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Em livro, historiadora esclarece o surgimento da corrupção no Brasil

Em "Ladrões da república - Corrupção, moral e cobiça no Brasil séculos XVI e XVIII", Adriana Romeiro revela o início dos desvios em tempos coloniais


21/10/2023 04:00 - atualizado 20/10/2023 23:31
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'Ladrões da república - Corrupção, moral e cobiça no Brasil, séculos XVI e XVIII', Fino Traço, UFMG
"Ladrões da república - Corrupção, moral e cobiça no Brasil, séculos XVI e XVIII", lançado neste ano pela editora Fino Traço, reconta a origem da corrupção desde o desembarque dos portugueses no território até então ocupado pelos povos indígenas (foto: Reprodução)

 

Doutora em história pela Universidade Estadual de Campinas e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Adriana Romeiro transporta a discussão, tão atual e constante, para uma época em que os desvios políticos não eram necessariamente um crime, mas sim ataques diretos ao rei. 

Em “Ladrões da república - Corrupção, moral e cobiça no Brasil, séculos XVI e XVIII”, lançado neste ano pela editora Fino Traço, ela reconta a origem da corrupção desde o desembarque dos portugueses no território até então ocupado pelos povos indígenas. Segundo a historiadora, mesmo na terra sem lei onde o enriquecimento ilícito era a regra, ainda havia aqueles que estavam vigilantes e se ocupavam em denunciar os crimes. 

Ao longo de 420 páginas, ela detalha como o cidadão comum que ocupou o país a partir de 1500 possuía uma noção refinada do que constitui o bem público e se revoltava com os abusos do colonizador, incluindo aqueles que não estavam especificamente descritos dentro de uma legislação. “A fronteira entre o lícito e o ilícito pertencia, portanto, a essa zona fluida de concepções morais de inspiração cristã, de obrigações sociais e de costumes, a partir das quais se reprovaram as ações tidas por iníquas, sem que se fizesse referência a alguma norma jurídica específica”, sintetiza. 

Para a historiadora, a corrupção estava escrita em um “emaranhado de tradições e costumes”, firmados na moral cristã e que eram comuns até para o cidadão não letrado. Mas, enquanto as ilicitudes dos homens públicos eram condenáveis eticamente, ainda se careciam de maneiras de punir o crime da elite colonial e pouco se sabia sobre o próprio rei. 

Construído sobre uma extensa pesquisa documental, o livro demonstra o que que se entendia como corrupção na época, permitindo a formulação de paralelos com conceitos modernos, tão comuns para quem acompanhou os desdobramentos da política nacional nos últimos 20 anos. De acordo com a historiadora, atualmente a dimensão moral não se sobrepõe ao jurídico, mas ainda se encontra presente já que o imaginário sobre um bom governo foi sendo formado ao longo dos séculos. 

“Eu procuro mostrar que havia, sim, uma noção de público. Aqui em Minas, em Vila Rica, as pessoas sabiam que as pontes, os chafarizes, isso tudo pertencia a república e que, portanto, não poderia ser apropriado para uso pessoal. Se a gente pegar as denúncias sobre corrupção se percebe uma noção de público muito arraigada no imaginário das pessoas”, disse. 

Esses e outros pontos que cercam a corrupção do Brasil colônia são o tema da entrevista com a professora e doutora em história, Adriana Romeiro, ao Pensar, a seguir. 

Por que pesquisar corrupção no Brasil colônia, sendo o acesso à documentação atual mais fácil, como tema tão recorrente na vida pública? 
Eu meio que caí por acaso Topei com esse tema da corrupção ao longo de outras pesquisas que eu fiz no passado. Sempre aparecia uma referência na documentação sobre corrupção. Na época eu tinha foco em outro tema e chegou o momento que eu falei: 'Não, vou abraçar esse tema'. É interessante, porque pouco se estuda no Brasil a corrupção do período colonial. De um modo geral, existem raríssimos estudos, muito poucos. E claro, para a gente entender a corrupção hoje no Brasil, a gente tem que entender a corrupção no passado, essa cultura política que foi gestada a partir do século 16 e que explica muito o que acontece hoje. 

Você ainda traz conceitos que datam de antes, vindo da Grécia e Roma antiga. Qual a ideia de buscar conceitos tão antigos quanto o Brasil? 
A ideia é que tudo aquilo que se pensava a respeito da corrupção nesse recorte temporal do século 16 ao 18, provém basicamente de duas grandes fontes: primeiro, a tradição bíblica e, depois, a tradição antiga, dos gregos e dos romanos. Não tem como você tratar da corrupção nesse período sem voltar um pouco no tempo. Os teólogos medievais e os autores romanos foram a grande referência para se pensar corrupção. 

Esses pensamentos iniciais do livro dão a ideia de que a corrupção era mais moral do que criminal. Como eles ajudam a pensar a corrupção na nossa república? 
Acho que a grande tese do meu trabalho é mostrar que, ao contrário de hoje, quando a corrupção é uma transgressão legal, uma infração, no passado ela era sobretudo um problema de natureza moral. Hoje a gente ainda tem essa dimensão moral, mas ela não se sobrepõe à questão jurídica. Cito o exemplo das joias sauditas do ex-presidente Jair Bolsonaro. Ele se apropriou de uma coisa pública que nesse sentido se está ferindo uma legislação sobre o assunto. Ele comete um delito de natureza jurídico legal, ainda que a gente possa falar que do ponto de vista moral e ético o comportamento dele é passível de crítica. Agora, no passado, você não tem uma legislação sobre a corrupção que seja exaustiva ou sistemática. Quando as pessoas criticam a corrupção, os parâmetros desta crítica são sempre de natureza moral. Elas vão, por exemplo, dizer que é inaceitável que um governante busque o dinheiro. O enriquecimento através de um cargo político é incompatível com a visão “nobre” de governar os povos. Tem todo um discurso que se baseia na moral, que é sem dúvida um discurso influenciado pela ética cristã.

Essa dimensão moral se perdeu? 
Eu acho que não, porque o cidadão comum ainda tem a perspectiva dele para a crítica da corrupção, que é uma perspectiva moral. Nós ainda não abolimos essa dimensão moral da corrupção. O que eu gosto de mostrar, e acho importante enfatizar, é que para nós a corrupção tem uma dimensão econômica. No sentido de a gente pensar no impacto econômico da corrupção e de que forma isso pode afetar o PIB e as instituições. Essa é uma perspectiva que está ausente no período em que eu trabalho. A corrupção como um problema de natureza econômica só se coloca lá no século 18. Até então, ela era vista como um problema de natureza política. 

O livro tem a comparação do corpo político com o corpo humano, onde os delitos que acometiam uma parte do corpo precisavam ser erradicados para não atingir a cabeça. Sendo o rei a própria cabeça, era mais difícil denunciar e corrigir? 
De um modo geral, a figura do rei está em um plano tão elevado que poucas vezes ela é passível de crítica. Se você tem um governador aqui em Minas no século 18, que oprime a população, se envolvem em contrabando de diamantes, um cara que age de uma forma ilícita, a crítica raramente chega à figura do rei. É como se o rei tivesse sido enganado e que escolheu aquele indivíduo com as melhores intenções e que foi traído por esse indivíduo. Agora, você tem aqui em Minas alguns motins lá do Rio São Francisco, por volta de 1736, o ataque à figura do rei. Se tinha ideia de que ele mandava os seus governantes para extorquir a população, mas isso é muito raro. As pessoas atacavam os governantes, mas raramente o rei e muito menos a monarquia. 

Muitos políticos que seriam os cabeças de esquemas maiores acabam jogando a culpa em seus braços e tentando “cortálos”. Como você vê o conceito por trás da impunidade? 
Nós temos uma cultura de impunidade que vem lá do século 16 e que foi muito fomentada pela forma com que a Coroa portuguesa reprimia a corrupção. A gente pode falar que a corrupção era vista pela Coroa como uma um ônus da colonização, algo que ela tinha que ser aceito para que o sistema funcionasse. Havia uma cultura de impunidade, e essa cultura chegou até os nossos dias. Engraçado que eu nunca encontrei um documento em que alguém assumisse explicitamente a participação em esquemas de contrabando, coisas ilegais. Ainda que tivessem provas inequívocas, conclusivas, jamais um acusado de corrupção admitia o próprio crime. Ele sempre tentava jogar culpa em outros, tentava argumentar, mas as pessoas não assumiam. Isso é o que a gente vê hoje em dia no Brasil, essa cultura da impunidade e a forma como as pessoas negam as culpas. Muito do Brasil de hoje está presente nesses documentos do passado. É uma herança maldita que a gente não consegue superar, porque são séculos e séculos em que ela foi se consolidando, enraizando, foi moldando a forma com que as pessoas, a sociedade e os governantes vêm o estado. 

O título traz a palavra república, mas se trata de um período bem anterior. Qual a ideia por trás do uso dessa palavra? 
Quando eu escrevo um livro, em algum momento da escrita aparece um título na minha cabeça, é uma espécie de revelação. Esse foi o primeiro livro que isso não aconteceu. Eu já tinha acabado de escrever e eu fiquei tentando achar um título que fosse adequado para explicar o conteúdo do livro. Eu cheguei a esse título e meu filho, que na época tinha 16 anos, virou para mim e falou: 'Olha mãe, vão achar que o seu livro é sobre o século 19, sobre a república'. O sentido da palavra república nos dicionários do século 16 e 17 tem haver não com o sistema político republicano, mas a república é toda comunidade política. Pode ser a própria república, pode ser a monarquia, pode ser oligarquia, enfim, república é qualquer comunidade política e a gente encontra muito na documentação do período colonial pessoas falando em república nesse sentido. As pessoas falam do bem comum que é aquilo que deve orientar as repúblicas. 

Então a república tem esse sentido que ficou no passado e ninguém se lembra, mas é o sentido usual nos dicionários da época. Então se trata da ideia da expressão em latim “res publica”, a coisa pública? 
Isso é uma coisa que eu procurei mostrar. As pessoas tinham uma noção daquilo que é público. Os historiadores até bem recentemente falavam que não havia uma noção do público e, portanto, não se pode falar em corrupção para esse período anterior ao século XIX. Eu procuro mostrar que havia, sim, uma noção de público. Aqui em Minas, em Vila Rica, as pessoas sabiam que as pontes e chafarizes pertenciam à república e que não poderiam ser apropriadas por uma pessoa para uso pessoal. Se a gente pegar as denúncias sobre corrupção, se percebe uma noção de público muito arraigada no imaginário das pessoas. 

Como esse imaginário de corrupção no antigo regime ajudou a moldar o que entendemos hoje por corrupção?
Acho que esse pode ser o tema do meu próximo livro. Eu fiquei pensando muito sobre essas concepções que eu estudei, a forma de pensar a corrupção, o bem comum, isso tudo aparece depois nos filósofos iluministas no século 18. Eu fico me perguntando em que medida a experiência colonial ajudou a moldar ou refinar essas ideias? Não sei, mas me parece muito impressionante que pessoas comuns estejam falando lá no século 17 coisas que depois serão ditas pelos grandes filósofos iluministas. 
 
LADRÕES DA REPÚBLICA Adriana Romeiro
LADRÕES DA REPÚBLICA - CORRUPÇÃO, MORAL E COBIÇA NO BRASIL, SÉCULOS XVI E XVII - Adriana Romeiro (foto: Reprodução)
 

LADRÕES DA REPÚBLICA - CORRUPÇÃO, MORAL E COBIÇA NO BRASIL, SÉCULOS XVI E XVIII 
Adriana Romeiro 
Fino Traço Editora 
420 páginas 
R$ 80



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