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Estado de Minas ENTREVISTA / IRINEU FRANCO PERPETUO %u2013 Jornalista e tradutor

"A literatura russa foi criada à sombra da censura"


04/06/2021 04:00

(foto: Divulgação)

“Vou citar uma frase de Virginia Woolf sobre Tolstói (e essa não incluí em livro nenhum): 'Resta o maior de todos os romancistas – pois de que outra forma podemos chamar o autor de “Guerra e paz'”?, afirma Irineu Franco Perpetuo, autor de “Como ler os russos”, nesta entrevista ao Pensar, sobre a grandiosidade do escritor. Ele fala da relevância da literatura russa, “criada à sombra da censura”, e dos desafios de traduzir “Anna Kariênina”, considerado o maior romance de todos os tempos. “Romances vastos como “Anna Kariênina” costumam mobilizar campos semânticos igualmente vastos. Não é raro eu recorrer a amigos que não falam uma palavra de russo, mas são especialistas em suas áreas, em busca do termo correto. Por exemplo, recorro a figurinistas de ópera em busca da palavra exata para determinadas peças de roupa”, conta Irineu, que destaca também “o desafio estilístico mais geral de encontrar uma dicção que faça o estilo de Tolstói funcionar em português”.

Foi “apenas” o regime comunista fechado que impediu a difusão de grandes autores russos do século 20 ou a literatura do século 19 era mesmo superior? Afinal, você fala na centralidade da literatura na Rússia e do papel profético e de pregador de autores como Dostoiévski e Tolstói.

A centralidade da literatura na Rússia manteve-se durante o período soviético. Aliás, em um certo sentido, os russos só foram conhecer sua literatura mesmo no século 20. Antes, o país era muito pouco alfabetizado, e a alfabetização em massa aconteceu com a Revolução. Aliás, no próprio livro cito o exemplo do culto a Púchkin, que tomou as dimensões graças às edições numerosas de suas obras no tempo soviético. Se a literatura não tivesse mantido essa centralidade nos tempos soviéticos, é possível inclusive que os escritores dissidentes tivessem sofrido menos do que sofreram. Repito aqui a frase que cito no livro: Vladislav Khodassévitch (1886-1939): Claro que sabemos do exílio de Dante, da pobreza de Camões, do cadafalso de André Chénier, e muito mais, porém, em nenhum lugar fora da Rússia as pessoas foram tão longe, por quaisquer meios possíveis, para destruir seus escritores. E, todavia, isso não é causa de vergonha, mas pode até ser causa de orgulho.

Isso acontece porque nenhuma outra literatura (estou falando em geral) foi tão profética quanto a literatura russa. Ou a mais célebre frase de Mandelstam, que também cito: Em nenhum lugar do mundo se dá tanta importância à poesia: é somente em nosso país que se fuzila por causa de um verso. A perda da centralidade é coisa recente, da era pós-soviética. Para citar Ievguêni Dobrenko: “A literatura na Rússia hoje é livre porque ninguém precisa dela. As funções de propaganda e luta política saíram da literatura para outras mídias: TV, internet, etc”. A ideia de que a literatura russa é, basicamente, literatura do século 19, é enunciada por Nabókov: “Se excluirmos uma única obra-prima medieval, a característica muitíssimo cômoda da prosa russa é que ela cabe por inteiro na ânfora de um único século – com um jarrinho de creme adicional fornecido para guardar a sobra que tenha vindo depois. Um século, o 19, foi suficiente para que um país praticamente sem nenhuma tradição literária criasse uma literatura que, em matéria de valor artístico, amplitude de influência e todo o mais, exceto volume, se equipara à gloriosa produção da Inglaterra ou da França, embora as obras-primas nesses países tenham começado a aparecer muito antes”. Mas, obviamente, não se sustenta. Ainda mais se incorporarmos a produção de emigrados, como o próprio Nabókov. Portanto, discordo da premissa da pergunta. Para mim, houve, sim, grandes autores russos no século 20. E o fato de vários deles (Búnin, Soljenítsyn, Pasternak, Chólokhov, Brodsky) terem vencido o Nobel de Literatura demonstra que sua obra obteve alcance e difusão internacional.

Por que a literatura russa do século 19 tem maior penetração no Brasil do que a norte-americana? Seria pelo fato de obras consideradas universais, como “Guerra e paz” e “Crime e castigo”, estarem no imaginário popular, mesmo que muita gente que as cita não tenha lido?

Não sou especialista em literatura norte-americana, de modo que não posso julgar por eles. Se a segunda parte da pergunta for verdade, seria o caso de se perguntar por que justamente essas obras e esses escritores se arraigaram no imaginário popular brasileiro.

Em “Como ler os russos”, você diz sobre os autores do século 19 que “é um ponto de vista maravilhoso a primazia da literatura sobre a própria vida, dos sonhos sobre a realidade, da imaginação sobre os fatos”. No caso de Púchkin, “fundador da cultura russa”, ele despertou o país para a “beleza do modo de pensar”. O quão distante o Brasil está de viver uma situação assim?

No Brasil de hoje, qualquer frase incluindo palavras como beleza ou pensar parece deslocada. Não sei se algum dia estivemos próximos desses ideais, mas o fato é que hoje estamos negando-os e afastando-nos deles deliberadamente. Vivemos um momento de criminalização da arte, da cultura, do saber, da educação e da ciência. Por outro lado, temos que nos lembrar de que a Rússia, ao longo dos séculos, não foi exatamente um modelo de liberdade. Toda literatura russa que lemos, não apenas a do século 20, foi criada à sombra da censura. Um exemplo de um trecho do meu livro, que soará perturbadoramente contemporâneo para o brasileiro de hoje. Assim, os últimos anos do reinado de Nicolau I congelaram a sociedade russa numa situação de terror, e quaisquer possíveis traços de vida cultural e intelectual independente até então foram simplesmente eliminados. Para citar apenas um exemplo, o novo ministro da Educação, príncipe Chirínski-Chikhmátov, aboliu o ensino da filosofia e da metafísica nas universidades – cujo corpo de estudantes, aliás, já se reduzira muito – e os cursos de lógica e de psicologia foram entregues a professores de teologia. Isso para não falar em exílio siberiano, gulag e outras barbaridades. Então, talvez dê para sonhar com um florescer das artes, apesar da orientação obscurantista do governo atual (estou falando do Brasil).

O antissemitismo e o chauvinismo de parte da obra de Dostoiévski, como em “Diário de um escritor”, devem ser minimizados ou tratados como anacronismo diante da grandiosidade de sua obra?

Acho vergonhoso que esses temas sejam tão pouco tratados no Brasil. Eu venho da área da música clássica. Lá, ninguém ignora que Richard Wagner foi um antissemita virulento. O que fazer com isso é outra questão. Mas aqui a tendência é "passar pano" para Dostoiévski, e fingir que seu antissemitismo não existe. Mesmo traduções recentes de suas obras, feitas diretamente do russo, têm a tendência de apagar as injúrias raciais com que ele se dirige aos judeus. Não estou propondo aqui que Dostoiévski seja pura e simplesmente "cancelado". Mas que esse aspecto não seja mais ignorado. Retomo aqui uma citação de Boris Schnaiderman que faço no livro: “Como explicar [por exemplo] certas páginas do 'Diário de um escritor', caracterizadas por um chauvinismo grão-russo simplesmente intolerável à leitura e repassadas de ódio ora ao ocidental, em geral, ora ao judeu, ora a outras populações do Império? Como harmonizar um Dostoiévski 'positivo' politicamente com a sua visão messiânica da Rússia? Quanto mais a crítica engajada em posições políticas de momento se dedica ao escritor, em busca de um aliado, menos compreensíveis se tornam certos aspectos de sua obra. Não, temos que deixar de lado todas essas manifestações imediatistas e utilitárias e voltar para as grandes realizações já conseguidas pelos estudos dostoievskianos, marcados muitas vezes pela indagação e pela dúvida. Mas, de indagação em indagação…” Dostoiévski é complexo, seu antissemitismo é um "bode na sala", e deve ser encarado.

Quais os desafios de traduzir “Anna Kariênina”?

Os desafios ao enfrentar uma obra-prima consagrada, de um autor dessa envergadura, não faltam. O próprio tamanho da obra é um desafio. Não perder a concentração ou o fôlego diante de algo tão grande. Um desafio específico é representado pelas muitas cenas no mundo rural russo do século 19. Quando falamos em “Anna Kariênina”, a primeira coisa que vem à mente é a personagem-título, e suas desventuras amorosas. Isso, claro, é bem importante. Mas não devemos nos esquecer de que boa parte do romance é ocupada pelas desventuras de Lióvin, o alterego de Tolstói. E Lióvin é antes de tudo um senhor rural, cujas preocupações com as questões do campo refletem as próprias preocupações e angústias de Tolstói. As cenas no campo são descritas com muito detalhismo. Tolstói sabia muito bem do que estava falando. Então, o tradutor – que vive 150 anos depois, a 12 mil quilômetros de distância, e cuja experiência do campo russo se limita a um fim de semana em uma dacha – deve se empenhar para fazer jus à precisão de Tolstói ao descrever um universo que lhe era tão familiar. Romances vastos como “Anna Kariênina” costumam mobilizar campos semânticos igualmente vastos. Não é raro eu recorrer a amigos que não falam uma palavra de russo, mas são especialistas em suas áreas, em busca do termo correto. Por exemplo, recorro a figurinistas de ópera em busca da palavra exata para determinadas peças de roupa. No começo do romance, Lióvin aproxima-se de Kitty em uma pista de patinação no gelo. Tenho sorte suficiente para ter uma amiga brasileira que patina no gelo e pôde me esclarecer quanto ao vocabulário. Também recorri a uma sérvia para algumas expressões nessa língua que aparecem no fim do livro, quando Tolstói retrata os russos que vão lutar ao lado dos sérvios contra os turcos. Além do desafio estilístico mais geral de encontrar uma dicção que faça o estilo de Tolstói funcionar em português.

Tolstói é mesmo o maior escritor do mundo? Por quais razões?

É difícil cravar quem seja o maior. Vou citar uma frase de Virginia Woolf sobre Tolstói (e essa não incluí em livro nenhum): ‘Resta o maior de todos os romancistas – pois de que outra forma podemos chamar o autor de ‘Guerra e paz’?’ […] O que seus olhos infalíveis relatam sobre uma tosse ou um truque das mãos, seu cérebro infalível menciona como algo oculto no personagem, para que conheçamos suas pessoas não apenas pela maneira como eles amam e por suas opiniões sobre a política e a imortalidade da alma, mas também pela maneira como espirram e engasgam. Ou outro autor que não citei nos meus livros, Ítalo Calvino: ‘Entender como Tolstói constrói sua narração não é fácil. Aquilo que tantos narradores mantêm à mostra — esquemas simétricos, vigas mestras, contrapesos, dobradiças — nele permanece oculto’. Oculto não significa inexistente: a impressão que Tolstói dá de levar tal e qual para a página escrita “a vida” (esta misteriosa entidade que para ser definida nos obriga a partir da página escrita) não passa de um produto da arte, isto é, de um artifício mais complexo que tantos outros.

A junção de literatura de jornalismo e literatura, como faz Svetlana Aleksiévitch hoje, é uma boa vertente para a literatura contemporânea?

Essa fusão de literatura e jornalismo, pelo menos na Rússia, parece-me bastante antiga. Talvez seja possível ver precedentes em toda a literatura sobre o exílio siberiano, como “Escritos da casa morta”, de Dostoiévski, e “A ilha de Sacalina”, de Tchékhov, para não falar nas monumentais obras sobre o gulag de Chalámov e Soljenítsyn. Em um país em que a literatura sempre foi mais do que literatura, é inevitável que a literatura, por vezes, seja também jornalismo.


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