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'Pedra d'água' mostra busca por Clarice Lispector no Recife

Infância da autora de "A hora da estrela" e os contrastes da cidade cem anos depois impulsionam livro com textos de Clarice Hoffmann e ilustrações de Greg


09/06/2023 04:00 - atualizado 08/06/2023 23:36
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Pedra d'água
"Pedra d'água": em busca da trajetória de Clarice no Recife (foto: Reprodução)
Clarice Lispector nasceu em Tchetchelnik, na Ucrânia. Morou em Nápoles, Berna, Washington e Rio de Janeiro. Contudo, foi o período que viveu no Recife com a família, dos 5 aos 15 anos, que ficou guardado com carinho na memória da escritora. Foi lá, afinal, que ela ensaiou os primeiros passos na literatura.

Ainda pequena, escrevia pequenos contos e enviava para o suplemento infantil que o jornal Diário de Pernambuco mantinha na época. Aos 9 anos, escreveu “Pobre menina rica”, sua primeira peça de teatro, que, por vergonha, escondeu atrás de um dos móveis de casa e acabou perdendo.

Também figurou por muito tempo no coração da escritora o período que estudou no Colégio Hebraico Brasileiro. “Aquele meu colégio, alugado dentro de um dos parques da cidade, tinha o maior campo de recreio que já vi. Era tão bonito para mim como seria para um esquilo ou um cavalo. Tinha árvores espalhadas, longas descidas e subidas e estendida relva. Não acabava nunca”, conforme contou na noveleta “Travessuras de uma menina II”, publicada em 1970.

É, portanto, essa relação de Clarice Lispector com Recife que pretende mostrar o volume “Pedra d’água”, lançado recentemente pela Cepe Editora. Com texto de Clarice Hoffmann e ilustrações de Greg, o livro joga luz a esse elo afetivo entre escritora e cidade por meio do ponto de vista de uma terceira pessoa: Esther, personagem criada por Hoffmann.

A gênese criativa do livro partiu da própria editora, em 2020. A ideia era fazer um material em quadrinhos que mostrasse a infância da escritora na capital de Pernambuco. Como Hoffman havia publicado no ano anterior a HQ “O obscuro fichário dos artistas mundanos: 1934-1958”, a Cepe decidiu que ela seria a melhor pessoa para desenvolver o novo projeto.

O que a editora não contava é que, a não ser pelo nome, Hoffmann não tinha nada em comum com a autora de “A hora da estrela”. Havia lido um livro ou dois, mas não era nenhuma fã, ou mesmo leitora fiel de Clarice Lispector.

"Quando chegou o convite, é claro que eu aceitei, porque não dava para negar. Mas confesso que entrei em pânico”, brinca Hoffmann.

Com pouco material em casa, ela recorreu aos sebos, livrarias e aos amigos, acreditando que teria apenas o período do carnaval para mergulhar na obra de sua xará. Contudo, em 11 de março, poucos dias após o final da festa momesca, a Organização Mundial da Saúde (OMS)  decretou estado de pandemia em relação ao novo coronavírus.

“Ficou tudo muito incerto”, lembra Hoffmann. “Acabou que o projeto também ficou um pouco incerto”.

Hoffmann aproveitou o período de lockdown para mergulhar de cabeça na obra de Clarice. Ao conhecer mais a fundo a produção da escritora, decidiu que não queria fazer uma HQ autobiográfica, que trouxesse Clarice criança, brincando com as amigas na escola e ensaiando sua vocação literária. Era um universo que a quadrinista não saberia abordar.

Ela até cogitou adaptar algum texto que se passa no Recife ou que faz referências à capital pernambucana, mas logo descartou a ideia. “Ela tem muitas crônicas que tratam do período em que ela viveu no Recife. São textos profundos e que não seguem uma linha (cronológica) de narrativa, eles flutuam muito pelas memórias dela. Ficaria difícil adaptar. Então, resolvi não me atrever”, diz Hoffmann.

De súbito veio a ideia: “Vou fazer uma personagem, pesquisadora, que, assim como eu, está em busca dessa presença de Clarice pela ausência dela no Recife”, revela a quadrinista.

Assim a história segue. A primeira frase da HQ já dá uma dimensão de quem é Esther, a personagem criada por Hoffmann: “Pensava mais em Clarice do que em sua própria vida”.

Esther vaga pela cidade no intuito de encontrar os lugares que a escritora deixou registrados em sua obra. O Recife de Esther, contudo, é outro, modificado pelo tempo. As acácias amarelas e os palacetes com seus jardins repletos de rosas aveludadas sumiram. “Tombaram? Desapareceram? Ruíram?”, pergunta a personagem.

Ela passa pela sinagoga da antiga Judaria da Boa Vista, observa os efeitos do tempo e continua sua caminhada em direção ao sobrado onde Clarice morou com a família. Cruza com outras pessoas que passam seguindo rumo ignorado e troca poucas palavras com quem a aborda.

“A senhora quer mais alguma coisa”, pergunta a garçonete da lanchonete onde Esther entra para tomar um café. “Eu quero ser o outro”, responde para si mesma a protagonista.

Nessa busca pelo outro – no caso, por Clarice –, Esther descobre que jamais conseguirá encontrar a escritora no Recife do passado por um motivo muito simples: é impossível retornar à capital pernambucana das décadas de 1920 e 1930.

Feita essa constatação, ela começa a enxergar o Recife de hoje com os olhos de Clarice, dando atenção especial às injustiças sociais. Só assim, Esther consegue, finalmente, encontrar quem ela tanto procura. Como se chegasse a um nirvana, ela se transforma em um centauro e retorna aos lugares por onde passou, mas, dessa vez, observando-os por outra perspectiva.

Ainda que onírico – e confuso em alguns momentos –, “Pedra d’água” é repleto de referências à obras de Clarice Lispector, que um leitor mais familiarizado com a autora identifica sem muita dificuldade.

Assim como em “A hora da estrela”, a HQ começa sendo narrada em terceira pessoa e, na sequência, muda para a primeira. O conto “Mineirinho”, por sua vez, serviu de referência para cena na qual Esther se revolta com a morte de um jovem sentenciado como bandido pela opinião pública  sem comprovação dos fatos. E, por fim, a transfiguração de Esther num centauro é uma alusão ao romance “Perto do coração selvagem”, no qual Clarice escreveu que, ao morrer, desejaria renascer como um cavalo.
 

“PEDRA D’ÁGUA”

  • Clarice Hoffmann e Greg
  • Cepe Editora
  • 111 páginas
  • R$ 70 


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