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Estado de Minas PENSAR

Antologia da editora Malê reúne os poemas de Salgado Maranhão

Poeta maranhense saiu de seu estado nos anos 1970 para se estabelecer no Rio de Janeiro


28/10/2023 04:00 - atualizado 27/10/2023 19:45
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Maranhão
Maranhão estreou em livro nos anos 1970 (foto: Reprodução)
As vésperas de completar 70 anos, o brasileiro nascido José Salgado dos Santos, conhecido no universo poético brasileiro como Salgado Maranhão, lança a antologia “A voz que vem dos poros”, seu vigésimo projeto editorial, publicado pela editora carioca Malê.
 
A edição é simples e substanciosa. São 250 páginas de uma comprometida poesia com seu tempo, onde o bardo mergulha no melhor da sua produção desde que aportou no Rio de Janeiro, naquele marcante ano de 1973. Cinco anos depois, rompe a bolha e apresenta com ousadia e coragem seu primeiro livro, um manifesto coletivo intitulado “Ebulição da escravatura - 13 poetas impossíveis”, publicado pela Civilização Brasileira, do histórico editor Ênio Silveira. 
 
Deste movimento inaugural, o poeta selecionou para a atual antologia, dois poemas cujas linguagens marcam o poemário daquela época, quando a professora Heloisa Buarque editou os “26 Poetas Hoje”, berço da poesia marginal. Refiro-me aos poemas “Predicado do Sujeito” e “Flash”, este, por sinal, de extraordinário significado, afinadíssimo com as perplexidades do momento.  
 
Agora, quando seu nome é mais uma vez lembrado para a Academia Brasileira de Letras (ABL), Salgado apresenta sua antologia e consolida-se como um artífice do verso brasileiro, cujo estilo refinado e telúrico, traz na sua essência a sombra e a luz do castigado Nordeste e do Brasil profundo. Mas não acharemos no seu repertório nenhum “nordestinês” de butique de telenovelas.
 
Suas soluções estéticas são surpreendentes e cortantes como bem cabe a um poeta que se orgulha de suas origens sertanejas-caboclas-mestiças, mas mantém um olhar cosmopolita a partir de sua aldeia. É deste patamar que Salgado mergulha para voos linguísticos universais e contemporâneos. A prova-teste do seu voo foi a recente turnê por universidades americanas do início deste ano, com lançamentos em Nova York e Califórnia, além de um poema publicado no New York Times. Nos EUA, já são cinco livros traduzidos. Seus poemas ganham versões em espanhol, francês, japonês e até no árabe.
 
Ao lado de seus parceiros de geração como Antônio Cícero, Arnaldo Antunes, Ailton Krenak, Èle Semog, Conceição Evaristo, Geraldo Carneiro, Elisa Lucinda, João Diniz, Nicolas Behr, Ricardo Silvestrin, Anelito de Oliveira, Tanussi Cardoso e Antônio Carlos Secchin, para citar alguns com risco de deixar “bambas” de fora, Salgado é presença obrigatória neste panteão de vozes nascidas nos inesquecíveis anos 1970. Seus poemas têm este sotaque revolucionário.
 
Acompanho os passos deste brasileiro profundo, desde a década passada quando me aposentei e voltei a morar no Rio, depois de 30 anos em Brasília. Fui conhecê-lo no projeto “A estante do poeta”, apresentado por Paulo Sabino, no Espaço Afluentes. Ao falar das suas origens, maravilhosamente marcadas nos poemas “Tambores” e “Índio velho”, uma frase em homenagem a sua mãe, quase me derruba em nocaute: “A camponesa que amava latim”.

Letras para Pixinguinha e Ivan Lins


Ou seja: a linguagem vem de berço. Recentemente, convidado por produtores musicais, fez uma letra-poema para um álbum coletivo da Biscoito Fino em homenagem ao centenário do nascimento do saudoso Pixinguinha, que deixou várias canções nuas e cruas, sem líricas. Salgado topou o desafio e fez a letra “Ignez”, uma delicadeza exuberante.
 
No seu próximo álbum, o cantor/compositor Ivan Lins traz duas parcerias com ele. Aproveitando a musicalidade latente de seus poemas, sigo a sugestão do professor Rafael Campos Quevedo que, na apresentação da antologia, faz o convite: “Sugerimos ao leitor que coteje os ritmos de “Aboio” e “O retorno”, e atente para os que evocam as diferentes musicalidades produzidas pelas redondilhas maiores de um e pelos decassílabos (em sua maioria heroicos) do segundo.”
 
Para finalizar, creio que o poeta estava iluminado por Tupã, Exus, Budas e Erês, além dos grandes poetas-pensadores universais, quando escolheu o nome que lhe acompanharia no enxadrismo da poética (“pensar sempre um lance à frente”) que é sua caminhada.
 
É realmente um “Salgado” como a carne-seca na panela, alimento essencial para os nordestinos. Iguaria cercada de imensurável significado poético. Por exemplo: está presente, deliciosamente, nos “versos-versos” e nos “versos-músicas”, de um dos seus mestres, o tropicalista piauiense Torquato Neto, seu grande incentivador na mudança para o Rio.
 
Mas é também “Maranhão”, seu chão, sua vegetação onde cresceu nas rosas das veredas de João, com espinhos de mandacaru e ossos pontiagudos do esqueleto do boi que morreu de sede nas “vidas-secas” de Graciliano. E assim, de tanto ser Maranhão na vida, Salgado assumiu e registrou o Maranhão no cartório como nome civil. Agora é Maranhão no passaporte, na Carteira de Identidade e no CPF.
 
Diante das evidências que a licença poética nos permite, assim Maranhão se auto traduz: “Minha poesia caminha em várias direções, concernente às artérias estéticas que fui abrindo do ponto de vista formal e temático. Tais artérias navegam desde a metapoesia aos temas da negritude; desde as questões do sertão e sua tradição provençal às questões urbanas e seus conflitos desagregadores e/ou existenciais. Meu olhar está aceso em várias direções.” Ou como diria Waly Salomão, seu outro parceiro da geração 70: “Tem olho de lince, cuja memória é uma ilha de edição”.

Luís Turiba é poeta, jornalista e editor da revista Bric a Brac.  

“A voz que vem dos poros”

 
  • Salgado Maranhão
  • Editora Malê
  • 252 páginas
  • R$ 68,00

Nudez
 
Andam em toda parte
essas estações feridas
pelo pôr do sol. Assustadas

pelo dramático apelo
do fim (e o frio
que adoece as palavras).

Não pergunta ao rio
o caminho das águas,
salva apenas o fruto
da sua nudez.

Ainda que o amor ofídico
rasteje sob as tulipas,
a vida baila
até quando envenena.

Aboio
 
Quem olha na minha cara
já sabe de onde eu vim
pela moldura do rosto
e a pele de amendoim
só não conhece os verões
que eu trago dentro de mim.

A vida desde pequeno
sempre cavei no meu chão
da raiz da planta ao fruto
fazendo calos na mão
eu aprendi matemática
descaroçando algodão.

Carcarás, aboios, lendas,
são minha história e destino
tudo que a vida me deu
é tudo que agora ensino
na quebrada do tambor
eu sou velho e sou menino.

Memorália IV 
 
Minha preta avó — Joana
Angélica da Conceição —, do alto
dos seus 95, sabia
o dia da morte. Detinha
seu alvará, suas locações.

Na data determinada,
amanheceu encomendando
os filhos (todos já pais
de netos):
“cuidem do Sérgio
que é cego;
cuidem do Doca,
que é manco;
cuidem do João
que é distraído.
Cuidem também da lua,
que é mãe do plantio;
cuidem do sol,
pai da colheita.”

E foi-se!
Como um raio partindo
as nuvens.

Predicado do sujeito
 
tem que haver uma mudança na gramática.
uma mudança substancial.
que não está direito
um verbo irregular
passar a ser sujeito no plural.
deve haver um jeito
de romper os elos anormais
entre o agente da passiva
e as conjunções causais.
deve haver uma conjugação geral
de todo o pessoal interessado
na situação
da posição dos verbos na oração.
que não está direito
um verbo no passado ser sujeito.
não duvido até que possa haver
uma manifestação total dos verbos
regulares
visando uma transformação gramatical
no futuro do presente tempo estado.
que não é normal
um sujeito só com tantos predicados.


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