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Estado de Minas HISTÓRIA

A eloquência dos silêncios: memória das experiências negras na história

Em artigo, a historiadora Josemeire Alves Pereira reflete sobre a memória e as representações das experiências negras na história do Brasil


19/11/2021 04:00 - atualizado 19/11/2021 10:34

Foto de Maria Papuda em seu ranho
'Maria Papuda' e seu 'rancho' onde posteriormente foi erguido o Palácio da Liberdade na imagem incluída no livro 'Belo Horizonte: memória histórica e descritiva': testemunhas de um modo de vida que guardava práticas e conhecimentos produzidos por africanas e africanos (foto: Reprodução)
“Rancho velho da papuda. Existiu pouco abaixo do local em que se acha hoje o Palácio da Liberdade, nas proximidades da atual Rua Sergipe” - assim aparece intitulada a fotografia reproduzida no primeiro volume da conhecida obra de Abílio Barreto “Belo Horizonte: Memória histórica e descritiva”. A imagem passou a ser associada a uma história tratada como lenda nas narrativas de memória de Belo Horizonte. Quando da construção da nova cidade, para a instalação da sede do governo do Estado - atual Palácio da Liberdade e demais prédios administrativos –, a Comissão Construtora da Nova Capital expulsou de sua residência (uma “cafua”), uma mulher que ficou conhecida no imaginário urbano como “Maria Papuda”. 

Em represália, ela teria previsto a morte de alguns governantes que ocupassem o futuro prédio, atual Palácio da Liberdade. A história tem sido reproduzida em jornais e revistas e, também, em uma das exposições permanentes de um espaço museal no Circuito da Liberdade dedicado a contar sobre os primeiros anos da capital mineira. 

Ao observarmos melhor a imagem, que na exposição é também associada à “lenda” que reitera a imagem de Maria como um dos “fantasmas” que assombram a cidade, a experiência descrita torna-se bastante emblemática e eloquente, por sinalizar a naturalização de representações lacunares e que corroboram a produção de invisibilidades e silenciamentos sobre as experiências negras na sociedade brasileira.

Assim, ainda que pouco saibamos sobre a mulher representada nesta fotografia, na imagem é possível identificar elementos que informam sobre a experiência africana no território – seja nos traços fenotípicos da mulher fotografada, seja no seu “rancho”. Este, em muito semelhante às inúmeras cafuas que faziam parte da paisagem do Curral del- Rey e que foram insistentemente destruídas pela Comissão Construtora, apresenta elementos de arquitetura de origens africanas, mais particularmente das culturas praticadas pelos povos de língua bantu – como bem podemos considerar a partir do que nos apresenta o historiador Robert Slenes, em seu já clássico “Na senzala, uma flor: Esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil Sudeste”.

Os elementos da fotografia são tão vívidos que se torna imprescindível indagar sobre como é possível ignorar, nas narrativas convencionais, a invisibilidade da africanidade dessa mulher, que passou a ser descrita como um “fantasma”, ou seja, na dimensão do não humano.

A respeito da predominância de população de africanas, africanos e seus descendentes nas Minas Gerais, já em 1776, Nelson de Senna, registra, no ‘Anuário estatístico” de 1911: 

“A comarca do Rio das Mortes foi a que recenseou maior número de brancos – 29.926; e a de Villa Rica a que recenseou o menor – 12.679. Mas aquela em que a proporção delas baixou ao mínimo foi a do Rio das Velhas, que apresentou 14.394 brancos contra 85.182 mestiços e pretos ou apenas 14% da população total. A do Serro Frio ficou no meio, com 13.665 brancos, embora fosse a menor da população.”

Justo em meados do século 18, no Curral del-Rey, tornara-se muito conhecido o Calundu de Francisca e Manoel, analisado por Mariana Ramos Morais. Ao casal recorriam muitas pessoas pelas habilidades de cura de Francisca – ao modo como testemunhamos acontecer nos quilombos e terreiros que se fazem resistência na atualidade das cidades brasileiras, guardadas as especificidades das experiências no tempo e no espaço. A repressão do Santo Ofício ao calundu de Francisca e Manoel também ressoa na contemporaneidade das experiências de racismo religioso vivenciadas pelas comunidades que professam fé diferente da que é hegemonicamente aceita.

Mas voltando ao Brasil do século 19, mais precisamente para as Minas Gerais e para o Curral del- Rey, a tendência de maioria para a população de pessoas descritas pelas fontes como africanas, pretas e pardas, ao longo do século seguinte, se confirma nos diferentes mapas de população do período e no “Recenseamento do império do Brazil”, de 1872.

Curral del-Rey

Além de constituir maioria, a gente negra da região que foi posteriormente ocupada para instalação da Nova Capital era majoritariamente livre, ao longo de todo o século 19, com predominância para as mulheres livres. E isso não era realidade exclusiva ao Curral del-Rey, sendo comum a outras regiões de Minas, como já demonstravam os estudos de Douglas Cole Libby, em 1988, no livro “Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais no século 19”. É importante salientar, contudo, que a grande presença de gente negra livre na região – figurando, amiúde, como agregadas ou meeiras, nas fazendas, ou como trabalhadores eventualmente assalariados também nas lides da lavoura predominante na região, e mesmo na mineração, que tinha ainda papel significativo, entre outras atividades – não significava dizer que o peso do trabalho escravo para a economia deixara de ser fundamental. Como demonstram os dados do recenseamento de 1872, a população de pessoas escravizadas era constituída por 370.459 habitantes.

A propósito, em decorrência da construção da capital, tal como ocorreu com Maria, a maioria dessa população negra e empobrecida que também habitava a região do Curral del-Rey, onde se instalou a cidade, foi removida forçadamente, passando a instalar-se nos “arrabaldes” do povoado, como o testemunhou o padre Francisco Martins Dias, descrevendo-o em seu “Traços históricos e descriptivos de Bello Horizonte”:

“Calafate e Piteiras foram o asilo da pobreza, e hoje estão quase transformados em dois arraialetes.

De um misto de sentimento e de esperança foi-nos a assistência do êxodo da antiga população para os lugares supraindicados. Movemo-nos à compaixão por ver as dificuldades com que lutavam os pobres para de novo se estabelecerem, por vermo-los (sic), muitas vezes, com as lágrimas nos olhos, se queixarem da sorte, pelas peripécias e amarguras porque iam tão bruscamente passando.

Era uma cena triste e comovedora essa da emigração da maioria dos habitantes para outras paragens mais recônditas e solitárias de seu querido Curral D’El-Rei!”

Assim, para muito além da representação pelo pitoresco da fantasmagoria, Maria e seu “rancho” podem ser acolhidos como testemunhas de um modo de vida que guardava muito de práticas, conhecimentos e tecnologias produzidos por africanas e africanos em contexto de diáspora forçada pela experiência escravista. Um modo de vida que ainda precisa ser melhor conhecido e que era provavelmente predominante do Curral del-Rey e nas diferentes regiões de Minas Gerais, quando do advento da abolição do regime escravista, em 1888, da criação de Belo Horizonte, em 1897.

Pesquisas inovadoras produzidas pela historiografia brasileira, nas últimas décadas, têm agregado contribuições importantes para novas abordagens que possibilitam trazer à cena, por assim dizer, protagonistas negligenciados pela historiografia e pelas representações de memória produzidas e reproduzidas em espaços museais, durante muito tempo. Cabe considerar que tais práticas têm tradicionalmente reforçado a naturalização dos silenciamentos e das invisibilidades das agências fundamentais da população negra e indígena na formação da sociedade brasileira, constituindo um dos elementos da natureza estrutural e estruturante do racismo na sociedade brasileira.

Metodologias e conceitos

Destacam-se, nesses estudos, os  trabalhos de pesquisadoras e pesquisadores negras e negros que, partindo de olhares e abordagens diversificados, têm contribuído para reformular metodologias e conceitos, aprimorando a qualidade da produção historiográfica que se propõe a interpretar o Brasil. Entre estas e estes autores, destaco os das historiadoras Wlamyra Albuquerque, Isabel Reis, Mônica Lima, Ana Flávia Magalhães Pinto, Ynaê Lopes dos Santos, Lucilene Reginaldo e Nila Rodrigues Barbosa; e dos historiadores Jonatas Roque Ribeiro, Luciano Roza, Roquinaldo Ferreira e Flávio Gomes, entre muitos outros.

Também no campo da museologia, há um movimento importante de questionamento e renovação das práticas museais e arquivísticas que apontam transformações na forma de produzir, gestar e disponibilizar acervos e conceber a organização de espaços museais. Exemplo dessa renovação é o Movimento Museologia Kilombola.

Oxalá, em futuro próximo, esses esforços repercutam em um cenário de renovadas práticas que criem condições para repensar o Brasil a partir da centralidade das existências e experiências dos que ainda figuram nos museus em espaços de invisibilidade e subalternidade, a despeito da eloquência de sua presença viva nas fontes e dos acervos que dão a conhecer o passado e também o presente.

*Doutora em história social pela Unicamp, Josemeire Alves Pereira integra a Rede de HistoriadorXs NegrXs e foi cocuradora das exposições “NDÊ! Trajetórias afro-brasileiras em Belo Horizonte” e “Palácio da Liberdade, leituras negras”


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