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Estado de Minas PENSAR

Adriana Lisboa reflete sobre a perda em 'Todo tempo que existe'

Premiada autora de romances e contos lança primeiro livro de ensaios, com recordações familiares e afetivas


08/07/2022 04:00 - atualizado 07/07/2022 22:34

Adriana Lisboa
Adriana Lisboa, autora de romances premiados como 'Sinfonia em branco'. Uma pausa na ficção para ensaio autobiográfico publicado pela editora mineira Relicário (foto: Divulgação)
Revoltar-se, emudecer, manter diálogos improváveis, enfrentar a saudade, sentir culpa. Tudo faz parte do ciclo de repetições quando se perde alguém. Se a fatalidade impera e o distanciamento físico ocorre devido à morte, esses ritos tendem a se tornar mais pesados, fruto da impossibilidade de reencontro. Às vezes, há quem transforme todo o luto em arte. Caso de Adriana Lisboa com o livro “Todo o tempo que existe”, recém-publicado pela editora mineira Relicário. 

Em um espaço de sete anos, ela vivenciou a morte dos pais. A da mãe, Gilda, vitimada por câncer. A do pai, Arnaldo, em 2021, devido a doença coronariana agravada pela covid-19 contraída em hospital onde estava internado. Dias depois da segunda perda, a escritora desabafou inscrevendo-se. Desenhou no corpo da letra a dor. Produziu 40 páginas, arcabouço inicial da narrativa agora editada. Visceral, o princípio do exercício se alimentou de um não saber o que fazer “com essa presença da ausência que passa a nos acompanhar depois de experiências assim”.

No jogo – portanto, negociação – entre vida e morte, a narrativa de Lisboa resultou em texto sereno, elegante e poético. A memória sustentou a eternidade possível. Primeiro ensaio autobiográfico da escritora, mais que relato sobre o luto, o livro terminou se constituindo elogio ao amor. Aquele nutrido por ela pelos pais e o deles pela filha concebida tardiamente, anos depois de uma irmã e um irmão.  

Desmesura reverberada e, paradoxalmente, contida por reflexões ancoradas em discursos de escritoras, filósofos e artistas. Diálogos intelectuais que perfazem tentativa de racionalizar a exacerbação do pungente. Muitas vozes a ajudam. Gente como Marguerite Duras, Rosa Montero, Mahmoud Darwish, Joan Didion, Val Plumwood e até o pensador pop da nossa era digital Byung-Chul Han. 

Às vezes, a polifonia provoca pequeninos desvios no tom delicado característico da autora de romances como “Sinfonia em branco” (Prêmio José Saramago) e “Um beijo de Colombina”. Estratégia da escritora, penso, para evitar o efeito narcísico da narrativa em primeira pessoa. Ou, talvez, receio de se tornar piegas caso o mergulho no universo familiar se tornasse único caminho de expressão. 

Engana-se quem achar que se trata de livro definido pela tristeza. Há de tudo. Momentos divertidos, tensos, suaves, prosaicos. O fio é a reiteração de perguntas sobre o que é o amor – “Dura quanto o amor para ser amor?”, indaga-se a autora-narradora-personagem. Cenas, frases, um apartamento à venda, paisagens, objetos e uma fotografia publicada no livro se tornam motivações para a investigação sobre o sentimento no interior de uma família imperfeita como tantas outras.

Nesse exercício de diálogo com seus mortos, reflexão desdobrada pela linguagem, o livro de Lisboa se aproxima a outras recentes escritas autobiográficas dedicadas a tema semelhante. A de Bianca Coutinho Dias, em “Névoa” e “Assobia”, também publicado pela Relicário (2017), narrativa sobre a breve existência do filho Caetano. E à experiência da espanhola Rosa Montero em “A ridícula ideia de nunca mais te ver” (Todavia, 2019), relato atravessado pela perda do homem amado. 
 

Nessa linhagem, as autoras mostram que falar da morte, a alheia e a nossa, é ultrapassagem exigente. Escrever sobre essa vivência, elaborá-la a partir da selvageria provocada pela dor, se faz gesto de coragem. Todo o lembrado está em carne viva e, por isso, o ato da escrita desafia lógicas, pois regido pela dissolução da cronologia. 

A começar pelo título, “Todo o tempo que existe”, Adriana Lisboa embaralha as dimensões do tempo, em um ir e vir das lembranças associadas a reflexões. Como resultado, a personagem e narradora, sem ser nostálgica, se apropria do passado com a vivacidade de quem continua a amar o vivido e deseja vê-lo compartilhado. E emociona quem a lê.   

TRECHO

“Todo o tempo que existe”

De Adriana Lisboa

Marguerite Duras disse que “escrever é tentar saber o que escreveríamos se fôssemos escrever”. Então, toda escrita é um improviso, mesmo quando se tem tudo perfeitamente planejado – “perfeitamente planejado” é, ademais, uma contradição de termos, como a vida deixa claro todos os dias.

Estou aqui, com este texto, enquanto o céu se ilumina de pássaros e a casa ainda dorme. A vida é um não saber o que virá. De modo que, talvez, mais do que viver para narrá-la, vivamos ao narrá-la. Ou: viver é narrá-la, é compô-la, improvisá-la o tempo todo. Rosa Montero também diz algo assim: “Para viver temos que nos narrar”. Talvez as narrativas escritas ou inventadas e a narrativa da nossa vida tenham um pa- rentesco muito próximo.

Será por isso, quem sabe, que contamos histórias? Para reproduzir a vida como num infinito jogo de espelhos e, desse modo, ter a impressão de que ganhamos certo poder mágico sobre ela? Por outro lado, como saber parar antes que baixe em nós a compulsão do sentido último das coisas? Do fim da linha? Como respeitar aquele mistério ao qual me referi antes?

“O comentário prolonga de maneira interminável a linguagem; está a serviço de uma busca impossível de se extrair a última, a derradeira gota de significado”, escreve Peter Schwenger num livro sobre a arte da escrita assêmica – uma escrita composta de grafismos e alfabetos alternativos, uma escrita sem semântica, que não “quer dizer”. Então, quem sabe na busca de sentido da nossa vida seja possível incluir também a aceitação da falta de sentido. Que parece ser a tônica, tantas vezes. Mas não para cair na centrífuga niilista. Somente para reconhecer, com um sorriso e com uma mesura, o quanto dessa experiência nos ultrapassa.
 

O budismo tem uma fascinante concepção da ideia de “eu”. Que é, precisamente, a de que esse “eu” talvez não seja localizável, pelo menos não da forma totalitária como estamos habituados a pensar nele. 

Misteriosíssimo e contraintuitivo isso. Se passamos o nosso tempo, afinal, protegendo, cultivando, ornamentando, não raro cultuando esse suposto eu. Se chegamos ao ponto de transformá-lo em produto, nós como nossos próprios bens de consumo, esse talvez o projeto neoliberal mais perverso, como disse meu amigo Rafael Gallo recentemente numa conversa que tivemos – bastam cinco minutos nas redes sociais para atestar isso. E que belos e patéticos somos, crianças pequenas afirmando incessantemente seu valor num mundo povoado por outros sete bilhões de crianças pequenas que fazem o mesmo.

O que será o meu eu senão mais uma narrativa, composta de uma variedade de experiências de ordem física, mental e emocional? Um outro mistério inapreensível. Uma narrativa que se constrói o tempo todo. Se eu escrevo “sou escritora”, “sou brasileira”, “sou mãe” – essas são narrativas com as quais me elaboro. Tenho, ademais, minha própria concepção do que é ser escritora, do que é ser brasileira, do que é ser mãe. Que certamente é diferente da de outras escritoras e de ou- tras brasileiras e de outras mães. E isso é cambiável de um momento ao momento seguinte. Identidades muito mais sutis também. Onde realmente estamos, no meio de tudo isso, na “confusão da biografia humana”, para usar as palavras de Philip Roth?

Mais curioso e complexo tudo fica quando nos damos conta de que esses castelos medievais do nosso eu não nos trazem, necessariamente, equilíbrio e bem-estar, embora possamos alegar que tudo aquilo que fazemos, inclusive como coletivo, é buscar a felicidade. Mas o sistema não encontra repouso atrás das trincheiras do eu. Sabemos que o que grassa mesmo nas redes sociais, por exemplo, é a ansiedade e a competitividade (não digo nada de novo). Para Byung-Chul Han, “a mídia social constitui um grau zero absoluto do social”. Ele alerta que essa “total interconexão e total comunicação por meio digital (...) nos atrai a um loop infinito do ego, levando-nos, em última instância, a uma ‘autopropaganda, doutrinando-nos com as nossas próprias ideias’” (nesse trecho final ele está citando Eli Pariser).

Compomos as nossas narrativas, o que está muito bem se pensarmos em termos meramente instrumentais, para funcionar no mundo, mas nos identificamos com elas às raias do desespero. E no processo, emparedamos também as pessoas que conhecemos e com as quais nos relacionamos nos conceitos que temos sobre elas, nos papéis que desempenham em nossas vidas.

Duas das narrativas mais importantes da minha vida, com as quais me defini durante muito tempo, estão agora sendo dissolvidas. Uma delas é o apartamento dos meus pais, em Laranjeiras. A outra, o sítio no município de Cordeiro, que antes pertencia ao meu avô materno e depois foi desmembrado, ficando minha mãe com uma pequena porção da propriedade.

Nasci e cresci nesses lugares, escrevi neles, sobre eles, usando-os como cenário. Acompanham meu trabalho literário, direta ou indiretamente, desde sempre. E durante toda a vida relacionei esses lugares à vida dos meus pais. A estar com eles, morar com eles, ser recebida por eles quando já não morava mais lá. Ao acolhimento deles, à música que tocavam, à comida-afeto que ofereciam, ao café fresco no meio da tarde enchendo o ar de alegria, aos bem-te-vis, aos micos nos galhos do flamboyant, aos cachorros latindo para os micos. Às maritacas fazendo ninho no forro da casa, no sítio. À buganvília florida como um acontecimento. À minha mãe debruçada sobre seu tricô. Ao meu pai assistindo à TV Senado por puro exercício de incredulidade e indignação.

O apartamento e o sítio estão sendo postos à venda no momento que escrevo isto, o que equivale a uma espécie de segundo luto se sobrepondo ao luto pela perda dos meus pais. E o apartamento e o sítio estão à venda, é claro, por causa da perda dos meus pais. Porque na verdade não temos recursos nem motivos para mantê-los. Num último gesto, espa- lharemos as cinzas do meu pai no sítio, junto às da minha mãe, no mato, na terra, aquela terra que nos deu tanto (...).

Capa do livro 'Todo o tempo que existe'
(foto: Relicário/Reprodução)
 
“Todo o tempo que existe”
• Adriana Lisboa
• Relicário
• 136 páginas
• R$ 49,90

Sobre a autora


Nascida no Rio de Janeiro, em 1970, Adriana Lisboa é autora dos livros “Sinfonia em Lisboa”, “Um beijo de colombina”, “Rakushisha”, “Azul corvo”, “Hanói” e de “Deriva” e “O vivo” – estes últimos, dois volumes de poesia lançados pela editora mineira Relicário. Suas obras já foram publicadas em mais de 20 países. “Todo o tempo que existe” é o primeiro livro ensaístico da autora, que, a partir da morte de seus pais, reflete sobre a finitude e traz à tona memórias familiares e afetivas. 
 
* Graça Ramos é doutora em história da arte e mestre em literatura brasileira


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