedicação aos 1,6 mil processos que tramitam por seu gabinete. Ela acredita que a insatisfação popular se deve à ineficiência das políticas públicas, que não asseguram os direitos estabelecidos pela lei. E entende que o brasileiro precisa dar um passo além de reclamar. “As pessoas de bem têm que reagir e agir para mudar a situação, e não abandonar as coisas como se não tivessem a ver com elas.” Apesar da grave crise política e econômica, a ministra considera que o país passa por um amadurecimento. “Não há risco institucional,” afirma nesta entrevista ao Correio Braziliense/Estado de Minas .

A senhora citou recentemente que o momento exige que os homens de bem tenham a ousadia dos canalhas... O que quis dizer?

Essa frase não é minha. Citei o (Benjamin) Disraeli. Meu pai gosta de repetir essa frase e saiu como minha. Acho que nós nos conformamos... Talvez a palavra nem seja conformar. As pessoas saem às ruas, e começa a ter muito assalto. Em vez de tomar providências e reivindicar mais segurança, a pessoa se tranca dentro de casa, põe mais alarme. E deixa a rua para o assalto acontecer. A vida não pode ser desse jeito, porque senão o mal vence o bem. A frase do Disraeli é importante por isso. As pessoas de bem têm que reagir e agir no sentido de mudar a situação, e não de abandonar coisas como se não tivessem a ver com elas. Os assaltantes, traficantes, acabam tendo uma audácia muito maior porque sabem que as pessoas não vão reagir. Então, é preciso que quem seja de bem tenha a audácia para também reagir.

A frase, num contexto de crise, se encaixa neste momento?

Desde sempre, temos situações que são como essa em que as pessoas achavam assim: já que estão ocorrendo problemas com políticos, a gente não se mete em política. Então, já que a rua está perigosa, não vou sair. Se a escola está ruim, ponho meu filho numa escola particular e não tomo conhecimento. No que disser respeito ao outro e à sua vida, você tem que agir.

É uma questão cultural?

O brasileiro está aprendendo a se incomodar e a se desincomodar há relativamente pouco tempo. Tivemos grandes manifestações na década de 1960, a famosa passeata dos 100 mil. Tivemos em 2013, com novas manifestações. Mas, em geral, o cidadão brasileiro vem sendo individualista, não pensa na sociedade, não quer participar.

No Congresso eles também pensam mais em si?

A percepção, em geral, é de que pensa-se muito pouco no que o povo realmente precisa. O momento, no Brasil, não é de dizer o que o Estado está fazendo por meio de seu legislador, de seu político, de seu juiz. O momento é de perguntar o que nós, cidadãos, queremos ter e o que fazer para ter isso.

A população reclama dos poderes constituídos. Há uma acomodação em geral ou só do cidadão?

A acomodação é geral. Há uma certa acomodação incômoda. Porque não sei se há verdadeiramente a certeza de que o povo não sabe muito bem pensar de maneira coletiva o que é melhor para o país. Não tivemos muito esse aprendizado. Cidadania e democracia se apreendem. Segundo, a ideia de solidariedade é que me faz pensar num país como um todo. Na hora em que eles falam, querem que os poderes constituídos, Executivo e Legislativo, ouçam. Não sei se ouvem e se dão a resposta adequada.

E o Judiciário?

O Judiciário tem que fazer o que a Constituição determina. Não está no nosso alvitre decidir o que a população quer. Muitas vezes, a gente vota contra a gente mesmo. Já votei contra mim, mas fico ao lado da Constituição. Senão, não se tem uma segurança jurídica. Muitas vezes, o Supremo é contra o majoritário para garantir uma segurança de direito.

A insatisfação hoje é maior?

Do que já foi na década de 1980, por exemplo, com certeza. O slogan de campanha, da Nova República, era isso: não queremos mais o país do jeito que está. Para isso, a alternativa oferecida, negociada naquela ocasião, foi de uma nova Constituição. Mesmo o Tancredo tendo morrido, Sarney se manteve porque o povo já estava com a Constituinte.

A crise política e econômica leva a uma grande insatisfação. Há algum risco institucional?

Não. O Brasil amadureceu politicamente. O cidadão, desde os jovens até os mais idosos, tem ciência muito clara do que representa o regime democrático. Não há risco institucional. As instituições estão funcionando, a insatisfação demonstrada em geral nas ruas é basicamente com políticas públicas que podem ser mudadas pelas próprias instituições. A maior busca hoje no Brasil é pela efetivação de direitos sociais. Muito diferente da minha geração, que, na década de 1980, lutava por direitos políticos. A gente queria votar. Não podia votar nem para o DA da Faculdade de Direito, nem em faculdade nenhuma. Por que há uma insatisfação? Porque a Constituição é de 1988 e estamos em 2015.

Essa insatisfação da população está muito ligada às denúncias graves de corrupção. Bilhões de reais são desviados, e o governo fala em aumentar impostos. Este é um momento peculiar?

É um sintoma de amadurecimento democrático, porque, se as pessoas vissem isso e não reagissem, seria muito mais preocupante. Significaria que chegamos a uma insensibilidade social em relação ao Estado, como se não tivesse nada a ver com a gente. Acho o contrário. Isso é um sintoma positivo de o cidadão dizer: vamos moralizar, vamos cumprir a Constituição.

Há risco de impeachment?

Não sei.

O fato de essas denúncias estarem vindo à tona é um avanço da nossa sociedade?

Com toda certeza. O Ministério Público faz a sua parte, a Polícia Federal tem autonomia e cumpre os seus deveres, o Judiciário está julgando. Isso é avanço institucional.

A demonstração de avanço começou no julgamento do mensalão?

Começou muito antes. Na realidade, talvez tenha havido uma divulgação do julgamento no STF da AP 470, mas verdadeiramente a lei de improbidade administrativa fez com que o Ministério Público, como previsto e estruturado na Constituição, desse ensejo a que promotores pudessem investigar nos quase 6 mil municípios do Brasil. Então, quando se trata de uma ação que chegou ao afastamento de um prefeito do interior, não tem repercussão a não ser para aquela comunidade. Mas, desde essa ocasião, desde o fim da década de 1980, e principalmente na década de 1990, o MP se tornou  muito atuante e levou ao Judiciário as questões que não eram levadas.

Há quem critique até de forma dura a atuação do MP. Concorda?

O Ministério Público atua de maneira extremamente correta, muito cioso em seus pareceres. Um dos pontos altos da Constituição de 1988 foi justamente a concepção e a estrutura do MP, que foi, em grande parte, calçada pelas ideias do ministro Sepúlveda Pertence. Começou com a comissão dos notáveis, que fez o primeiro esboço de Constituição, e ele cuidou desse tema. Portanto, o Rodrigo Janot, que é o procurador-geral, vem exatamente na mesma esteira do que foram a atuação e os ensinamentos de Sepúlveda.

A Justiça deveria ser mais célere?

Deveria ser muito mais rápida, mas a sociedade também precisa discutir isso. Talvez o erro seja da comunidade jurídica e do Judiciário, de falar com mais clareza as coisas, porque esse juridiquês nosso não é nem compreendido pelas pessoas. É muito chato mesmo. O que as pessoas precisam compreender é o seguinte: sou juíza e me submeto ao que a lei determina. Se a lei dá ao cidadão o direito de recorrer quantas vezes ele quiser, não posso fechar o protocolo do Judiciário.

O juridiquês atrapalha e falta também mais proximidade, não?

O juiz não é autista para não saber em que mundo vive. Pelo contrário. A gente sabe. Gosto de ir ao supermercado, sei quanto custa minha conta. Vou ao Mercado Central de BH, reclamo do preço. Mas, na hora de julgar, não posso olhar senão para o que está no processo e qual lei se aplica. Posso tentar, o mais possível, explicar o resultado, explicar o porquê. Sempre terei alguém que vai ficar contra mim, porque quem perde a ação não vai acreditar que não tinha o direito. Ele não é convencido pelo juiz.

A senhora diz que seu rumo é seguir a Constituição. Mas isso não significa que concorde com tudo que está escrito?

Não. Eu já votei contra mim.

A senhora sofre com isso?

Não... A lã não pesa ao carneiro (risos). A quem tem vocação, nada é pesado. Nem é pesado o cargo, nem é pesado o trabalho. Se tenho de ficar 18 horas, fico. O corpo às vezes reclama - ninguém pesa 40 quilos, a essa altura, impunemente. Mas sei que essa é a minha função. Você nunca fica alegre quando tem de aplicar penas, por exemplo. Isso não alegra ninguém. Porque só precisa do direito penal quem errou na vida. Mas, em contraprestação, quando você garante a efetividade do direito a uma pessoa que está para morrer, que precisou vir ao Judiciário para ter um tratamento, uma cirurgia, também é muito compensador.

O país vive um momento crítico, não?

O Brasil passa por um momento, mas não é a questão política. Me preocupa isso: o cidadão quer o processo dele julgado em determinado tempo. Sou juíza, preciso dar uma resposta a isso. E não tem milagre. Então, a demanda é cada vez maior. Estamos chegando a quase 100 milhões de processos, para um Judiciário que tem 18 mil juízes, com mais de 20% dos cargos vagos. Tenho minhas preocupações, não preciso olhar para os outros poderes. O que tenho aqui como responsabilidade é cada vez maior.

Alguma vez a senhora sentiu preconceito no trabalho?

No Supremo, em relação aos colegas, não. Mas existe preconceito na comunidade jurídica. Em 1982, quando fiz concurso para procuradora, um examinador da banca, professor de direito, me disse expressamente na prova oral: “Se a senhora for realmente muito melhor do que os outros, como dizem, vai passar. Mas, se for igual ao homem,  preferimos homem como procurador”. Isso, numa prova oral, te desestabiliza facilmente. Hoje, ninguém falaria isso. Agora, o preconceito continua? Continua, ele só não se manifesta mais. Mudou para melhor? Mudou, porque ele agora precisa de muito mais motivos para afastar. O preconceito por ser juíza diminuiu? Não. Quem não gosta de mulher em cargo público diz isso: “Perdi porque o juiz era uma mulher, e mulher é muito mais rigorosa”. Cansam de dizer isso.

Parte dos problemas da presidente Dilma tem a ver com o preconceito em relação à mulher?

A presidente pode e deve ter sofrido preconceito. É como nos disse expressamente a presidente do Chile, Michelle Bachelet, em um encontro de juízas de tribunais constitucionais na Argentina: “Sou a presidente da República; a presidente do Senado é uma mulher (Isabela Allende); a presidente do Tribunal Constitucional do Chile é uma mulher (Marisol Peña); e a presidente do principal sindicato do Chile é uma mulher (Bárbara Figueroa). Vamos dizer que não há preconceito? Há.” Não é a circunstância daquele momento que faz com que tenha acabado o preconceito.

Como acabar com isso?

É uma questão mais grave, porque é cultural. O princípio mais vezes repetido na Constituição é o da igualdade, porque o problema maior do Brasil são todas as formas de desigualdade. Desigualdade de gênero; desigualdade pelo fato de a pessoa ser negra; desigualdade por ser indígena; desigualdade porque é pobre; desigualdade de toda natureza. Então, a Constituição repete mais vezes exatamente porque precisa igualar. E a igualação é um processo, uma conquista. Mudamos, sim. Imagine que, há 30 anos, cogitar uma mulher no STF levantava questões como: não há possibilidade porque, inclusive, vai criar um constrangimento lá. Era isso que se dizia.


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