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Estado de Minas LITERATURA

Crônicas do Brasil 'invisível'

Finalista do prêmio Jabuti com 'Os supridores', que será anunciado no dia 25, José Falero lança 'Mas em que mundo tu vive?'


19/11/2021 04:00 - atualizado 19/11/2021 08:07

O escritor José Falero
'O lance da miscigenação; criou-se um contexto favorável para essa falácia da democracia racial, essa ideia de que aqui não há preconceito' - José Falero, escritor (foto: TOMAS EDSON SILVEIRA/DIVULGAÇÃO)
"Mas em que mundo tu vive?”. O título já anuncia o que leitor vai encontrar ao longo das 58 crônicas do terceiro livro do escritor gaúcho José Falero, de 34 anos, que ganhou notoriedade nacional com “Os supridores” (Editora Todavia – 2020), um dos cinco romances finalistas do prêmio Jabuti – o principal da literatura brasileira –, que será anunciado na próxima quinta-feira (25/11). “Os supridores” prende o leitor desde as primeiras páginas ao contar as agruras de Pedro, morador da periferia que trabalha num supermercado como supridor (repositor de mercadorias) explorado e oprimido pelo patrão.

Sem condições de sobreviver financeiramente, ele convence o amigo Marques, que também custa a manter a mulher grávida, a começar a vender maconha para ganhar muito dinheiro e melhorar de vida, enfrentando, claro, as perigosas consequências dessa atividade.

O sucesso da obra passa pela quebra de padrão da tradicional literatura brasileira “elitista e branca”, como define Falero, ao dar vez e voz a uma população “invisível” e escancarar preconceito social e racial e as injustiças e desigualdades de um país atrasado. E pelo despertar da luta de classes a partir da conscientização de Pedro e seu grupo, em linguagem coloquial, “de rua” – tá ligado? –, com passagens ora cruéis, ora irônicas.

Agora, em “Mas em que mundo tu vive?”, Falero amplia como cronista seu front de combate às desigualdades gritantes. O livro reúne crônicas publicadas originalmente na revista digital “Parêntese”. A saga de Pedro e Marques é diluída e transformada em múltiplas histórias, em que mais uma vez esse Brasil real, que Falero conta a partir de sua origem – a Lomba do Pinheiro, na capital gaúcha –, está presente na própria pele do autor e de outras pessoas, pretas e pobres, “invisíveis” dentro de uma sociedade excludente, que dissemina ódio de classe. Na crônica que dá nome e abre o livro, o protagonista, desempregado, vai trabalhar numa obra, trabalho braçal pesado, para substituir o primo, que se sentia explorado e largou o emprego, depois que foi reclamar das condições de trabalho e ouviu do patrão: 'Mas em que mundo tu vive?'”.

Outro exemplo está na crônica “Assalariados”, que mostra a discriminação num curto trecho no diálogo de uma mulher que quer conseguir vantagens para o filho na faculdade: “A mulher desligou o telefone e foi conversar com o marido, indignada. – Que raiva dessa gente! Amanhã eu vou lá! Vou lá conversar bem de pertinho com eles, e aí eu quero ver! Ora, onde já se viu? Esses assalariados! (…) Ela dizia 'assalariados' com a mesma careta de nojo que a gente faz pra explicar que pisou na merda”. Assim conta o ajudante de gesseiro que testemunhou essa cena dentro de um apartamento em condomínio de luxo na Zona Sul de Porto Alegre.

Ao relatar essa história a Dalva, sua namorada, perguntando se a mulher não teria tido vergonha de falar dessa forma na frente dos três “assalariados” dentro da casa dela trabalhando, Falero ouve a resposta: “Não. Vocês não importavam pra ela. Eram invisíveis. Foi como se vocês não estivessem lá”.

Na crônica “Um país dividido em dois”, Falero desabafa: “Este país sempre foi assim, rachado em dois, dividido entre os que chamam a polícia e os que fogem da polícia”. Ele mesmo conta no livro como foi tratado inúmeras vezes como “suspeito” pela polícia. Não por ter cometido crimes, mas por causa de sua cor e sua origem.

A maioria das crônicas trata desse mundo ignorado ou maltratado na literatura brasileira e que agora ganha holofotes com os livros de Falero (“Vila do Sapo”, “Os supridores” e “Mas em que mundo tu vive?”). Não sem passar, nas palavras do próprio escritor, pelo “maior poeta brasileiro de todos os tempos”, o cantor e compositor Mano Brown, do Racionais MCs, cujas composições recheiam a obra de Falero. E não é para menos. O maior grupo de rap brasileiro, fundado em 1988, é a principal voz desse Brasil periférico e marginalizado, que ganha visibilidade nas letras indignadas e que com Falero e outros autores agora se estende para a literatura.

“O que não falta é escritores e escritoras muitos competentes produzindo muita prosa e muita poesia e que contribuem neste sentido de tornar a literatura menos elitista e menos branca. O Racionais fez um trabalho que as pessoas, se compreendessem, teriam orgulho de sua origem, veriam valor na sua bagagem cultural. A gente tá falando de um cara que não fala pro povo do Leblon, não é pro povo de Ipanema. Ele fala pra massa, fala pro coração da massa, porque ele é de lá também. Ele fala pra 80% da população brasileira, que vive no mesmo contexto em que ele viveu a vida inteira”, diz Faleiro em entrevista ao Pensar.

TRECHO DO LIVRO


“Hei, pé de breque / Vai pensando que tá bom.../ todo mundo vai ouvir, todo mundo vai saber.” (“Vivão e vivendo”, Os Racionais MCs)

“Vivemos tempos sombrios, e o povo parece que perdeu a capacidade de se enxergar no espelho, no meio de tanta escuridão. Parece que perdemos a capacidade de perceber as coisas mais óbvias: nossos interesses nunca serão defendidos por aqueles que não experimentaram as nossas dores. Mas eu boto fé. No momento certo, na hora que o bicho pegar, todos vão lembrar direitinho quem é que tem as mãos calejadas e quem é que peidou dormindo a vida inteira”.

“Mas em que mundo tu vive?”
• josé Falero
• Editora Todavia
• 280 páginas
• R$ 64,90 (impresso)
• R$ 39,90 (digital)

“A gente é um país mais racista do que os EUA”

Na crônica “Passe livre”, sobre a mulher destratada pelo cobrador dentro do ônibus e defendida por funkeiros, você (narrador) fica indignado, mas não protesta. E depois pergunta em que momento da vida se deixou “contaminar pela inércia moral”. Nos EUA, o caso George Floyd causou grandes protestos. No Brasil, casos semelhantes acabam ficando por isso mesmo. Por que será?
Eu não acho que fica por isso mesmo. Tem o exemplo do Beto [Freitas, morto por seguranças do supermercado há exatamente um ano, em 19/11/2020], aqui no Sul, não ficou por isso mesmo, teve mobilização importante. Mas não dá para negar que a proporção é muito diferente da mobilização nos EUA e aqui. As mobilizações aqui contra esse tipo de violência, de barbárie são recentes. A gente não tem uma tradição de se rebelar contra esses casos, até porque são muitos no Brasil. Eu não sou especialista neste assunto.

O que vou dizer são impressões, tá ligado? Tenho a impressão de que há uma certa banalização aqui, justamente porque os casos são muito mais numerosos aqui do que nos EUA. Todo dia morre muita gente preta, das formas mais violentas, mais horríveis neste país. Então, talvez exista uma banalização da violência especificamente contra a população negra. A gente tem um histórico racista pra caralho. Acho que se for analisar historicamente, a gente é um país mais racista do que os EUA, último país das Américas a abolir a escravidão, se não me engano, embora os EUA sejam um país bastante racista também.

Tem várias coisas que são diferentes lá e aqui. O contexto histórico não foi o mesmo aqui, não foi o mesmo lá. Isso gera diferentes histórias lá e aqui. E os resultados não podem ser iguais também. Lá teve uma parada de segregação muito forte, que aqui não aconteceu. Aqui aconteceu o lance da miscigenação e tal, criou-se um contexto favorável para essa falácia da democracia racial, essa ideia de que aqui não há preconceito. Lá teve a segregação que aqui não teve. Tinha escola pra preto, tá ligado? Mas até onde eu sei, universidades para pretos, professores pretos. Num país racista pra cacete. Imagina num país racista, os pretos terem essa possibilidade de estar entre iguais naquele contexto onde eles eram evidentemente oprimidos.

O próprio professor, acredito que vai ter uma postura de despertar o olhar crítico neste sentido. Então, foram muitos anos disso. Escola para preto, com professores pretos, imagina. Esses caras estavam pensando numa forma que no Brasil não foi possível. Porque com essa coisa da miscigenação no Brasil, da democracia racial, essa mentira. O que acontece é que nos espaços de poder tinha era branco. A princípio, os pretos não tinham o direito de chegar nesses espaços. Preto não podia ir pra escola no Brasil. E depois, quando começa a ir, todo muito é branco, o professor, o diretor, a mentalidade daquele troço é branca, a própria estrutura foi pensada por pessoal branco, totalmente excludente neste sentido.

E é claro que não iam debater uma pauta racial que fosse interessante para essa galera. Na verdade, esses recortes têm ainda a ver. É o contexto brasileiro. Os jornalistas são brancos, os políticos, a maioria é branco, os atores, a maioria é branco, os professores universitários, os escritores, os editores. Todo o espaço de poder no Brasil a maioria ainda é gente branca. Nos EUA, se não me engano, 11% da população é preta. Aqui no Brasil, somos a maior parte, a maior parte da população é negra. Talvez seja mais difícil mobilizar uma quantidade desse tamanho de pessoas.

Mais da metade da população do país, sobretudo com essa falácia da democracia racial, é difícil enxergar com clareza. Lá é muito claro. A segregação deixava muito claro o que a sociedade americana pensava. E, nessa segregação, os negros estavam aprendendo entre eles. Isso é muito mais propício para uma mobilização.

Seus livros (“Vila Sapo”, “Os supridores” e “Mas em que mundo tu vive?”) levam a realidade brasileira para a literatura. Estão surgindo novas vozes para tornar a literatura brasileira ''menos branca'' e ''menos elitista''. Você pode citar algumas?
Vou citar alguns nomes. Certamente, vou acabar esquecendo alguém importante aí, porque é muita gente mesmo contribuindo neste sentido de tornar a literatura menos branca, menos elitista. Tem Jeferson Tenório, Itamar Vieira Junior, Geovani Martins, Dalva Maria Soares, Lilia Guerra, Karine Bassi, Marlon Pires Ramos, Sande, Evanilton Gonçalves. São muitos nomes mesmo. O que não falta é escritores, e escritores muitos competentes, produzindo muita prosa e muita poesia, e que contribuem neste sentido de tornar a literatura menos elitista e menos branca.

Por que Mano Brown é o “maior poeta brasileiro de todos os tempos”? É o que você diz na crônica “Revolução em curso”, ao replicar “Fórmula mágica da paz”. Pela luta contra injustiças?
Não, cara, não é pela luta contra as injustiças. Bah, isso seria reduzir tudo o que o Brown construiu, velho. Seria reduzir, sabe, a uma coisa muito menor, tá ligado? Se fosse esse o caso, eu diria que ele é o maior lutador contra as injustiças. Não é só isso. É muito mais. Ele, sim, denunciou muita coisa. Lutou contra muita coisa a vida inteira. Mas é um cara que resgatou a autoestima de milhões de pessoas neste país, velho.

O Racionais, de um modo geral, e aqui a gente tá falando do Brown, da mesma origem social dele. E é um puta dum poeta, por várias razões. Ele tem um poder de síntese impressionante, ele é um intelectual, um cara inteligentíssimo. Enfim, não é um ou outro aspecto assim, é um conjunto de fatores pelos quais eu acredito que ele é o poeta mais foda. Na real, vá saber, não conheço todos os poetas desse país, tá ligado? Mas, que eu vi, o Brown pra mim é o maior, velho. Ninguém chega nem perto. Não é só o maior assim disparado. Nunca vi nada igual. Como eu disse, o Racionais, de modo geral, é fantástico, Edi Rock é foda, Ice Blue é foda. Mano Brown, pra mim, é um monstro, não tem ninguém perto dele.


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