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Estado de Minas PENSAR

Roteiro de 'Hiroshima meu amor' é publicado pela primeira vez no Brasil

Com traumas de uma guerra íntima, volume que chega agora ao país é exemplar da força literária e cinematográfica da prosa da escritora Marguerite Duras


10/06/2022 04:00 - atualizado 09/06/2022 23:14

'Hiroshima meu amor'


Em seis de agosto de 1945, uma bomba chamada “Little boy” cai sobre Hiroshima. Num minuto de explosão morrem 60 mil pessoas. A catástrofe atômica deveria entrar no rol das barbaridades da história. Ainda é disseminada, porém, como um instante que sela o fim da Segunda Guerra Mundial – e o prenúncio de uma era de paz. Escrito em 1958, pouco mais de uma década após a explosão, o roteiro de “Hiroshima meu amor” vibra numa perturbadora atualidade. Para criar o filme, o cineasta Alain Resnais convidou a escritora Marguerite Duras (1914-1996). 

“Você não viu nada em Hiroshima. Nada”, diz o amante japonês depois da transa, com os corpos suados. Esse bordão se repete ao longo do roteiro, e instiga. Duras, portanto, evita lamúrias sobre o horror de Hiroshima. Ela quer avivar as centelhas de uma paixão entre um homem e um mulher. Discretamente, ela nos pergunta: o que é possível olhar na experiência de uma bomba atômica?. 

Ele é um engenheiro japonês. Ela, uma atriz francesa. Os dois se encontram, vivem uma súbita paixão fora do casamento, longe de casa. No roteiro, a química atômica de um encontro clandestino se instaura nos corpos, nas falas e, sobretudo, nas memórias passadas, no esquecimento que está por vir. 

A amante francesa participa de um documentário sobre Hiroshima. Duras nos conduz a um filme que evoca outro filme, a uma bomba que explodiu outros sentimentos e a uma paixão que não terá futuro. Por isso, toda a marcante melopeia verbal, toda a beleza dos diálogos de “Hiroshima meu amor” toca em feridas recalcadas e memórias fugidias, com sentidos difíceis, escapáveis.

Pouco antes desse roteiro, Alain Resnais acabava de produzir o documentário “Noite e neblina” (1956), que, a partir de filmagens diretas nos campos de concentração nazistas, evidenciava os crimes do Holocausto. Duras, por sua vez, realizava programas para a televisão francesa e tinha publicado “Moderato cantabile”, um romance com uma prosa musical que experimenta notações de fala, num arranjo e contraponto, um pensamento num fluxo lírico. “Hiroshima meu amor” pode ser visto como um documentário de ficção e um diálogo sobre o pânico de uma paixão impossível – uma troca sobre traumas, uma conversa sobre perturbações.

Da trama de “Hiroshima meu amor”, destaco a história que a protagonista viveu em Nevers, pequena cidade do interior da França, que tinha sido dominada pelos nazistas. Adolescente, e crescendo num contexto adverso, a protagonista se apaixonou por um soldado alemão. Ela viveu um amor verdadeiro com um inimigo de guerra. Habilmente, Duras modula a descoberta do amor, de uma história íntima para um ambiente bélico. 

Ela vive escondida numa cave, num porão, para não ser molestada pelos franceses, que condenavam as paixões com alemães como atos de traição de guerra, sujeitos a punições. No fluxo da fala da amante francesa, no novelo das suas doloridas memórias sobre a Segunda Guerra Mundial e o dia da bomba de Hiroshima, ela remete à cabeça tosada e raspada que marcou publicamente a humilhação das mulheres europeias apaixonadas por soldados inimigos.

Cumplicidade 

Para Duras, a guerra não é só externa, concentrada nos horrores atribuídos unicamente ao outro, ao japonês, ao alemão. Assim como numa paixão, e numa história do amor, numa guerra todos são cúmplices. A guerra desperta atrocidades e recalques guardados em cada indivíduo, em comunidades que hostilizam as diferenças e singularidades dos seus cidadãos para voltar a viver numa hipotética paz, que é uma farsa. 

Além dessa reflexão, Duras adiciona um ponto de vista feminino sobre a guerra, de quem aguarda o fim da náusea enquanto a cidade se silencia e fica à espera de notícias lentas, movida por um cotidiano básico. A experiência da guerra não se resume às bombas lançadas – ela também remete ao anseio de voltar a habitar a casa e a cidade de uma forma frugal, prazerosa.

“Hiroshima meu amor” também é exemplar na força do estilo literário e cinematográfico de Duras. A edição da Relicário acerta ao publicar os apêndices, que remetem a imagens potentes e submersas que só alcançam a superfície depois de encantadas pelo fluxo verbal. Ali, latentes, encontramos cenas que Resnais inseriu na sofisticada montagem do filme. Duras foi precursora de uma geração de escritores cineastas – tais como Pier Paolo Pasolini, Robbe-Grillet, Peter Weiss e Georges Pérec – que fizeram do cinema uma arte essencial para ter no horizonte uma reconstrução simbólica do pós-guerra. Ela foi pioneira numa escrita fílmica que se disseminou durante os anos 1970.

É doloroso constatar que ler “Hiroshima meu amor” ainda diz muito sobre os impasses atuais, vividos por todos. A Europa abriga o espectro de uma nova guerra, na qual uma próxima catástrofe atômica já assume um tom de normalidade nas manchetes, nos posts e tweets. No Brasil, não são ocasionais os instantes em que se inflama rumo a uma guerra civil e à banalização de genocídios que permeiam nosso cotidiano. Nessa lida, Duras nos sugere um olhar interno, de busca pelo autoconhecimento, que se furta da tolice do ódio, e remete a um amor mínimo, básico, como uma semente da resistência. 


Prefácio

(Trecho de “Um filme escrito em papel”, de Gabriel Laverdière)

“(...) Em seu texto, a própria Marguerite Duras torna possível ver. Na ausência do filme, o texto não apenas diz, mas também mostra. A título de roteiro, ele se apresenta tanto como uma obra literária quanto como uma obra cinematográfica. Duras mistura gêneros aqui: Hiroshima meu amor na tela foi um ‘romance escrito em película’; aqui é um filme escrito em papel, a manifestação de uma literatura cinematográfica. O leitor torna-se uma espécie de espectador ao ler o texto, a quem o escritor convida para uma representação quase romanesca da narrativa destinada à tela. A ficção é justamente rodeada pelas partes do trabalho que o filme excluiu. Por todas essas razões, o roteiro não é uma versão menor do trabalho; ele é também a obra. É o filme que Duras não fez, ou que ela terá feito, para nós leitores, na página.”



Coleção Duras

Publicado pela primeira vez no Brasil, “Hiroshima meu amor” é o segundo volume da Coleção Marguerite Duras, da Relicário. A editora mineira já havia publicado o livro “Escrever”. A tradução é da escritora Adriana Lisboa e a coordenação da coleção é de Luciene Guimarães de Oliveira. “Os títulos que integram a Coleção Duras são representativos de sua obra e transitam por vários gêneros, passando pelo ensaio, roteiro, romances e o chamado texto-filme, proporcionando tanto aos leitores entusiastas quanto aos que se iniciam na literatura durassiana uma intrigante leitura”, afirma Luciene.  

“Hiroshima meu amor”
• Marguerite Duras
• Tradução de Adriana Lisboa
• Relicário Edições
• 196 páginas
• R$ 57,90



* Pablo Gonçalo é professor do Departamento de Audiovisuais e Publicidade da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB)


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