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Estado de Minas LITERATURA

Marcelo Ferroni escancara distopia tecnológica em 'As maiores novidades'

No livro, autor se apropria da viagem no tempo para mostram o caos corporativo e a dominação das big techs na vida contemporânea


11/03/2022 04:00 - atualizado 11/03/2022 00:35

Marcelo Ferroni
Marcelo Ferroni: 'Vivemos em uma distopia tecnológica' (foto: Phil Machado/Divulgação)
A onipresença nas nossas vidas das chamadas big tech –  empresas gigantescas de tecnologia  –  e a concentração de praticamente todos os aspectos cotidianos no celular já causavam uma inquietação no escritor Marcelo Ferroni. Mas a fagulha para seu livro “As maiores novidades: uma viagem no tempo” (Mapa Lab) só veio quando ele se deparou com uma propaganda que prometia um celular que tirava fotos mais rápido do que os concorrentes. Na trama, uma dessas big techs cria o Challenger Ten, um novo aparelho, mas com um defeito seriíssimo: as fotos e vídeos registram o passado, segundos antes de serem efetivamente registradas. Às vezes aparecem como borrões; em outras, sugerem um passado diferente do que realmente ocorreu, deixando aberta a brecha de uma mudança na linha do tempo.

Mas se engana quem acredita que, a partir daí, virá uma história tradicional de ficção científica. Notório por flutuar entre diversos estilos literários, sem se prender a ne- nhum deles, Ferroni se apropria da sci-fi para mirar seus verdadeiros alvos: a dominação tecnológica dos dias atuais e a desconexão do mundo corporativo com o real.

Na novela de 128 páginas não emerge ne- nhum protagonista. Por meio de vários pontos de vista, Ferroni destrincha um caos corporativo clássico, que surge após a descoberta de que o celular grava o passado: primeiro, as diversas camadas de comando da empresa tentam entender quem errou na produção, com um conflito aberto entre a sede da empresa, na Europa, e a fábrica, na Coreia do Sul. Depois, claro, as “mentes brilhantes” se debruçam sobre como tirar vantagem do problema e comercializar o apa- relho mesmo assim – sem se atentar para as reais possibilidades do que haviam criado por acidente. 

“Vivemos em uma distopia tecnológica. Toda nossa vida, a própria essência do trabalho, migrou para os aplicativos. A realidade das mídias sociais é a nossa realidade”, avalia Ferroni, que volta a assinar um livro solo após a experiência coletiva de “Corpos secos”, escrito em parceria com Luisa Geisler, Natalia Borges Polesso e Samir Machado de Machado e vencedor do prêmio Jabuti 2021 na categoria roman- ce de entretenimento. Ao Pensar, ele analisou a ameaça tecnológica que vivemos, as diferenças entre seus vários processos de escrita e os riscos de se brincar com a viagem no tempo.
Reprodução de Ângelo Bottino
(foto: Ângelo Bottino/ reprodução)

O seu último livro foi “Corpos secos”, feito em conjunto com outros três autores. Como foi voltar a escrever sozinho? 
Foi tranquilo. Em “Corpos secos”, conversamos muito, trocamos muitas mensagens, nos editamos muito, mas a escrita foi individual. Claro, depois a gente mesclou e entrou um no texto do outro, mas traba- lhei até mais como editor do que como autor em “Corpos secos”. Escrevi 50 (páginas) e editei 200. 

Você se tem destacado por uma variação de gêneros literários entre suas obras. Por exemplo, “Das paredes meu amor os escravos nos contemplam” (2014) é um thriller policial, enquanto “Método prático da guerrilha” (2010) combina história e ficção. Como funciona, na sua escrita, esta alternância entre os estilos? Ela é premeditada? 
É fluida. Não programo de antemão como cada livro vai ser: se vai ser um thriller, um policial, um realismo. Mas gosto muito de literatura de nicho, e “Corpos secos”, marca um momento pessoal de mudança de direção na minha literatura, uma vez que eu já saía um pouco da realidade. Com “As maiores novidades”, eu entro de vez em um nicho que é a questão do trabalho e da competição entre as pessoas. O tema viagem no tempo está muito na nossa infância, nas séries, nos filmes, e eu queria dar meu pitaco, e o resultado flerta um pouco com o terror, um terror distópico. 

Ao levar a possibilidade de viagem para um celular, você conseguiu atualizar o tema da viagem no tempo, que deixou de ser feita em máquinas pesadíssimas, naves ou carros futuristas e foi para um objeto prosaico, do nosso cotidiano. Como surgiu a inspiração dessa história? 
Eu queria fazer um conto, fiz alguns rascunhos, e comecei a pesquisar, ler livros de ciência, de mundos paralelos, e viagem no tempo. Um dia, encontrei uma propaganda com um slogan de um celular que tira foto mais rápido que os outros. Aquilo me marcou, e comecei a migrar a questão da pressão e da dominação da coisa corporativa na nossa vida atual para o celular. Mas não foi planejado, eu vou tateando e escrevendo várias versões da mesma história. O texto muda o tempo todo, e eu descubro coisas escrevendo. A viagem no tempo no livro, por exemplo, não é uma viagem clássica: é a informação que viaja. A pessoa fala com ela no passado e a mente se transfere para o passado, e assim eles conseguem voltar a      consciência no tempo. Isso surgiu só na última versão do livro. 

A Challenger certamente poderia ser uma das chamadas big techs (Apple, Google, Facebook, Amazon, Microsoft). Como avalia a dominação e a dependência que essas empresas causaram na nossa vida?
É impressionante. Vivemos em uma distopia tecnológica. Toda a nossa vida, a própria essência do trabalho, migrou para os aplicativos. A realidade das mídias sociais é a nossa realidade, elas começam a se apropriar do nosso passado, e mudar a realidade.  Estamos inclusive vendo isso com a Meta (ex-Facebook) querendo criar uma realidade virtual, o metaverso. 

Enquanto as cabeças ditas pensantes estão resolvendo como vender o celular, os funcionários da fábrica da Coreia, ao melhor estilo marxista, planejam a tomada do meio de produção mudando o passado, usando o celular que eles criaram. É o único jeito de escapar do capitalismo, mudar o passado até você nascer herdeiro ou bi lionário? 
A turma da Coreia quer o poder da empresa para eles. Mas é uma tomada irresponsável, pois ao fazer isso eles vão alterando a realidade de todo mundo. Conforme vão mudando o passado, tomando a empresa e eliminando os rivais, começa a impe- rar o caos. É um retrato das corporações, com a absoluta falta de controle e de regulamentação. 

O livro não tem exatamente um protagonista claro, dando a entender que o personagem principal é justamente a disfunção do mundo corporativo. No seu processo, essa escolha foi intencional?
Queria fazer um romance coral, que cada capítulo fosse narrado por uma das pessoas na reunião. Conforme eu fui escrevendo, puxei mais um ou outro personagem, mas os pontos de vista estão todos misturados, têm o mesmo peso. Mesmo o CEO da empresa acaba sobrepujado e surpreendido com tudo que acontece na trama.

Trecho

“Estão fechados na salinha de reuniões do décimo nono andar desde o final da tarde, tentando entender o que houve de errado com o Challenger Ten. Maxwell estivera ali horas antes, fora tirado do jantar de aniversário da sogra para ver pessoalmente o que Eduard Carlos tentava lhe explicar por telefone. Ele não podia homologar um pedido de revisão para a fábrica em Jucheon sem antes ter certeza do que estava acontecendo. — Como assim, grava o passado? — disse, e Ed lhe mostrou.

O gerente usava uma camisa polo cor de vinho, calça de sarja. Patricia nunca o tinha visto com aquele tipo de roupa, mais informal. É um homem muito pálido e curvado, com os cabelos penteados de lado. Havia derrubado uma gota de gordura na barriga, não tinha notado. Estava ainda mais mortiço que o normal. Parecia a ponto de sofrer uma de suas enxaquecas. Patricia não entendia como eles podiam ver aquilo como um defeito. Era um desvio, sem dúvida; mas apontava para uma série de possibilidades. Ela tinha medo e também expectativa. Seus olhos se embaçaram com lágrimas na primeira vez em que tirou uma selfie e viu que seu rosto não estava lá, na tela. Ed e Maxwell no entanto encaravam aquilo como um problema, e um pro- blema dos grandes. O técnico, porque seria obrigado a ficar muito além do horário e fazer coisas que não tinha programado. Patricia trabalha com ele há cinco anos e sabe como é metódico quando se trata do horário de saída. No caso do chefe, a menor possibilidade de que algo possa dar errado implica que ele vai levar a culpa. Quando isso ocorre, ele deflagra no mesmo momento seus mecanismos de autodefesa, buscando culpados.” 
Capa do livro 'As maiores novidades: uma viagem no tempo'

“As maiores novidades: uma viagem no tempo”
Marcelo Ferroni
Editora Mapa Lab
128 páginas
R$ 49


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