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Estado de Minas ENSAIO

Em 'Os amnésicos', Géraldine Schwarz expõe cumplicidade alemã com o nazismo

Ensaio detalha como avô da autora comprou empresa espoliada de família judaica e teve de encarar a reparação após a Segunda Guerra


04/02/2022 04:00 - atualizado 03/02/2022 23:53

Crianças em Auschwitz
Perseguidos na Alemanha nazista, judeus eram obrigados a entregar suas propriedades a preços baixos (foto: AFP)
A jornalista, escritora e documentarista franco-alemã Géraldine Schwarz não tinha motivação particular para se interessar pelos nazistas: ao longo da ascensão de Hitler, seus avós paternos, Karl e Lydia, originários da cidade de Mannheim, no estado de Baden-Württemberg, Sudoeste da Alemanha, não estiveram “nem do lado dos carrascos nem do lado das vítimas”.

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Eram “mitläufer”: pessoas que, como grande parte do povo alemão, se deixaram levar pela corrente, sem particular adesão à ideologia, num acúmulo de “pequenas cegueiras” e “pequenas covardias” que, combinadas, deram a Adolf Hitler as condições para cometer os crimes que cometeu. Finda a guerra, a política era uma temática proibida na família Schwarz. “Na atmosfera apocalíptica da Alemanha do pós-guerra”, Karl tratava de sobreviver, de enterrar o passado.

Mas, numa manhã de janeiro de 1948, o fantasma do Terceiro Reich se traduz em ameaça: na caixa do correio, Karl Schwarz encontrara uma correspondência da advogada de um certo Julius Löbmann, residente em Chicago, que tratava da lei decretada na zona alemã sob influência americana, que previa reparações para judeus espoliados sob o regime nazista. 

É essa história que emerge de um comentário inadvertido de Ingrid, tia, a Géraldine, décadas mais tarde, quando os avós paternos já haviam falecido.  Da pesquisa histórica empreendida pela jornalista nasce o ensaio “Os amnésicos”, que chegou ao Brasil pela Editora Ayiné, com tradução de Ana Martini e foi agraciado em 2018 com o Prix du Livre Européen. 

 “Decidi vasculhar os arquivos de Opa guardados no porão do edifício de Mannheim, que permaneceu com a família após a morte de meus avós. Entre os papéis amarelados, cuja legibilidade estava intacta, descobri um contrato estipulando que Karl Schwarz havia comprado uma pequena empresa de derivados de petróleo de propriedade de dois irmãos judeus, Julius e Siegmund Löbmann, e do cunhado deles, também judeu, Wilhelm Wertheimer, com cujas irmãs, Mathilde e Irma, eles tinham se casado. A Siegmund Löbmann & Co. estava localizada na área portuária de Mannheim, perto do Rio Neckar. Mas é sobretudo a data que importa: agosto de 1938, o ano de uma inexorável descida aos infernos para os judeus da Alemanha, submetidos a uma vertiginosa espiral de perseguições e discriminações, e obrigados a entregar suas propriedades a preços baixos”, relata Géraldine. 

Foi assim que Karl Schwarz, descrito como individualista, bom vivant, espírito livre, sem apego a ideologias, viu a oportunidade comercial. Aproveitou as medidas antissemitas para adquirir a empresa dos Löbmann. Como milhares de outros alemães, silenciou sobre os horrores cometidos pelo nazismo. Finda a guerra, o único sobrevivente da família Löbmann, executada em Auschwitz, surge com o pedido de reparação.

Em correspondência que se segue entre Karl Schwarz e os advogados, o alemão nega, com a compra da empresa, ter sido cúmplice do regime nazista. Géraldine assinala que, como no Terceiro Reich o crime era legalizado de modo a torná-lo aceitável, a Alemanha levou tempo considerável para lutar contra a amnésia e resgatar a memória histórica, não apenas para punir nazistas que se beneficiaram do regime, mas também para consolidar a democracia. 

Ao recuperar a história de sua família e transformá-la em ensaio, Géraldine Schwarz defende a memória como instrumento para evitar ameaças extremistas que, no século 21, voltam a rondar a Europa e outros países no mundo, entre os quais o Brasil: nada melhor do que a história para proteger a democracia.
Capa do livro 'Os amnésicos - história de uma família europeia''
(foto: Editora Âyiné)

“Os amnésicos — história de uma  família europeia”
• Géraldine Schwarz
• Tradução de Ana Martini
• Editora Âyiné
• 396 páginas
• R$ 99,90



Trecho

“Se ‘riscarmos o passado’ como alguns exigem, é esse patrimônio que colocaremos em perigo, essa vigilância diante das repetições de engrenagens assassinas, diante da apatia e do Mitläufertum. É esse despertar democrático que estamos colocando em risco para as próximas gerações. Quem se beneficiaria desse enfraquecimento? Aqueles que, de um extremo a outro da Europa, se arrogam o título de ‘Defensores dos Valores Ocidentais’? Mas que Europa eles defendem? A de um continente moldado em função de civilizações e culturas multiétnicas e multirreligiosas que legaram uma riqueza intelectual e artística inigualável? Ou a de um continente que o egoísmo nacional e a intolerância transformaram em uma besta imunda, destruidora de cultura e de civilização? O caminho de uma Europa para outra é aquele de uma inversão da moral. Quando o bem se torna o mal e o mal se torna o bem. Quando a empatia é uma fraqueza e o ódio é coragem. Quando os amnésicos triunfam.” (Trecho de “Os amnésicos – história de uma família europeia”, de Géraldine Schwarz)


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