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Estado de Minas PENSAR

Conheça 'O cupom falso', novela minimalista de Tolstói

Llivro póstumo do escritor russo sintetiza a riqueza e a complexidade de um romance e a não resistência ao mal em um roteiro cinematográfico


26/05/2023 04:00 - atualizado 26/05/2023 12:58
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Tolstói
Tolstói: novela foi considerada inacabado e renegada pelo escritor, e lançada originalmente apenas em 1911, um ano após a sua morte (foto: Reproducao da Internet)
A grandiosidade da obra de Lev Tolstói (1828-1910), representada principalmente por “Guerra e paz”,  “Anna Kariênina” e “A morte de Ivan Ilitch”, é notória há cento e cinquenta anos e não precisa mais de apresentação. Agora, entretanto, os leitores brasileiros têm nova oportunidade de conhecer em detalhes uma obra pouca divulgada por aqui, uma surpreendente novela minimalista póstuma do escritor russo. “O cupom falso”, que acaba de ser lançado pela editora 34, foi escrito entre 1890 e 1904 e é mais um exemplo da luta do autor por justiça social. A novela foi considerada inacabado e renegada por Tolstói, tanto que foi lançada apenas em 1911, um ano após a sua morte. As explicações para esse desinteresse são especulativas. E intrigantes para quem termina a leitura. É uma pequena – 96 páginas – obra-prima, e como diz a tradutora e doutora em literatura russa Priscila Marques, sintetiza a “riqueza e a complexidade de um grande romance”, com impressionante minimalismo sobre a condição humana em todas as suas camadas sociais na Rússia czarista do fim do século 19 e início do 20.

Dividido em duas partes, entre tragédias e a redenção, desde as primeiras páginas “O cupom falso” envolve o leitor a partir de uma simples e, aparentemente, inconsequente falsificação de um cupom – papel com valor monetário emitido pelo Tesouro imperial – feita por um adolescente para pagar uma pequena dívida de seis rublos e que desencadeia uma série de crimes. Vai de falso testemunho, passa por agressões físicas e furtos até latrocínios e assassinatos, entrelaçando a vida cotidiana de inúmeros personagens.

Cada um, à sua maneira, dá um jeito de passar adiante o golpe do qual foi vítima a partir do “pecado original” do estudante Mítia, que assim agiu porque teve o dinheiro negado pelo austero pai para pagar sua dívida. Segue-se então uma teia de confusões e crimes. O comerciante enganado com o cupom falsificado o passa para um mujique (camponês), que vai pagar bebida numa taverna com ele, mas acaba preso e depois rouba cavalos num estábulo. A narrativa continua numa sequência de malfeitos em decorrência do ato de Mítia. Mas nem tudo pode terminar na desgraça própria ou alheia. Tolstói dá uma reviravolta em sua narrativa. Há chance de redenção para os personagens de tantos crimes.

Como um ágil e instigante roteiro cinematógrafico – bem na época do surgimento da sétima arte – Tolstói vai descrevendo em pouquíssimas linhas os personagens que surgem a partir do trambique inicial. “Ao final da leitura, temos a impressão de ter desbravado muitos universos, um amplo arco temporal e biografias inteiras: o estofo e a grandiosidade do romance magistralmente empacotado na concisão e na precisão da novela”, analisa Priscila Marques.

“Tolstói se revela menos um artista plástico do que um aficionado do movimento e da ação. As descrições são minimalistas e certeiras. O autor não precisa mais do que duas ou três linhas para delinear o típico físico e psicológico das figuras representadas e os elementos mais relevantes de suas histórias pregressas. O que vemos é uma galeria de figuras humanas, de carne e ossos, profundas e com motivações tangíveis”, diz também a tradutora no posfácio da obra.


SEDE POR JUSTIÇA

“O cupom falso é quase um inventário das grandes preocupações filosóficas, sociológicas de espirituais do autor, espécie de repositório temático da obra tolstoiana”, lembra Priscila Marques, que aponta em seu posfácio, “a implacável sede de Tolstói pela justiça e pela verdade” encontrada em “O cupom falso”. A tradutora avalia que a palavra mais apropriada para definir a novela de Tolstói não é justiça, mas “justeza”, a busca do escritor pelo que é justo e ao mesmo tempo preciso.

Outra questão latente da novela é a injustiça social produzida por uma sociedade de classe altamente estratificada. Uma casta nobre é “praticamente blindada e impune a qualquer transgressão, da traquinice juvenil ao falso testemunho diante de um júri”. A tradutora analisa: “Se por um lado as classes elevadas contam com todo um aparato policial e estatal ao seu favor, e assim se mantêm plácidas e impunes como as verdadeiras beneficiárias da ordem social vigente, por outro, o espírito de rebeldia contra essa mesma ordem desponta com força avassaladora. A indignação contra a vida institucionalizada e regida pelas leis de uma sociedade corrompida e profundamente injusta é encarnada de diferentes modos na novela, passando da revolta política à conversão religiosa”, diz Priscila.

A principal rebeldia em “O cupom falso”, responsável pela reviravolta na segunda parte da obra é a não resistência pacifista ao mal representanda pela personagem Maria Semiônovna diante do seu frio assassino. Trata-se de uma forma de pacifismo que influenciaria o líder indiano Mahatma Gandhi décadas depois. Priscila Marques dá o exemplo nas palavras do próprio Tolstói: “A não resistência ao mal é importante não só porque a pessoa deve agir assim para o seu próprio bem, para alcançar a perfeição do amor, mas também porque apenas a não resistência cessa o mal; absorvendo-o em si, ela o neutraliza, não permite que ele siga adiante como ele invariavelmente seguiria, da mesma forma que um movimento em pêndulo de Newton não cessa, a menos que haja uma força que o absorva. O cristianismo ativo não consiste em fazer, em criar o cristianismo, mas em absorver o mal”.
 
O CUPOM FALSO
  • Lev Tolstói
  • Tradução de Priscila Marques
  • Editora 34
  • 96 páginas
  • R$ 48
 
 
ENTREVISTA / PRISCILA MARQUES
Tradutora e doutora em literatura e cultura russa
 
“Tolstói faz busca incessante por um sentido genuíno para a vida”
 
No posfácio da obra, a senhora define “O cupom falso” como “testamento literário e ideológico” e “quase um inventário de preocupações filosóficas, sociológicas e espirituais” de Tolstói. O livro parece também uma redenção ou um acerto de contas de Tolstói com ele mesmo e com o mundo já no fim da vida, diante da crise existencial e espiritual pela qual passava. Mesmo assim, por que será – ou talvez por isso – que ele considerou “O cupom falso” uma obra inacabada, apesar de demorar uma década para terminá-la? Afinal, só foi publicada postumamente.
Aqui só posso especular, mas penso que isso se deve à dificuldade e à complexidade da trama que ele elaborou nessa novela. De fato, fazer com que aquela quantidade de enredos, personagens, arcos temporais e biográficos ficasse bem amarrada e resultasse num texto sem "furos" deve ter sido um desafio e tanto! Fico imaginando que nesse texto Tolstói exercitou a concisão, aquilo que chamei no posfácio de “forma justa”, isto é, a capacidade de chegar a um extrato puro das questões que o importavam sem se deixar levar por narrativas mais extensas e demoradas, em que os detalhes (e as páginas) proliferam de um jeito tão vasto. Então, se eu tiver que lançar uma hipótese, diria que um motivo que pode ter feito com que Tolstói tivesse passado tanto tempo compondo a novela e que a considerasse inacabada seja, talvez, de ordem formal, e não (apenas) ideológica, a dificuldade de amarrar um enredo tão complexo em um texto breve.

O que mais impressiona em “O cupom falso” é a síntese das vicissitudes e mazelas humanas. Uma atitude banal e aparentemente inconsequente, que é a falsificação de um cupom monetizado, como um "pecado original', desencadeia um efeito cascata que culmina em assassinatos e outros crimes e dissemina a desgraça em todas as camadas sociais. Cada vítima vai passando adiante de formas diversas o mal que sofreu. A salvação – como na conversão do homicida Stepan –, entretanto, não está na Justiça humana, já que os condenados fogem ou cometem mais crimes, mas na fé, segundo Tolstói, no caso o Evangelho. A sede de justiça ou de "justeza", como a senhora diz no posfácio", de Tolstói passa impreterivelmente pela espiritualidade?
De fato, os casos mais bem-sucedidos de justiça e de reconexão com um caminho mais justo (e necessariamente não violento) passam pela espiritualidade e pelo divino nesse texto. Uma alternativa bem-intencionada, igualmente norteada por uma sede de justiça, é o caso dos jovens niilistas rebeldes. Contudo, fica claro que, apesar da boa intenção e do apurado senso de justiça social desses personagens, o recuso à violência (vale lembrar que no final do século 19 surgem os atos de terror político ainda no Império Russo) acaba "condenando" essa alternativa do ponto de vista tolstoiano.

A morte de Tolstói, aos 82 anos, numa estação de trem, quando seguia para um mosteiro, parece irônica, como se ele estivesse fugindo do mundo. Estaria ele farto da humanidade?
Possivelmente, ele estava farto de uma certa humanidade, essa pretensamente civilizada, que se considera um modelo de virtude e sucesso para a gente simples. Ao menos se pensarmos em sua literatura, fica claro como ele busca desmascarar a hipocrisia e a falsidade da sociedade.

Em sua opinião, qual é o legado de Tolstói além da óbvia grandeza literária e filosófica? Seria a não resistência ao mal e à violência, que teria inspirado Gandhi, por exemplo?
Uma coisa que acho que junta a grandeza literária e a postura ética e filosófica diante da vida no caso de Tolstói é sua busca incessante por um sentido genuíno para a vida, um sentido verdadeiro. Por isso, optei por focar na ideia do "falso" no título do conto. Essa cruzada contra o que é falso, sua intransigência de que o falso sempre será falso e dele nunca decorrerá nada de bom: isso me parece ser um mote importante e que se reflete tanto na maneira como Tolstói escreve suas obras quanto em sua atitude moral em relação ao mundo.

Uma provocação: como estudiosa da literatura russa, a senhora vê algum sentido em debater quem é o maior escritor russo entre Tolstói e Dostoiévski?
Não me aventuraria a debater quem é o maior, mas como se trata de dois grandes autores, que ademais foram contemporâneos, é quase inevitável pensar em compará-los e, inclusive, ter um favorito. Acredito que esse tipo de discussão pode ter grande proveito para elucidar o significado desses autores, a especificidade de cada um, como se fosse uma oportunidade de aprender por comparação e contraste (já que eles são, no fundo, tão diferentes), mais do que para se chegar a um veredito sobre quem seria melhor. 


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