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Estado de Minas PENSAR

Violência e desigualdade do México movem prosa de Fernanda Melchor

Mulheres do país latino-americano ganham destaque com livros fortes, perturbadores e premiados internacionalmente


20/01/2023 04:00 - atualizado 20/01/2023 00:28

Fernanda Melchor
Fernanda Melchor: reconhecimento internacional com os romances "Temporada de furacões" e "Páradais", lançados no Brasil pela editora Mundaréu (foto: juan-pablo-ampudia)
O México ultrapassou a fronteira e ganhou o mundo. Se, no cinema, os homens dão as cartas, com a consagração internacional de diretores como Alfonso Cuarón, Alejandro Iñárritu e Guillermo del Toro, na literatura são as mulheres que ganham maior destaque nos últimos anos. Além de livros aclamados como os de Valeria Luiselli (“Arquivo das crianças perdidas”) e Guadalupe Nettel (“A filha única”), três escritoras colecionam prêmios e traduções ao utilizar a ficção para revirar traumas e cicatrizes deixados por um cotidiano violento de uma sociedade desigual: Fernanda Melchor (“Temporada de furacões” e “Páradais”), Cristina Rivera Garza (“O invencível verão de Liliana”) e Brenda Navarro (“Casas vazias”). “Não concebo uma literatura asséptica na qual os personagens não estejam manchados com a realidade”, afirma Navarro, editada no Brasil pela Dublinense. “Ainda é essencial mergulhar na especificidade de cada vida, na felicidade e luminosidade de cada vida, para verificar tudo o que perdemos – e aqui este plural se refere à comunidade em geral – quando uma mulher nos é tirada de forma violenta”, acredita Rivera Garza, que demorou 30 anos para conseguir contar, em livro, a história do assassinato de sua irmã.

Os efeitos da violência também movem a prosa ágil da premiada Fernanda Melchor. Nascida em Veracruz, em 1982, Melchor teve o romance “Temporada de furacões” traduzido para 15 idiomas. No Brasil, o livro foi lançado em 2020 pela editora Mundaréu, a mesma que publicou o mais recente título da autora: “Páradais”, uma das últimas traduções de Heloisa Jahn (1947-2022). “Seria difícil (e mesmo indesejável) definir a literatura latino-americana, mas podemos dizer que um de seus traços marcantes e frequentes seja a violência – institucional, social, familiar, patriarcal, histórica”, comenta Silvia Naschenveng na apresentação da edição brasileira de “Páradais”. “Fernanda Melchor aborda a violência cotidiana no México contemporâneo para além dos estereótipos induzidos pelos noticiários e ficções sobre narcos, com o mesmo ritmo vertiginoso, sem pausa para fôlego, e a capacidade de narrar sob a pele das personagens”, complementa a editora da Mundaréu. 

Com os dois livros, Fernanda Melchor recebeu duas indicações ao International Booker Prize, diversos prêmios internacionais e ganhou também uma bolsa para morar em Berlim. Após seguidas viagens de divulgação, a escritora voltou recentemente ao México para se dedicar ao novo romance. Nesta edição do Pensar, uma resenha dos dois livros de Melchor e entrevistas exclusivas com Cristina Rivera Garza e Brenda Navarro. 

Fernanda Melchor
A tempestade que chamamos de progresso 

 
Bernardo Serino e João Moraleida
Especial para o EM
 
“Foi tudo culpa do Gordo, era o que diria a eles.” Assim anuncia Polo, personagem central de “Páradais”, mais recente livro da escritora e jornalista mexicana Fernanda Melchor, autora também do romance “Temporada de furacões”, ambos editados no Brasil pela Mundaréu. Não fosse “Páradais” iniciar com toda a tragédia já concebida, estaríamos às voltas com uma espécie de romance que se constrói lentamente. É que Melchor já nos anuncia a catástrofe ocorrida, assim como em seu romance anterior, cujo corpo da Bruxa, fio narrativo de todo o texto, é encontrado no início da obra nas margens de um rio. Ainda que anunciada para os leitores, a real catástrofe está por vir, ao menos em seus detalhes mais precisos e violentos, à medida que adentramos, pouco a pouco, no mundo construído por Melchor.

Ambientado num condomínio de luxo de nome homônimo ao romance, “Páradais” é uma curta jornada sobre um crime cometido pelo jovem Polo, trabalhador e espécie de faz-tudo enjeitado de Paradais, e Gordo, apelido de Franco Andrade, adolescente rico que vive com os avós. É por meio de recursos como o discurso indireto livre e monólogos interiores vertiginosos, marcas da escrita de Melchor desde “Temporada de furacões”, que descobriremos a obsessão misógina e cruel de Gordo com Marían, uma senhora de meia-idade. Quadro a quadro, Gordo se estabelece como um observador da vida da mulher, descrevendo suas fantasias sexuais a Polo enquanto bebem nos fundos do condomínio de luxo. É ali, nas escadas que dão acesso ao rio que cerca o condomínio, que Polo escuta de Gordo as comparações do corpo de Marían com toda a sorte de objetos. É Polo, no entanto, para além das obsessões de seu amigo, quem trava uma guerra em seu cotidiano massacrante do trabalho. Máquina de moer ossos, Polo reproduz dia a dia uma jornada entre a sua cidade, Progreso, e Paradais. Nesse jogo de palavras, Melchor, mais uma vez, sustenta a sua interpretação sobre as sociedades contemporâneas, em especial ao México, cujo nexo social há muito tornou-se a violência. Não há redenção para trabalhadores como Polo. No lugar da obsessão de Gordo, surge para ele, trabalhador altamente explorado, a possibilidade do alcoolismo e da fuga impossível do seu retorno todas as noites a Progreso.

Fluxo de consciência


De forma semelhante, Melchor nos apresenta os escombros do condado ficcional de La Matosa, lugarejo em que se passa “Temporada de furacões”. Por meio de um fluxo de consciência parecido ao de “Páradais”, à exceção dos diversos narradores que povoam a obra, a autora reflete sobre o mecanismo de esquecimento intrínseco à violência social que urge em sua obra.  

A partir da aparição do cadáver, descrito como “o rosto putrefato de um morto entre os juncos e as sacolas de plástico que o vento empurrava da estrada, a máscara preta que fervilhava com uma miríade de cobras negras, e sorria”, a autora inicia uma busca dos rastros, se fazendo valer das múltiplas vozes que comentam sobre a história do corpo da Bruxa. Todos os habitantes do condado assumem a construção da memória de quem foi o cadáver diante de La Matosa. A personagem em questão é construída de modo em que tudo que é dito pelos habitantes opera como estatuto de verdade. Por ser fruto das elucubrações coletivas, todo o edifício que caracteriza a Bruxa está sob influência dos porões de desejos recalcados do modo operante da vila, modo esse que se faz valer do desaparecimento como dispositivo social e político. Na contramão dessa história, a autora assume o papel de exumação, convidando os cadáveres para se sentarem à mesa de jantar.

É por meio das tragédias íntimas de cada um dos habitantes que somos expostos aos trabalhos realizados pela Bruxa. Trabalhos mágicos, abortos, e todo tipo de encomendas, que os narradores recorrem apenas às sombras para solicitar. Esses mesmos desejos e libidos recalcados surgem em “Páradais” quando Polo escuta as confissões de Gordo acerca das atrocidades que permeiam seu imaginário cotidiano. Em uma sociedade em que as perspectivas de futuro foram zeradas pelas relações hostis de trabalho e também de sua ausência, como em “Temporada de furacões” e cujas trocas fazem da supressão do outro sua tônica principal, Melchor traz à tona a relação dos desejos mediados pela violência, em um contexto de disparidade e degradação total dos vínculos humanos e sociais.

Seja num condado ficcional, seja nas bordas de um condomínio de luxo, a única relação estabelecida é a da vigilância obsessiva e a perseguição misógina num fim de linha que nos lembra a todo o momento as ruínas do abismo civilizatório que nos cerca. 
 
 

“Páradais”

  • Fernanda Melchor
  • Tradução de Heloísa Jahn
  • Mundaréu
  • 144 páginas
  • R$ 59
 

“Temporada de furacões”

  • Fernanda Melchor
  • Tradução de Antonio Xerxenesky 
  • Mundaréu
  • 216 páginas
  • R$ 58 


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