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Estado de Minas "Todos nós estaremos bem"

Fantasmas assombram primeiro romance de Sérgio Tavares

Livro do editor do site "A nova crítica" entrecruza dilemas íntimos, referências culturais e conflitos geracionais durante a ditadura militar


05/05/2023 04:00 - atualizado 05/05/2023 07:29

'Todos nós estaremos bem' é o primeiro romance de Sérgio Tavares, editor do site 'A nova crítica'
"Todos nós estaremos bem" é o primeiro romance de Sérgio Tavares, editor do site "A nova crítica" (foto: divulgação)

 
Fantasmas assombram a narrativa de "Todos nós estaremos bem", de Sérgio Tavares. "Às vezes penso que estou morta", diz uma das personagens do livro que entrecruza dilemas íntimos e impasses geracionais dos que cresceram – e enriqueceram – durante a ditadura militar brasileira. Os fantasmas podem ser anônimos, mas também são célebres, como nas referências a ídolos da música dos anos 1980 e 1990, e arrastam correntes ao longo de quase todos os capítulos do primeiro romance do editor do site "A nova crítica".

Nascido em 1978, Tavares publicou anteriormente os livros "Cavala", vencedor do Prêmio Sesc de Literatura, e "Queda da própria altura". Considerado um dos críticos mais atentos à produção contemporânea brasileira, ele organiza o concurso literário Máquina de Contos, que este ano recebeu 1.091 inscrições de autores de diversas partes do país. 

As diferentes faces unidas ao título na forte capa, assinada por Luísa Zardo, indicam uma chave de leitura para o livro editado pela Dublinense: a representação das tentativas, nem sempre bem-sucedidas, de dissimulação das vastas emoções e pensamentos moralmente imperfeitos de quem assume papel social mais definido, menos sujeito às cobranças. Sêmen, segredo e solidão se imiscuem em meio a alternância de vozes narrativas, reflexões doloridas ("O grande desafio da minha geração certamente é aceitar o fracasso") e também sentenças lapidares ("A perda da inocência é uma forma da vida nos mostrar que tudo é um longo ensaio para um desfecho imprevisto").

Não faltam citações a outros escritores e alusões a nomes emblemáticos da cultura brasileira dos anos 1980, como na composição do personagem que atrai o empresário Roberto, um dos protagonistas. Dotado de "juventude exuberante", Pedro parece amalgamar características de duas personalidades do mundo artístico que foram vítimas da Aids naquela década. Pedro tem o mesmo sobrenome do ator Thales Pan Chacon (do filme "Eu sei que vou te amar") e carrega vícios, trejeitos e virtudes de Cazuza. Não por coincidência, Pedro ganha diálogos com reproduções de versos ("Sou daqueles que ainda precisam dizer eu te amo, que exagera na dor de cotovelo e manda rosas roubadas") e frases de efeito do cantor carioca ("Prefiro Toddy ao tédio"). "Passei um ano lendo muito e estudando sobre esse período (os anos 1980)", conta o autor. "Após a abertura e a redemocratização, a luta pela liberdade do país converteu-se na liberdade do corpo; no desejo incontido de viver sem amarras ou limites, alimentado pela esperança pulsante de boas novas." 

Enquanto os personagens agonizam (e a escolha de trecho de um dos mais conhecidos romances de William Faulkner para a epígrafe não é casual), o autor nos concede, como promete no prólogo, "as surpresas da descoberta" em narrativa seca, ocasionalmente inflada pelos excessos de adjetivos e referências, mas sempre segura - e impiedosa. Leia, a seguir, a entrevista de Sérgio Tavares ao Pensar. 


Como nasce o livro "Todos nós estaremos bem"? 
Em 2014, durante uma ida de ônibus para a Flip, eu fui totalmente absorvido pelo romance "K.", de Bernardo Kucinski. Em seis horas de viagem, aquele universo de opressão, insegurança e barbaridade criado pelo regime militar me impactou pela potência do relato e pela revelação de como a minha geração, da virada dos anos 1970 para os 80, de certa forma anulou a gravidade dos horrores cometidos pela ditadura de sua vivência. Mesmo na escola, era um assunto tratado de maneira superficial. Passei, então, um ano lendo muito e estudando sobre esse período. E entendi que, após a abertura e a redemocratização, a luta pela liberdade do país converteu-se na liberdade do corpo; num desejo incontido de viver sem amarras ou limites, alimentado pela esperança pulsante de boas novas. Mas logo em seguida vieram a morte de Tancredo, o caos econômico do governo Sarney, a epidemia da Aids, a primeira eleição direta vencida por Collor, e o futuro sonhado se tornou um encadeamento de ilusões e decepções; uma perseguição por utopias que acabaram por se revelar buscas por fantasmas. É muito simbólico, por exemplo, Cazuza começar com "Pro dia nascer feliz" e terminar com "Brasil". Portanto, minha ideia foi materializar o espírito deste tempo em personagens contraditórios e estonteados; que, de forma consciente ou não, produzem mentiras e autoenganos, sendo alegorias de uma sociedade que teve que se deformar e adoecer para seguir em frente.

Após dois livros de contos, o que foi mais desafiador ao escrever o primeiro romance?
Em termos narrativos, não teve muita mudança. Especialmente porque a construção do meu romance ocorre em saltos, através de capítulos autocontidos e da alternância de vozes. É uma trama que se forma muito mais por ecos do que por efeitos imediatos. E uma história fragmentada, com um longo recorte temporal, não necessariamente precisa de continuidade, mas de perspectivas que guardem aspectos de convergência entre si. O que tive que me atentar foi com os pontos de tensão. No caso do conto, devido ao formato enxuto, o ponto de tensão é único e atinge o ápice nas últimas frases. Já no romance há vários pontos de tensão que precisam ser regulados para promover a virada dos atos e embalar a narrativa até o desfecho. Pensando nisso, por se tratar de um livro em que a mentira é determinante para os movimentos do enredo, meu maior desafio foi articular as partes de modo que as ações do protagonista repercutissem nas decisões dos demais personagens, induzindo a leitura por um caminho que se transforma com a revelação da história secreta no capítulo final. Aliás, isso eu trouxe da experiência com o conto: a armação de camadas que garantam ao texto possibilidades interpretativas. 

Como se deu o trabalho de entrelaçar dilemas íntimos com a história política, econômica e cultural brasileira nos anos 1980? Por que ambientar parte da narrativa nessa década? Que país é este que se revela em seu livro? 
O romance se inicia nos anos 1980 e vai até a chegada dos anos 2000, com breves passagens nas décadas 60 e 70. É um Brasil que iniciava o processo de redemocratização, esperançoso de que o voto direto seria a luz do farol que nos guiaria para fora das trevas do período de regime militar, mas inacreditavelmente contabilizou uma sequência de acontecimentos desastrosos. Caos econômico, uma epidemia sem cura e marcada por estigmas sociais, a eleição do primeiro presidente escolhido pelo povo que se revelou uma catástrofe em inúmeros aspectos. Todo esse cenário está presente no livro, trazendo uma soma de referências que servem não apenas como dispositivos de ambientação de época, mas como matéria-prima para a composição dos personagens em seus traços físicos e psicológicos. Numa leitura alegórica, minha ideia foi também que o trio de personagens principais expressasse, em suas personalidades, características que representassem uma determinada década. Lúcia, em sua ideologia libertária, é muito os anos 70. Roberto e seu capitalismo selvagem são os anos 80. E Karla carrega a melancolia dos anos 90; meio grunge, meio "Teatro dos vampiros", da Legião Urbana. A escolha do tempo do livro, neste caso, não deixa de ser pessoal, pois foi nesse período que cresci e vivi muito dos dramas que marcam o destino desses personagens: o impacto da economia em frangalhos na vida familiar, um parente que morreu de aids, a adolescência sonorizada pelas canções do Nirvana.

Fantasmas, de forma metafórica, surgem e desaparecem ao longo dos capítulos. Parecem sintetizar a sobrevivência do passado no destino dos personagens. Como esses fantasmas “assombram” o livro?
Eu diria que o livro é uma longa perseguição por fantasmas que, ao longo do caminho, fabrica fantasmas. E aí as possibilidades de identificação são infinitas: pode ser uma obsessão sexual, uma ideologia, segredos enterrados, uma culpa, a memória de uma dor, a perda realmente do corpo físico, uma vida sem rumo... Todos os personagens estão em busca de algo intangível, criando manobras para aplacar essa sensação inesgotável, essa necessidade de abraçar uma ausência que gera impactos contundentes e irreparáveis no cruzamento de suas vidas. Esta é, talvez, a grande chave para se entender o significado contraditório do título, no contexto ficcional do enredo, mas também para dar suporte a uma ideia de que a sociedade brasileira não soube se livrar de seus fantasmas e tudo que vivemos nos últimos quatro anos foi consequência disso.

Há uma citação de "Trem noturno", de Martin Amis. O inglês é um de seus escritores favoritos? Poderia estabelecer diálogos entre "Todos nós estaremos bem" e as obras de autores brasileiros ou estrangeiros?
Embora minha entrada na leitura tenha ocorrido com autores da língua inglesa, minha escolha para formar a base de influência e de estudo da minha escrita foram a literatura brasileira e a hispano-americana. Portanto meu contato fora desse núcleo não se dá com autores, mas com obras. E "Trem noturno" é um livro que se encaixa perfeitamente naquele ponto do livro, pois a tônica do seu enredo dialoga com aquele momento, além de trazer o mesmo efeito de descompensação da história nas últimas páginas. No entanto, o romance sempre teve clara a concepção de estabelecer laços muito profundos com autores como Rubem Fonseca, Sérgio Sant'Anna, Hilda Hilst e, especialmente, Caio Fernando Abreu, por um motivo muito específico: eu não queria que a ambientação geracional fosse representada apenas pelo pano de fundo histórico, pela memorabilia e pelas referências culturais, e sim que o modo de articulação das frases, os diálogos e o uso dos termos passassem uma sensação anacrônica, como se o livro tivesse sido escrito no passado. Assim reli muito estes autores com o objetivo de capturar o manejo das palavras, o timbre de suas escritas, e aplicá-los na composição do texto para essa recriação dos anos 1980 e 1990. Também li e assisti entrevistas com figuras públicas dessa época, já que alguns personagens do romance são baseados nelas.

Você promove um importante concurso de contos, que, a cada ano, ganha mais inscritos, e certamente já leu centenas de trabalhos. Quais virtudes e problemas são comuns nessas narrativas? Quando um conto surpreende e quando é previsível?
O Prêmio Literário Máquina de Contos é uma premiação para autores inéditos, portanto a grande maioria dos contos traz características muito comuns a escritores iniciantes: a tentativa de copiar seus autores prediletos, a dificuldade de articular devidamente os componentes do enredo, a escrita empolada que tropeça nos próprios maneirismos, os clichês, a pieguice e o uso desmedido de figuras de linguagem, especialmente a catapora de metáforas. Esse é um exemplo definitivo para enterrar essa ideia de que escrita é aptidão, dom, transe, sei lá. Escrever é leitura, estudo e treino. Pôr de lado o deslumbramento e aprender e aprimorar as técnicas necessárias, como em qualquer outra atividade em que se almeja ter sucesso. Foi por esse motivo, aliás, que, nesta terceira edição, decidimos publicar dicas semanais no instagram da Graviola Digital, produtora que organiza o prêmio, visando orientar os candidatos a fugir desses erros básicos. Quando o escritor ainda não tem assinatura ou maturidade para arriscar no estilo, uma escrita singela, enxuta, que consiga executar um arco narrativo simples, sempre irá surpreender entre centenas de inscritos que se acham a encarnação de Goethe.

Como enxerga o atual momento da literatura brasileira? O que mais se destaca neste momento?
Numa visão mais ampla, vejo com bons olhos esse cenário plural e pulsante, com a participação de editoras pequenas e de médio porte abrindo espaço para novos talentos, apostando numa literatura que não seria considerada comercial e permitindo uma diversificação que vai do gênero ao tema, do território à representatividade. Há mais mulheres escrevendo melhor que homens, ainda que proporcionalmente o número de livros publicados seja menor; o surgimento de prêmios e iniciativas que estimulam o interesse pelo livro e pela escrita; e o investimento numa literatura que passou séculos sendo marginalizada por conta do elitismo e do preconceito racial praticado como instrumento de manutenção de uma hegemonia branca, masculina e heterossexual. Dito isso, há o fator literário. E, como crítico, me sinto incomodado quando elementos e circunstâncias externas são mais levadas em conta que a qualidade do texto, o valor artístico da obra. Neste caso, o que soa como inclusão por um lado funciona como mecanismo de exclusão e invisibilidade de uma parcela de autores que não possuem determinadas características. Da mesma forma me entristece o fato de autores com uma longa carreira, consagrados, não serem reconhecidos ao ponto de terem dificuldades em publicar. O meio pode ser comercial, mas a literatura não deve ser ingrata.

O Brasil, proporcionalmente, tem mais escritores do que leitores?
Depende de qual literatura estamos falando. Os livros feitos para entretenimento, que conjugam com o universo pop, das adaptações cinematográficas e das hashtags, vão muito bem, obrigado. As listas dos mais vendidos mostram claramente essa preponderância, e são estes títulos que mantêm o caixa de muitas editoras. Agora se estamos falando de literatura contemporânea brasileira, salvo raras exceções, o que acontece é o livro ficar restrito a um circuito no qual autores leem os livros de outros autores. E isso independe de críticas positivas, pois o alcance é muito baixo quando comparado com os bestsellers internacionais. Ainda tem as publicações literárias que enxergam apenas quatro, cinco, uma editora, então a concorrência fica mais desleal. O que percebo, e tenho feito, é investir nas ferramentas de divulgação das redes sociais de modo a provocar um boca a boca entre os leitores. Sei que meu livro tem qualidade para furar a bolha, mas preciso que seja lido e indicado em meio a uma pressão do topo de cima do meio literário para escondê-lo.
 
 

Trecho

"Não se arrepender disso, ainda que a sensação de culpa sirva unicamente para acalmar o seu espírito, é tão insensato para não dizer covarde quanto enxergar resiliência naquele espetáculo que apresenta todos os dias para si mesmo, correndo esbaforido contra o tempo, demonstrando garra para estar presente ao cair da noite, infatigavelmente junto às duas, mentindo para as duas, enquanto suas pernas ainda tremem involuntariamente em função da dormência do orgasmo recente. A filha e a esposa, ambas vítimas de agressões, ambas reféns de torturas severas são, sim, resilientes; ele, não." 
 

"Todos nós estaremos bem"

  • De Sérgio Tavares
  • Editora Dublinense
  • 190 páginas
  • R$ 59,90 


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