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Estado de Minas PENSAR

Amazônia: coletânea de artigos alerta para devastação da 'terra-floresta'

Livro reúne textos do xamã yanomami David Kopenawa e do etnólogo Bruce Albert, os mesmos autores de 'A queda do céu'


03/03/2023 04:00 - atualizado 03/03/2023 15:28

Vista aérea de região parcialmente devastada no município de Lábrea
Vista aérea de região parcialmente devastada no município de Lábrea, no estado do Amazonas (foto: AFP)
”Eles não sabem cuidar da floresta e não querem. Contentam-se em pensar: ‘A floresta cresceu sozinha, sem motivo, e nós somos os donos da mercadoria, portanto vamos continuar a fabricar ainda muito mais, sem fim!’. Então, cavam o chão, cortam as árvores e queimam tudo ao passarem. Depois disso, todos começaram de repente a falar em ‘mudança climática’! Nós, xamãs, escutamos essas palavras dos brancos. Mas não gostamos delas. O que vocês nomeiam assim não vem do nosso rastro na terra! Nós, habitantes da floresta, não a maltratamos. Não a desmatamos sem medida. Toda essa devastação é a pegada dos brancos, o traço deles no chão da terra. (...) Por que estamos preocupados? Se vocês, brancos, matarem a floresta, não serão capazes de criar outra, nova e limpa! Quando tiverem arrancado todas as coisas brilhantes do interior da terra: o ouro, os diamantes, os minérios, mas também os líquidos para fazer o fogo de seus motores, quando tiverem derrubado todas as árvores e matado todos os animais; quando tudo isso tiver desaparecido, a terra vai ficar morta.”

Nunca foi tão atual, urgente e necessária à preservação da vida na Amazônia e no planeta a reiterada mensagem do xamã yanomami Davi Kopenawa, evocada em “O espírito da floresta” (Companhia das Letras), com lançamento nacional marcado para o próximo 24 de março. Trata-se de coletânea de artigos assinados por Kopenawa e o etnólogo Bruce Albert – autores de “A queda do céu” (Companhia das Letras, 2015) – no original, “La chute du ciel”, obra publicada pela coleção Terre Humaine, na França, em 2010. Revolucionário, o livro transformou o pensamento ecológico contemporâneo ao desconstruir o tradicional conceito de “natureza” que distingue e separa povos humanos de povos não humanos. 

“O espírito da floresta” retoma o pensamento xamânico na unidade dos seres vivos que coabitam a terra-floresta. Foi prefaciado pelo filósofo italiano Emanuele Coccia em texto de outubro de 2021, e os artigos de Kopenawa e Albert foram produzidos entre 2000 e 2020, por ocasião de exposições de imagens e sons da floresta realizadas em Paris pela Fundação Cartier em parceria com os habitantes da Watoriki, casa coletiva yanomami. Fundado no saber yanomami, o livro articula uma profunda e ampla trama de diálogos que, evoca, sob diversas perspectivas, o complexo sopro da vida da terra-floresta, assim como as dramáticas consequências ao planeta pela sua destruição.

Ao longo das décadas, em palavras, ações e modo de vida, Kopenawa alerta ao mundo sobre as consequências da devastação da “terra-floresta” e o aniquilamento de seus guardiões, os povos originários, que estão em conexão profunda com todas as entidades vivas e classes de não humanos que a coabitam e também a protegem: rios, montanhas, árvores, plantas, animais, insetos, pássaros, abelhas, tartarugas, caracóis... São os “espíritos da floresta” – os xapiri pë –, que, nas palavras do xamã, para proteger Urihi a, aquilo que os brancos chamariam de “natureza”, foram ali colocados por Omama a, o demiurgo  yanomami.
 
 
Como todos os seres vivos, a terra-floresta, além de dotada de uma imagem-essência – Urihinari a – tem no solo a sua pele exterior, na vegetação a sua pilosidade e no frescor da exalação úmida, o seu sopro vital (wixia). Diferentemente da humana, a animação vital da terra-floresta é longa e sustenta a fertilidade, a força de crescimento tanto de sua vegetação como de toda a multiplicidade das formas de vida vibrantes humanas e não humanas, que coexistem em simbiose profunda. 

A existência yanomami é de resistência. Na década de 1970, esse povo enfrentou o choque epidemiológico, a violência e a degradação social de suas comunidades da região do rio Ajarani, onde haviam se estabelecido os primeiros colonos, em consequência dos projetos de ocupação da Amazônia, urdidos pela ditadura militar.
 
O território yanomami foi empurrado a um novo tempo de contatos intensos com a fronteira econômica nacional, em especial a oeste daquele que ainda era o território federal de Roraima (só elevado à condição de estado pela Constituição de 1988). Em 1973, um trecho de 235km da BR 210 atravessou a parte meridional desse território, no contexto do Plano de Integração Nacional do governo do general Médici (1969-74).
 
 
Tratava-se de implementar uma nova política de controle e ocupação também com programas de colonização agrícola ao longo desse eixo rodoviário, em seguida à instalação de mais um plano de desenvolvimento amazônico dos militares, o projeto Polamazônia do governo Geisel (1974-79). Não tardou e a rodovia foi abandonada por falta de financiamento. Mas deixou um rastro de destruição ambiental e mortes.

Invasão de garimpeiros

Mas o pior ainda estava por vir. Ao empreender um inventário sistemático dos recursos minerais, florestais e agrícolas da Amazônia (Projeto Radam), que evidenciou o potencial mineral da serra Parima, centro histórico do povoamento yanomami, o governo militar estimulou uma invasão de mineiros atraídos pela exploração a céu aberto da cassiterita (dióxido de estanho).
 
Nos anos 80, a descoberta de jazidas auríferas aluviais nas terras altas yanomami atraiu à região hordas de garimpeiros (perto de 40 mil) constituindo-se a mais intensa corrida do ouro do século 20: entre 1987 e 1990, noventa pistas de pouso improvisadas foram abertas nas nascentes dos principais afluentes do alto rio Branco. Violência, exploração e assassinato de  yanomamis se seguiram a esta invasão, inclusive com um dos atos de barbárie documentado em denúncia do Ministério Público Federal (MPF) de 1993.
 
 
Em pleno século 21, a denúncia de genocídio contra o povo yanomami domina a pauta internacional. Durante o governo Bolsonaro, a destruição das florestas pelo desmatamento e as queimadas para a instalação de pastos e outras atividades agropecuárias se intensificaram, bem como a venda ilegal de madeira; a contaminação dos rios, pelo uso descontrolado do mercúrio no garimpo ilegal de ouro, cassiterita e outros metais, foi, lentamente, cercando e asfixiando os povos yanomami, que durante a pandemia, já haviam sido largados à própria sorte. 

 Os cerca de 26 mil yanomamis, moradores de 350 aldeias, ou casas coletivas, onde famílias estendidas partilham o labor e a energia vital da floresta encontram-se em situação de vulnerabilidade similar ou mais grave que na década de 1980. Nos últimos quatro anos, impotentes, assistiram ao crescimento da presença do garimpo ilegal.
 
Armados e em maior número em relação aos habitantes da floresta, os invasores contaminaram os recursos naturais, restringindo o acesso dos povos originários ao seu tradicional modo de vida, carrearam doenças, abusos físicos e sexuais e interferiram em postos de saúde indígenas, impedindo o atendimento e tratamento dos indígenas. “O espírito da floresta” chega, então, em momento crítico para esse povo, para a floresta amazônica e para o planeta. 
 

De novo, eleva-se a voz de Kopenawa, para quem palavras como “ecologia” são muito antigas e foram legadas aos seus ancestrais por Omama a. “Os xapiri pë defendem a floresta desde que ela existe. Sempre estiveram do lado de nossos antepassados, que por isso nunca a devastaram. Ela continua bem viva, não é? Os brancos, que antigamente ignoravam essas coisas, estão agora começando a entender. É por isso que alguns deles inventaram novas palavras”, afirma Kopenawa. “Ecologia” é uma dessas palavras.

Diante da coexistência e permanente comunicação entre humanos e não humanos na terra-floresta yanomami, o que proporciona e estabelece a etnografia universal do que é vivo, Emanuele Coccia registra no prefácio que os espíritos da floresta, os xapiri pë, já possuíam a ecologia quando os brancos ainda não falavam nisso e antes de os brancos lhe darem esse nome. E prossegue: “Aliás, é só porque esse saber não pertence simples e exclusivamente ao povo e à cultura yanomami mas a outro ‘povo’, composto por ‘outras’ realidades, que Kopenawa poderá dizer que ‘nascemos no centro da ecologia e nela crescemos’”. 

Os desenvolvedores e os destruidores 

A Amazônia pode se transformar em deserto literal e moral: uma terra de indígenas exterminados, povos da floresta expulsos, milhões e milhões de acres pastagens degradadas e rios envenenados.  Tal é a distopia provável, desencadeada a partir do “holocausto ambiental”, não previsto, mas que se pôs em curso a partir do projeto da ditadura militar de “inundar a região com civilização”, que desencadeou processos de uso e ocupação predatórios. 

A avaliação é da geógrafa Susanna Hecht e do jornalista Alexander Cockburn, autores de “O destino da floresta: desenvolvedores, destruidores e defensores da Amazônia” (Editora Unesp). Publicada em 1990, nos Estados Unidos, a obra consolidou-se como uma marcante narrativa sobre a história social da Amazônia apresentada internacionalmente. Sob o título original “The fate of the forest” (The University of Chicago Press), com última edição atualizada de 2010, o livro finalmente chega ao Brasil, abrindo ao leitor detalhada contextualização histórica da região. 

Com sólida pesquisa bibliográfica, o livro percorre um longo trajeto: das populações pré-colombianas e corrida pelo ouro dos conquistadores, nos séculos de escravidão, aos esquemas das ditaduras militares nas décadas de 1960 e 70 e, mais recentemente, às novas economias globalizadas da soja e carne bovina brasileira que avançaram sobre o território da floresta, ainda que um novo mercado de créditos de carbono emerja com potência, ampliando o valor da floresta viva. “As estruturas e os recursos da região encorajaram as incursões de espoliadores de curto prazo – a nobreza em Lisboa, ou os bandeirantes, ou os fazendeiros em São Paulo, os barões da borracha em Paris – que, depois, desfrutavam de suas riquezas em outros lugares”, afirmam os autores. 

A luta pelo futuro da Amazônia diz respeito à justiça e à distribuição, destacam Hecht e Cockburn. “Nas batalhas pelo futuro da Amazônia já houve vitórias, e assim como a grande rebelião da década de 1830 levantou líderes dos barracos mais humildes da região, agora as lutas mobilizam líderes autênticos, seja Paiakan ou Chico Mendes, ou centenas de outros líderes sindicais rurais, o clero, advogados, defensores que veem a luta pela justiça como a principal preocupação, a defesa do todo como a chave para o triunfo”,  afirmam, entendendo estar nas lutas e mobilização social dos povos da floresta e movimentos sociais  o ponto de inflexão no panorama  de destruição da floresta que tem ainda, como aliada, o mercado emergente dos créditos de carbono e a consciência internacional do aquecimento global.

capa do livro 'O espírito da floresta'
 
• “O espírito da floresta”
• Davi Kopenawa e Bruce Albert
• Tradução de Rosa Freire D’Aguiar.
• Companhia das Letras
• 232 páginas
• R$ 59,90. E-book: R$ 29,90
• Nas livrarias a partir de 24 de março

capa do livro 'O destino da floresta: desenvolvedores, destruidores e defensores da Amazônia'
 
• “O destino da floresta: desenvolvedores, destruidores e defensores da Amazônia”
• Susanna Hecht e Alexander Cockburn
• Tradução de Rosa Freire D’Aguiar.
• Editora Unesp
• 399 páginas
• R$ 94,00


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