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Estado de Minas PENSAR

Estreia de Brenda Navarro aborda drama de mães e seus filhos desaparecidos

Autora de "Casas vazias", escritora detalha as angústias da maternidade e o choque com as consequências da guerra às drogas no México


20/01/2023 04:00 - atualizado 20/01/2023 00:31

Brenda Navarro
Brenda Navarro justifica a escolha de poemas da polonesa Wislawa Szymborska para introduzir os capítulos de seu livro: "Ela é o oposto de mim como escritora; em um único poema, é capaz de transmitir o que me custou fazer em um romance inteiro" (foto: juan-pablo-ampudia)

 

“O que é um desaparecido? É um fantasma que te assombra como se fosse parte de uma esquizofrenia.” A indagação e a resposta dão o tom do romance “Casas vazias”, de Brenda Navarro. As consequências vastas, imprecisas e dolorosas do sumiço de uma criança são esmiuçadas em uma história com alternância de vozes e estilos, ambientada em um país onde “ou você é rico ou é branco, não há matizes” e impregnada pela realidade desigual de uma grande nação latino-americana: o México (mas poderia ser o Brasil). 

 

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Lançado pela editora Dublinense, “Casas vazias” é o romance de estreia de Brenda Navarro, nascida em 1982 e com atuação em órgãos de defesa dos direitos humanos. “Na literatura, encontrei a oportunidade de problematizar tudo o que vejo”, afirma a autora em entrevista ao Pensar do Estado de Minas. O livro nasce da reação dela a um momento dramático da guerra às drogas em seu país, em 2013, descrito por ela como um “estado de choque”. “Muitas pessoas estavam desaparecendo e muitas mais morrendo”, lembra. “Eu não conseguia parar de pensar nas mães dos desaparecidos: qual era a dor delas, quais as formas de sobreviver ao que estavam passando?”, complementa.

 

Além de apresentar os desaparecidos como “valas comuns abertas dentro de nós”, Navarro retrata a maternidade, considerada por ela “um turbilhão de emoções”, com crueza e sem idealização, um sentimento ainda mais difícil para uma personagem que passou por uma gravidez “triste, pedregosa e embolorada”. “É preciso ser muito alienada para não ter medo de uma vida nova”, considera a narradora da história. 

 

As três partes de “Casas vazias” são separadas por poemas da polonesa Wislawa Szymborska, ganhadora do Nobel de Literatura em 1996. “Ela é o oposto de mim como escritora; em um único poema, é capaz de transmitir o que me custou fazer em um romance inteiro”, avalia Navarro, ao justificar a escolha para um livro atravessado pela angústia de quem constata, após busca infindável, que os desaparecidos não podem ser considerados mortos: “Porque os mortos somos os que os procuramos, eles continuarão sempre, sempre vivos”. Leia, a seguir, a íntegra da entrevista de Brenda Navarro ao Pensar.

 

 

Como nasceu “Casas vazias”?

“Casas vazias” nasceu em 2013, quando estávamos passando no México pelo momento mais dramático da chamada guerra às drogas, onde muitas pessoas estavam desaparecendo e muitas mais morrendo e, como país, estávamos em uma espécie de estado de choque. Entre tudo isso que nos aconteceu como país, não conseguia parar de pensar nas mães dos desaparecidos, qual era a dor delas, quais eram as formas de sobreviver ao que estavam passando? E foi assim que o romance começou, em uma questão de como uma mulher pode ser mãe e um dia acordar e nunca mais ver seu filho.

 

Como o seu trabalho em órgãos de direitos humanos influenciou o seu livro?

Eu sempre tive certeza de que queria escrever e que a teoria não era suficiente para mim, que na realidade o que eu precisava era entender o mundo sobre o qual eu queria escrever. A condição humana sempre me interessou. Sabia que tinha que entendê-la pelo menos na configuração social, então comecei a estudar sociologia. Quando entendi a importância da luta de classes, não pude deixar de me interessar pelo ativismo na defesa dos direitos humanos. Então, todo o meu trabalho sempre esteve relacionado ao meu principal interesse: entender por que o mundo é injusto com algumas pessoas e não com outras. E foi na literatura que encontrei a oportunidade de problematizar tudo o que vejo, de forma mais livre, sem a necessidade de estar correto, mas de me expor à ideia de contar histórias que me movem e me impactam. Não concebo uma literatura asséptica na qual os personagens não estejam manchados com a realidade.

 

 Por que o desaparecimento pode ser mais angustiante do que a morte?

Porque a morte permite que você tenha um luto, aquele processo necessário para seguir em frente. O desaparecimento de uma pessoa é um naufrágio constante, onde não há uma linha de vida possível à qual você possa se apegar para curar. Agora, desde a publicação do romance, tive a oportunidade de conversar com parentes de pessoas desaparecidas e o que aprendi é que a vida continua, que eles encontraram maneiras diferentes de seguir em frente, de continuar procurando seus parentes, de encontrar novas maneiras de habitar o mundo e isso colocou o Estado mexicano em xeque. A angústia não desaparece, é claro, mas quando há uma coletividade ao seu lado, há novos caminhos. Aprendi isso mais tarde e sou grata por ter aprendido tanto com eles.

 

Como você mostra a maternidade no livro?

Como a maternidade é: um turbilhão de emoções que uma mulher vive no momento de ser mãe, não por causa da maternidade em si, que é um fato biológico maravilhoso, mas por causa das estruturas político-econômicas e sociais que recaem sobre o corpo das mulheres. Não se deve esquecer que os Estados-nação tal como os conhecemos se baseiam no conceito de família tradicional e que a família tradicional é sustentada pelo trabalho das mulheres, tanto doméstico como de cuidados. Como não pode ser uma revolução mental, física e social ser mãe se toda a sociedade está em cima de você? Agora, você vivencia e aí o Estado desaparece com o seu filho... É inconcebível. Uma dor que não tem nome.

 

“Ou você é rico ou é branco. Não há nuances”, diz um dos narradores do livro a respeito do México. Como você retrata a realidade do seu país em sua ficção?

Bem, a realidade do meu país e do mundo ocidental. Os estados-nação têm estruturas coloniais racistas por conta própria, e qualquer um que não seja homem, heterossexual e branco é discriminado de alguma forma. Isso é patriarcado e o racismo é um de seus sustentos mais fortes. Podemos ver quem nos governa, que tipo de valores eles promovem e veremos que eles são senhores com mentalidades feudais que vêm discriminando há séculos todas as pessoas que não são brancas e que instalam uma aporofobia social.

 

Por que a escolha dos poemas da polonesa Wislawa Szymborska para separar as partes do livro?

É um diálogo-homenagem à poeta, que admiro muito. É o oposto de mim como escritora;  em um único poema, ela é capaz de transmitir o que me custou fazer em um romance inteiro. Eu precisava conversar com ela como escritora e também me dar a oportunidade de me aproximar de sua poesia.

 

Nos últimos meses, livros de outras autoras mexicanas, como Fernanda Melchor e Cristina Rivera Garza, foram publicados no Brasil. Você consegue ver conexões entre seu livro e as obras desses e de outros escritores latino-americanos contemporâneos? Quais você mais admira?

Admiro todas as pessoas que são capazes de defender sua obra e mais, escritores que tiveram que superar obstáculos para poder escrever. Precisamos de muitos nomes de mulheres em livros, ainda precisamos de muitas mulheres para serem lidas e publicadas. Por outro lado, é claro que vejo uma conexão direta com a obra dos escritores latino-americanos, estamos dialogando com tudo o que nos desafia e a violência é um dos principais eixos de nossas sociedades. Mas a Europa e o mundo anglo-saxão também são violentos, mas de uma maneira diferente; talvez seja hora de olhar para essas violências.

 

 O que você conhece e admira na cultura brasileira?

Sempre quis aprender português, acho uma língua interessante de várias formas e o ouvido é muito agradável. Sei muito pouco sobre o Brasil, mas graças a colegas escritoras, conheci vários livros de escritoras contemporâneas que acho muito interessantes. Também gosto da literatura de Angélica Freitas, Emílio Fraia e Itamar Vieira Junior, que sei que tem sido um enorme sucesso. Agora, claro que admiro o trabalho do Caetano Veloso, mas me declaro fã do cantor Thiago Pethit; ele é um dos meus cantores favoritos. Sua música sempre me acompanha.

 

Quais são os pontos de conexão entre as sociedades do Brasil e do México?

Acho que somos sociedades que partilham muitos pontos em comum, viemos de um colonialismo voraz que não para. As lutas por autonomias territoriais são um dos pontos culminantes que nos unem. Estão matando e assediando muitos ativistas ambientais em nossos países e, sobre isso, vejo muita coragem por parte das nossas sociedades. Além disso, as lutas de classes são coisas com as quais ainda temos muito a resolver. Temos muitas coisas em comum, espero que um dia eu possa visitar o Brasil. 

 

“Casas vazias”

 

  • Brenda Navarro
  • Tradução de Livia Deorsola
  • Editora Dublinense
  • 160 páginas
  • R$ 59,90 

 

 

Prêmio para o novo livro

Mais recente romance de Brenda Navarro, "Ceniza en la boca" recebeu na Espanha, na última quarta-feira, o Prêmio Cálamo de melhor livro de 2022. A premiação, organizada por uma livraria da cidade de Zaragoza, foi decidida pelos leitores por meio de votação popular. Descrito como uma história de "separações e abandonos", "Ceniza en la boca" foi lançado pela editora espanhola Sexto Piso, está na quarta edição e ainda não tem previsão de edição no Brasil.

 

 


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