(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas PENSAR

Primeira leitura: 'Realejo dos mundos', de Adriana Lisboa

Romance foi escrito em homenagem à peça homônima multimídia da compositora e artista multimídia Jocy de Oliveira


07/04/2023 04:00 - atualizado 07/04/2023 00:33

(a partir da peça multimídia homônima de Jocy de Oliveira)

Imagem do concerto multimídia 'Realejo dos mundos'
Imagem do concerto multimídia "Realejo dos mundos", realizado no Sesc Pompeia (SP) em julho de 2022


Adriana Lisboa
Água do mar se abrindo. Memória de corsários e da coroa portuguesa disputando o ouro do Brasil. Memória dos séculos e milênios anteriores a corsários e coroas: ao que indicam as pistas deixadas pelo tempo, o território do que é hoje este país já estava ocupado faz doze mil anos. Quem andou por aqui, e como, antes dos nomes que conhecemos?

A baía tragou indiscriminadamente europeus e indígenas, afundou os seus corpos e os estufou e ofereceu de repasto a peixe. A carne foi amolecendo devagar, no ritmo da água, a carne humana temperada a sal e iodo, desmanchando-se na penumbra onde só chega um sol coado, vacilante, a carne se desmanchando na boca silenciosa dos bichos. Mas um piano talvez tenha sido a primeira vez. Céu limpo, a ondulação da água dizendo venha, aqui recebo carne de corsário ou madeira de uma caixa de ressonância, feltro, metal, tanto faz.

Uma mulher senta-se ao Steinway de cauda e toca, enquanto o instrumento submerge. O piano flutua por algum tempo, tendo sido cuidadosamente preparado para isso, já que o naufrágio não é por acaso. Execução ou libertação? As águas o sustentam momentaneamente, deixam que flutue como um barco, que debaixo do céu e do sol ele faça sua breve viagem inaugural – a única.

A pianista toca alguma coisa, no vídeo, mas não se ouve. O que ela toca não vem ao caso: o vídeo foi concebido para acompanhar uma música eletroacústica baseada em fragmentos do “Concerto para piano e orquestra número 21 em dó maior” de Mozart. Não sei quantas vezes Muri e eu já vimos esse vídeo, no passado: o “Noturno de um piano”, de Jocy de Oliveira.

Cada algo é um eco do nada, escreveu John Cage, um dos compositores da vida de Jocy (nós passamos a amá-lo também). Ao fim da tarde, já não se vê o piano. É um naufrágio sem pompa, sem espetáculo, imagino que o pianista nade de volta à praia, seque os cabelos. Que as pessoas regressem às suas casas, às suas mesas, sobre as quais são servidas refeições quentes, às suas camas, sobre as quais dormem pesado e têm sonhos particularmente vivos. Na noite do mar, o corpo de madeira está mudo sobre a areia fria.

O tempo vai se sedimentando ao redor do piano, fazendo-o entender sua nova situação, desembaraçada de melodia e acorde. Recobre-o de cracas, transforma-o em refúgio de peixes, como se fosse um primo distante dos corais. A madeira incha, entorta, compreendendo e aceitando o novo elemento. Debaixo d’água, em silêncio, o piano inicia uma outra vida.

capa do livro 'Realejo dos mundos'

Sobre o livro

“Realejo dos mundos”, romance de Adriana Lisboa, foi escrito em homenagem à peça homônima multimídia da compositora e artista multimídia Jocy de Oliveira. Após a leitura dos originais de Adriana Lisboa, Jocy elaborou outra obra: “Realejo de vida e morte”, roteiro com 46 cenas para o longa-metragem homônimo. “Ao ler o manuscrito, senti uma profunda empatia com a sua linguagem poética e decidi adaptá-lo, concomitantemente, para cinema e teatro”, conta a artista. “Minha interpretação do romance me instiga a refletir acerca de várias questões relevantes no mundo em que vivemos hoje, como o abandono, o meio ambiente, a incerteza, a desesperança, a solidão, a exclusão, o emprisionamento, a discriminação – embora, na minha interpretação do texto, não exista o fator temporal ou mesmo a definição muito clara de espaço”, complementa Jocy, na introdução.  A edição bilíngue (inglês-português) da editora mineira Relicário, coordenada pela editora Maíra Nassif, inclui o romance de Adriana, o roteiro de Jocy, mais fotografias e partituras para o filme, previsto para 2024, além de QR Code para audição das músicas simultaneamente com a leitura do roteiro. Com prefácio de Josélia Aguiar, que destaca o “pensamento artístico em progresso contínuo” de Jocy, “Realejo de vida e morte + Realejo dos mundos” tem 240 páginas e lançamentos marcados para o Rio de Janeiro (11/04, na Livraria da Travessa de Ipanema) e São Paulo (19/04, na Livraria da Travessa de Pinheiros).


receba nossa newsletter

Comece o dia com as notícias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)