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Estado de Minas PENSAR

'Notas para um naufrágio' relata drama de imigrantes no Mar Mediterrâneo

Davide Enia mistura escrita documental com memória autobiográfica para contar como a tragédia ocorrida em 2013 transformou a ilha siciliana de Lampedusa


04/02/2022 04:00 - atualizado 03/02/2022 23:59

Ilustração/Lelis
Com tradução inspirada de Wander Melo Miranda, 'Notas para um naufrágio' funciona como se ali convivessem dois livros: um voltado para a coletividade, a odisseia dos naufragados observada e descrita de forma precisa, e outra centrada no indivíduo, na travessia de Davidú em direção à relação com o pai e com a doença e morte do amado tio (foto: /Lelis)
Em março de 2020, quando eclodiu de vez a pandemia do coronavírus, a cidade italiana de Bergamo tornou-se, junto a Wuhan, na China, um símbolo da tragédia que começava a acontecer. De lá partiram caminhões carregando caixões dos vitimados pela doença, imagem de um cortejo funesto que ecoaria por todo o planeta. Também na Itália (não em terra firme, mas na água) há mais de vinte anos outro lugar se celebrizou, por ser epicentro de um drama que parece não ter fim: a ilha de Lampedusa.

Por sua localização entre a costa africana e a Europa, tornou-se palco da dramática rota de fuga de refugiados em direção a melhores condições de vida. As águas azuis do lugar são tema e metáfora de "Notas para um naufrágio", belo ensaio do dramaturgo Davide Enia, que parte dessa "palavra-continente" - Lampedusa contém, segundo o autor, da solidariedade à morte, do resgate ao naufrágio, da migração à fronteira. Mesmo para aqueles familiarizados com o assunto, presente em filmes, documentários, peças de teatro, livros e ensaios críticos, a leitura desta obra traz renovado olhar sobre a situação. Um livro belo e urgente, na inspirada tradução de Wander Melo Miranda para a editora Ayiné.

Quando o assunto entra na roda, é grande o risco de redundar na retórica da boa vontade, ou mesmo na estetização de uma dor que não se deixa apreender por palavras banais. Estudioso da questão, o antropólogo Michel Agier lembra que há que se ter cuidado com a ideia de ser porta-voz de uma causa. É necessário certo pudor ao comunicar tamanho sofrimento - afogamentos, infâncias interrompidas, estupros, mutilações, queimaduras, mortes, não há como recuperar essas histórias sem considerar a delicadeza envolvida no trato do tema.

Ser espectador de um naufrágio é atitude ética, como lembra o filósofo Hans Blumenberg. Olhar é se comprometer, sempre: "Talvez, no final, tudo se resuma a um dilema: se há uma pessoa se afogando no mar numa tempestade, quem sou eu? Aquele que se atira, mesmo arriscando a própria vida, ou aquele que, aterrorizado pela morte, fica agarrado à terra firme?", indaga Enia.

Armadilhas evitadas

Ao tocar em tantas feridas, o relato evita essa armadilha. Além de exercitar a escuta de modo permanente ao recolher depoimentos, o autor olha de frente a própria trajetória para narrar a experiência de várias visitas a Lampedusa. Como se fosse incontornável o gesto de encarar a biografia pessoal ao se lançar no corpo a corpo com as histórias da ilha, Enia se volta para dentro de si enquanto mira o espantoso drama que se desenrola diante de todos nós. Dramaturgo, ator e romancista, o escritor siciliano tem já publicado no Brasil "Assim na terra" (2013), romance inspirado na própria família.

Nele, acompanhamos Davidú e sua relação com pai e tio paterno, nesta obra alicerçada em torno da paixão pelo boxe. Davide tornado Davidú (tanto neste quanto no atual relato) foi o caminho escolhido para recriar ficcionalmente a própria história. Há um eu que vive as situações, mas há sobretudo um eu que escreve, e a grafia da experiência pessoal resulta no texto com ares autobiográficos e sabor de ficção.

“Notas para um naufrágio” funciona como se ali convivessem dois livros. Um voltado para a coletividade, a odisseia dos naufragados observada e descrita de forma precisa, e outro centrado no indivíduo, na travessia de Davidú em direção à relação com o pai e com a doença e morte do amado tio. Uma narrativa masculina, de homens meridionais que vêem a vida desenrolar-se diante do mar e compartilham silêncios, mas também gestos de ternura e cumplicidade.

O livro seria impactante se narrasse, como o faz, o drama que se desenrola nas águas de Lampedusa. Seria igualmente comovente se se concentrasse na relação dos Enia, no vocabulário comum das memórias familiares. Ao cruzar os dois caminhos, algo se potencializa, e o jogo textual cresce, na medida em que o individual ilumina o coletivo, e vice-versa. Como na cena da infância do aprendizado a nadar no mar: a confiança entremeada ao medo, o olhar do pai a sustentar de longe a coragem do filho; passagens que amplificam a discussão sobre a tragédia ocorrida sistematicamente no espaço líquido.

Ao frisar que faz parte de "uma cultura secular na qual calar é sintoma de virilidade", Enia traz para o centro da narrativa a própria questão da dificuldade de comunicação, tema central para quem se propõe a narrar tragédias. O que dizer, mas sobretudo como dizer, parece ser a pergunta maior. Nessa cartografia afetiva, o autor vai costurando depoimentos de profissionais, como médicos e mergulhadores, ao de moradores e sobreviventes, além de sua própria vivência na ilha ao lado do casal de amigos Paola e Melo, moradores do lugar. 

Há uma bela passagem no livro em que o autor destaca a necessidade de escuta diante dos sujeitos dessa história, porque cabe a eles o relato dessa travessia épica, do enfrentamento do medo, da morte e da violência. É preciso pôr em palavras tal  experiência, uma vez que são vidas que devem existir também como narrativa, salvando-as do esquecimento.Como no gesto de Paola, ao escrever na lápide de uma moça afogada um breve texto que recupera de alguma forma sua biografia, pois de outro modo no túmulo restaria apenas a data de morte.

Ou a afirmativa de Alberto, antropólogo romano radicado na ilha, ao sustentar que se sente privilegiado de estar no cais no momento do desembarque, para honrar a viagem dos migrantes. Ou mesmo quando o tio paterno relata ao sobrinho que ao seu lado, no quarto do hospital em que faz quimioterapia, está em tratamento um rapaz líbio chegado a Lampedusa em uma barcaça. Lutam juntos pela vida.

Todos já assistimos, com maior ou menor distanciamento, imagens terríveis de afogamentos, cenas de campos de refugiados e de protestos por más condições de vida nesses lugares. Vistos pela mídia e pelo senso comum como vítimas, ou, no pior dos casos, delinquentes, vale frisar que essas pessoas não se vêem como sujeitos falhados, mas como heróis da própria existência, pois sonharam um futuro e realizaram uma empreitada de dimensão épica.

Ao narrarem suas experiências, passam enfim a portadores de uma palavra política que mobiliza e reivindica espaço para além do mero consumo de sua figura (ou de sua fotografia). "Há outras coisas além do desespero. Há a vontade de resgate e de uma vida melhor, há as canções e os jogos, o desejo de alguma comida em especial e a vontade de se divertir com os outros", afirma Melo.

O paraíso não é aqui

No que concerne o Brasil, impossível não pensar no recente assassinato de Moïse Kabamgabe, de 24 anos, que trabalhava por diárias em um quiosque na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Espancado covardemente por cinco homens com pedaços de madeira e um taco de beisebol, o congolês teve o corpo amarrado após a morte ao lado do estabelecimento. Racismo e xenofobia em um episódio de barbárie tendo como testemunhas a areia e o mar. O paraíso não é mesmo aqui.

Lugar atemporal, de acolhimento e beleza, percebido como espaço de liberdade e alegria, o mar se transmuta em vertigem, espanto, naufrágio da própria existência: do movimento constante das águas ao imobilismo da imagem do cemitério, instaura-se um doloroso jogo de contraste. Como dizem os versos de "Casa", da poeta Warsan Shire, "Você tem que entender/que ninguém coloca os seus filhos num barco/a menos que a água seja mais segura do que a terra (...)". Por isso, não nos enganemos, a escolha já está feita. Para muitos, é inevitável partir e os botes vão continuar a chegar. Nesse sentido, os discursos nacionalistas e xenófobos, a defesa de portas fechadas e a criminalização de quem se desloca são a perversa face do modo de lidar com a questão. Dentro dessa guerra de fronteiras, a lição talvez seja mesmo a que prioriza a coabitação, o convívio e a escuta. Sem esses elementos, cidadania é palavra esvaziada de sentido.

"No mar toda vida é sagrada. Se alguém precisa de ajuda, nós o salvamos. Não existem cores, etnias, religiões. É a lei do mar", afirma um mergulhador. Pelo direito marítimo, é dever de toda embarcação o resgate nas águas. Nessa perspectiva, todo náufrago é sagrado. Talvez seja a hora de transpor para a terra firme a lição que desde sempre o oceano nos ensina, para que todas essas vidas tenham, enfim, a chance de recomeçar. 

TRECHO 

Nossas palavras não conseguem colher em cheio a verdade deles. Podemos nomear a fronteira, o momento do encontro, mostrar os corpos dos vivos e dos mortos nos documentários. Nossas palavras podem narrar as mãos que tratam e as mãos que levantam arames farpados. Mas a história da migração serão eles a narrá-la, aqueles que partiram e, pagando um preço inimaginável, atracaram nessas lides. Serão necessários anos. (...) Serão eles a usar as palavras exatas para descrever o que significa arrancar em terra firme depois de ter escapado da guerra e da miséria, perseguindo o sonho de uma vida melhor. E serão eles que nos explicarão o que se tornou a Europa e a nos mostrar, como num espelho, quem nos tornamos."

(Trecho de "Notas para um naufrágio, de David Enia) 

Capa do livro 'Notas para um naufrágio'

"Notas para um naufrágio"

.De Davide Enia
.Tradução de Wander Melo Miranda
.Âyiné.
.257 páginas.
.R$ 59,90

* Stefania Chiarelli é professora e pesquisadora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF), coorganizadora do volume "Falando com estranhos: o estrangeiro e a literatura brasileira"


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