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Estado de Minas PENSAR

Em 'O lado minguante', André di Bernardi apresenta mundo de contrastes

Livro leva o leitor a um passeio por um realidade de cores e flores, mas também pelos bosques da solidão, medos e alegrias


26/08/2022 04:00 - atualizado 25/08/2022 23:55

O poeta e jornalista André di Bernardi
De Paris a Ouro Preto, passando por Brasília, Istambul e Nova York, os caminhos dos poemas de André di Bernardi são muitos (foto: RICARDO DI BERNARDI/divulgação)

 

Há sempre muitos modos de ler e d’escrever um texto, seja na forma livro ou em qualquer outro de seus arranjos tipográficos ou de diagramação. Quando se trata de um livro de poesia, então, as possibilidades parecem se multiplicar. Nele, as palavras nunca são precisas. Nelas, há sempre um resto a incomodar, acariciar ou a inspirar.

Esse desassossego me veio novamente ao ler o belo livro “O lado minguante”, de André di Bernardi, recém-lançado pela Caravana Grupo Editorial. E aumentou ao passear por suas páginas e ao me deter para cavucar palavras para escrever este texto, e reencontrar um poeta reconhecidamente maduro, criativo e perspicaz, para quem “só são realmente belas/é claro, é notório/as palavras que despencam/que se desfazem líquidas, aquém/de todos os textos acadêmicos.”

Apesar dessa salutar desconfiança com os textos acadêmicos, foi neste mundo que fui me inspirar para propor maneiras de lê-lo. E foi no espaço conjugado da cartografia e da etnografia do texto e no texto que fui absorvendo-o lentamente. O que é possível mapear no texto? Ah! são infindáveis os caminhos pelos quais o texto nos conduz! Mapear a natureza na obra de André di Bernardi é fácil. Na linguagem literária do livro, os elementos primordiais fazem-se texto, palavras, gestos de inacabamento. O fogo é “o mais poderoso, o mais simples/o mais carente dos generais. /Ele, nobre comandante, que ao envolver/ reduz tudo que toca a quase nada”. O ar é majestoso n’“as nuvens, minuciosas, serenas, desgovernadas/o vento, o calor, o frio invisível/uma árvore, e a floresta inteira/e todos os bichos que nela sonham”. E a terra e a água? “As mulheres/(e a terra, e a própria água,/o próprio mar, e as folhas,/as árvores, e todas as sementes)/assimilam águas/que só elas e as suas crias.”

Na cartografia dibernardiana, dos quatros elementais, é a água, sem dúvida, que sintetiza tudo. O verbo é a-mar, o elemento é amor; la mer do amor é a mulher, síntese, mistério e perigo. Medo, pois desconhecida e fundadora! No encontro de amor com duas mulheres que se nasce pai. “Da mesma forma que só soube/do que sou depois/do nosso primeiro encontro/(vi nascer, nasci).”

Cartografia de cidades, espaços, vastidão. Palavrear é tentativa, vã, de domar o desconhecido. Ele desloca e re-aparece. De Paris a Ouro Preto, passando por Brasília, Istambul e Nova York, os caminhos dos poemas são muitos. Aí, há espaço imenso para etnografar gentes, sentimentos, dores e cores, muitas cores! O poeta brinca com palavras, assim como brinca com as cores.

Aliás, nos poemas, uma etnografia das cores nos levaria, sem dúvida, a uma variedade imensa de flores: rosas, begônias, tulipas, gérberas... até o ipê é uma flor! Nesse sentido, o livro de Di Bernardi pode ser lido, também, como um pequeno tratado das cores e das flores. Não é por acaso que um seu poema se chama “A vitória das cores sobre os elementos” e o “Das sete cores, ou mais”. As cores são elementares! O passeio pela poesia ou, se preferirem, pelo bosque inventado linguageiramente por Di Bernardi, nos permite cartografar caminhos e identificar uma inumerável gama de formas das flores e das cores, ou navegar mares e estações variadas de amores, há também espaço para medos e temores. É do medo que se fala de lá de onde faltam palavras, pois lá “o início, o brilho da hora principal/ de seduzir o medo, que me compus”.

Do medo que se vive, do medo que se fala nos poemas, nos dão pistas para uma outra entrada: os poemas como indício ou como sintoma de um tempo em que a morte ronda e a escrita parece ser um recurso para domá-la por meio da palavra. Vive-se! Morre-se! Escreve-se! Inscreve-se no texto porque o morrer é contínuo. É preciso saudar/saldar o viver!

“Escrever, escrever, escrever” repete incessantemente Di Bernardi, num eterno exercício de caligrafia: “Escrever, escrever, escrever/até alcançar, até merecer/a caligrafia definitiva”. O eu lírico fantasia que em “linha reta/ sou melhor abismo/só tenho sorte quando escrevo”. Mas tem a consciência de que escrita não extirpa o medo, pois ele desloca e volta: “Mas tenho medo/dessa caligrafia não ser mais a minha/ porque amanhã já é outro o idioma/ das dálias e dos pássaros reticentes”.

Mas escrever é, também, ler, passear pelos bosques da solidão, dos medos e das alegrias dos outros, em todas as artes. De Simbad a Diadorim, de Drummond a Picasso, tudo está ali. Nestes tempos sombrios, é na lectoescritura que se busca algum alento, proteção e guarda, e alguma clareza se possível. “A luz de Monet, os touros de Picasso/um brinco, um poema, um colar de cães/nos protege e guarda/de todos os males, amém.”

* Luciano Mendes é escritor e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
 

 
Sei de um Deus


Não quero, não preciso
de um Deus narcótico
ou subserviente,
que entre na minha casa
como um mero criado
para apenas lavar o pátio
da minha alma cansada.


Não acredito
neste Deus leve,
neste Gari criado por nós
para apenas catar e resolver
problemas alheios,
indiferente ao périplo
das estrelas tantas.

Sei de um Deus
que nos faz fortes,
que apenas fica em silêncio
quando sentimos os nossos
maiores medos,
um Deus que apenas sugere,
comovido, uma postura ereta,
uma palavra, ou um verso de inícios.

Sei de um Deus
que bebe conosco
que mais chora, que ri
quando conta mazelas,
que se desespera
quando perco a esperança
mais que se alegra
quando, logo depois me vê,
solitário, meio bêbado,
inventando barcos de fuga,
na tempestade, no mar solto.
 
 
“O lado minguante”
  • De André di Bernardi
  • 156 páginas
  • Editora Caravana
  • R$ 46,90 


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