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Estado de Minas RESENHA

Dois livros trazem novas visões dos atentados de 11 de Setembro

Com enfoques e ângulos diferentes, publicações reconstituem o que ocorreu nos EUA em 2001 e, 20 anos depois, o impacto no mundo


10/09/2021 04:00 - atualizado 10/09/2021 13:18

Resenha// “O vento mudou de direção”

Sete vidas que contam uma grande história

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(foto: SETH MCALLISTER / AFP)

 

É no contexto da sucessão de guerras e de tragédias humanitárias que se desdobram no Oriente Médio e na Ásia Central a partir de 11 de setembro que se insere o magistral livro-reportagem da jornalista Simone Duarte, “O vento mudou de direção: o Onze de Setembro que o mundo não viu” (Editora Fósforo), que acaba de ser lançado no Brasil e em Portugal pela Editora Oficina do livro/leya.

É um mergulho profundo na vida de sete pessoas que vivem no Afeganistão, Paquistão e Iraque, impactadas pelos episódios que transbordam do ataque em solo americano, desestabilizando a Ásia Central e o Oriente Médio, provocando mortes aos milhares e êxodo populacional em massa: a invasão do Afeganistão pelos Estados Unidos e Reino Unido, e o ataque americano ao Iraque de Saddam Hussein, onde nasce e ganha vulto o Estado Islâmico, que se expande na região alimentando guerras em vários países, a maior delas a da Síria.  

 

Ao pesquisar e acompanhar por dois anos e meio a vida desses sete cidadãos de origens afegã, paquistanesa e iraquiana – pessoas de carne e osso que dão voz e representam contingentes populacionais afetados pela anunciada Guerra ao Terror de George Bush, Simone Duarte desloca o foco do 11 de Setembro para o outro lado do mundo. Nas palavras de uma das vozes do livro, o general paquistanês Ehsan Ul-Haq, chefe do órgão de espionagem do Paquistão: “Eles nunca se importaram com os nossos mortos, nunca reconheceram o nosso sacrifício. Os Estados Unidos tiveram um 11 de Setembro, já o nosso 11 de Setembro ainda não terminou”. O vizinho Paquistão foi um dos países mais afetados pela guerra no Afeganistão.

 

Para os Estados Unidos, o 11 de Setembro de 2001 traz a marca dos 2.606 mortos no World Trade Center; das 125 vítimas sob os destroços do Pentágono; das 206 pessoas que estavam dentro dos três voos sequestrados atirados contra os centros do poder financeiro e militar americanos; e mais 40 passageiros e tripulantes que morreram lutando contra os sequestradores dentro do voo 93 da United Airlines que caiu em Shanksville, na Pensilvânia. São 2.983 pessoas homenageadas no memorial e museu do 11 de Setembro, em Nova York, entre os quais se incluem seis mortos em 1993, em investida terrorista precursora.

Tais estatísticas de mortes e também de danos indiretos – como mais de 3 mil crianças que perderam os pais, e superam em número de vítimas Pearl Harbour, são minuciosamente exploradas no livro “O único avião no céu” (Editora Todavia), do historiador e jornalista Garrett M. Graff, que compila cinco centenas de vozes e memórias de pessoas que sobreviveram ao 11 de Setembro. 

 

Mas a cifra da macabra contabilidade dos mortos em conflitos que se desdobram a partir do 11 de Setembro na Ásia e no Oriente Médio é bem mais alta e, ao mesmo tempo, imprecisa, contundente sintoma do pouco valor atribuído a certos corpos. O general paquistanês Ehsan Ul-Haq, em seu depoimento a Simone Duarte que data de dezembro de 2019, cita o escândalo do “Afghan papers” publicado pelo Washington Post, assim projetando aqueles que perderam a vida. “Cento e cinquenta e sete mil pessoas foram mortas no Afeganistão desde o 11 de Setembro. No Iraque, as estimativas são ainda piores, de 1 milhão a 2 milhões, ninguém sabe ao certo. Aqui no Paquistão, foram 70 mil em 18 anos. Os Estados Unidos tiveram 3 mil mortos no dia 11 de setembro. Eles disseram que o mundo não seria mais o mesmo, e saíram matando mais de 1 milhão de pessoas. É inacreditável”, assinala o general. 

 

Nessa contagem aproximada das mortes não se incluem as guerras que derivam da ascensão do Estado Islâmico após a invasão do Iraque pelos Estados Unidos e a execução de Saddam Hussein, como a guerra da Síria. Gena é a personagem que representa esse drama: nascida em Bagdá, vive em bairro de elite onde está instalado o staff governamental de Saddam. Tem oito anos e brinca com a boneca Barbie quando cai o governo sob o bombardeio americano e britânico. Aos 13 anos, Gena deixa a cidade ao lado do pai, que consegue levar a família para a Síria, mas é assassinado quando retorna à capital iraquiana. Gena aterrissa num país que quatro anos depois, com dois terços do território ocupado pelo Estado Islâmico, mergulharia por uma década numa violenta guerra. “Eu amo a Síria, mas preciso ir embora. Quero me mudar para um país normal. Viver pelo menos um ano num país sem guerra. Desejo criar novas memórias”, diz ela em depoimento ao livro.

Esforço de reportagem

Os acontecimentos e teatro de operação são narrados por Simone Duarte no contexto do que representam sobre as vidas dos sete protagonistas. O esforço de reportagem captura o leitor, que se envolve no fio das histórias. De origem palestina, o jornalista jordaniano Baker Atyani tem papel central na trama. Naquele 11 de Setembro de 2001, data que entra para a história como marco temporal do novo milênio, consumava-se o ataque da Al-Qaeda, grupo extremista fundamentalista islâmico, outrora treinado pelos Estados Unidos na guerra afegã-soviética. Foi uma tragédia anunciada.

Osama Bin Laden, que naquele momento listava atentados na periferia do mundo contra as embaixadas americanas no Iêmen, no Quênia e na Tanzânia, em 20 de junho de 2001 confirmara em entrevista a Baker Atyani a intenção de atingir novos alvos. Os detalhes do agendamento da entrevista, do deslocamento até o líder da organização são narrados transportando o leitor para um filme de fatos reais.

O ataque previamente alardeado por esse homem, frequentemente refugiado nas cavernas afegãs de Tora Bora, seria assim, meses antes, divulgado por Baker, acompanhado do comentário de Mohammed Atef, o comandante militar da Al-Qaeda ao se despedir naquele dia do jornalista: “O negócio de caixões vai prosperar nos Estados Unidos”. O fracasso da CIA em identificar os sinais de alerta do mais inusitado ato terrorista visto talvez seja um dos temas mais controversos na história dos serviços de inteligência. 

 

Na lista de protagonistas em “O vento mudou de direção”, o afegão Rafi, a afegã Gawhar e a poeta iraquiana Faleeha Hassan integram o drama que corre paralelo ao teatro de operações: o êxodo humano forçado de milhares de pessoas. Alguns, como Rafi, se entregam aos traficantes das fronteiras e são arrastados como “cargas” por caminhos incertos; outros, como Faleeha, levados pelas circunstâncias a se refugiarem nos Estados Unidos, país que invadiu a sua terra natal, ali exposta à discriminação e preconceito que o simples hijab e a cor de pele despertam.

Por caminhos diferentes, assim como Rafi, Gawhar, jovem médica, termina a sua epopeia na Áustria, mas o faz na condição de refugiada. E ao final dessa trajetória, ela reflete e estabelece a ligação entre os grandes eventos e a sua vida: “Passei a noite pensando no que você me perguntou. Nunca tinha associado o 11 de Setembro ao que aconteceu na minha vida. Mas tudo está relacionado. Fiquei horas na cama acordada. Revivi cada momento. Tudo mudou para pior. Minha família está separada. Uma das minhas irmãs aqui em Viena, outra na Bélgica, um irmão na Turquia, o outro na Índia, e meu irmão mais velho e meus pais em Cabul.

Nunca mais estivemos todos juntos. Mesmo com emprego, com meu status de refugiada, mesmo com tudo isso meus sentimentos são amargos e nada positivos. Não consigo me livrar dessa sensação de confusão mental desde que saí do meu país. E é assim para milhares de afegãos. Minha vida teria sido outra se não fosse o 11 de Setembro”, revela Gawhar em depoimento a Simone Duarte.

 

Ahmer é o sétimo protagonista na obra de Simone Duarte. De família muito pobre, vive no Paquistão, numa aldeia entre as montanhas do Vale do Swat. Foi recrutado pelo Talibã, passou três meses em campos de treinamento e, aos 13 anos, na iminência da missão suicida, com o cinto cheio de explosivos, em meio ao som das preces da mesquita, se entregou a um militar que por ali passava.

É preso, encaminhado para um centro de reabilitação, que recebe jovens com síndrome de estresse pós-traumático, o que é muito frequente entre crianças e adolescentes expostos ao contexto daquela região. “A maioria das pessoas hoje no mundo acha que só os muçulmanos é que são terroristas. Hitler matou 6 milhões; não é um terrorista? Os Tamil Tigers não mataram também? Mas os muçulmanos são culpados de tudo. No ataque contra a mesquita na Nova Zelândia, disseram que o homem branco sofria de doença mental, não diziam que era terrorista. Se for um muçulmano, é extremista. Se for branco, é doente. Por quê?”, questiona o jovem.

 

“O vento mudou de direção: o Onze de Setembro que o mundo não viu”

 

De Simone Duarte

240 páginas

Editora Fósforo

R$ 69,90

E-book: R$ 44,90

 

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(foto: DOUG KANTER/afp)

Resenha// 'O único avião no céu'

Quebra-cabeça de vozes e sentimentos 

 “Tínhamos noventa minutos para deixar tudo pronto antes de passarmos de novo sobre os Estados Unidos. Preparamos todas as câmeras que pudemos. Eu disse: ‘Gente, vamos fotografar tudo o que der para enxergar quando sobrevoarmos os Estados Unidos’. Uma hora e meia mais tarde, cruzamos Chicago. Eu procurava indícios de novos ataques por todos os lados. Conseguia enxergar até Houston. Minutos depois, passamos por Washington e diretamente sobre o Pentágono. Olhando para baixo em linha reta, pude ver o talho na lateral do prédio.

Via as luzes dos veículos de resgate, a fumaça dos incêndios. Olhando para o Norte, conseguia ver claramente Nova York e a coluna de fumaça. A cada órbita, tentávamos entender melhor o que estava acontecendo. Uma das consequências mais surpreendentes é que depois de uma ou duas voltas, os rastros de aviões que normalmente riscam o céu do país inteiro haviam desaparecido, já que todas as aeronaves estavam pousadas e ninguém voava no espaço aéreo dos Estados Unidos – à exceção de um único avião que cruzava o centro do país rumo a Washington. Era o Air Force One, levando o presidente Bush de volta à capital.”

 

O depoimento é do astronauta da Nasa, capitão Frank Culbertson. A bordo do ônibus espacial Discovery, ao ser informado do atentado de 11 de setembro ele procurava registrar do espaço o dramático ataque. A voz de Culbertson é uma entre as mais de 500 de sobreviventes da tragédia: de cidadãos comuns a políticos do alto poder da República; de bombeiros e profissionais que trabalharam no resgate arriscando a própria vida; de professoras e mães que correram para recolher os filhos das escolas, tais são as histórias que compõem o livro “O único avião no céu – Uma história oral do 11 de Setembro”, do historiador Garrett M. Graff (Todavia).

Durante três anos, o autor coletou depoimentos. “Este livro pretende captar como os norte-americanos viveram aquele dia, como os ataques em Nova York, no Pentágono e nos céus do condado de Somerset, na Pensilvânia, ecoaram na vida das pessoas de costa a costa, das Torras Gêmeas a uma escola de ensino fundamental em Sarasota, Flórida, e como o governo e os oficiais do Exército no Capitólio, na Casa Branca, em bunkers nas montanhas, nos centros de controle de tráfego aéreo e nas cabines de caças reagiram a horrores inimagináveis nesse momento sem precedentes”, assinala Graff. 

 

O livro é um quebra-cabeça de vozes, organizadas em certa cronologia, que reconstitui memórias que formatam a fotografia do impacto sobre a população atingida pelo maior ataque terrorista da história. Há falas emocionadas, que carregam a dor de perdas; há depoimentos que narram momentos; e outros que retratam a dimensão política do atentado. 

 

Na Casa Branca, agentes do Serviço Secreto correram com o vice-presidente e outros assessores para o bunker abaixo do gramado norte, instalação conhecida como Centro de Operações de Emergência Presidencial (Coep), projetada na Segunda Guerra Mundial pra proteger o presidente de ataques. “Houve uma chamada pra começar a evacuação. Inicialmente, nos mandaram ir para a copa, no piso mais baixo da ala oeste. Ficamos todos lá sentados por alguns minutos. Então, do nada, veio um novo aviso: ‘Corram, corram, corram, eles vêm na direção da Casa Branca, corram, salvem-se!’. Eu estava de saia-lápis roxa e sapatos Charles Jordan vermelhos, de salto agulha. Não é a roupa ideal para correr para salvar sua vida”, revela Mary Matalin, assistente de George Bush e consultora de Dick Cheney. 

 

George W. Bush participava de uma agenda com crianças numa escola da Flórida. Quando o primeiro avião se jogou contra a torre do World Trade Center, ele acabara de chegar. “Estávamos em frente à escola. Meu telefone tocou. Era minha assistente, Susan Ralston, dizendo que um avião tinha atingido o World Trade Center – não estava claro se tinha sido um avião particular, de linha, um teco-teco, um jato. Era tudo o que sabia. O chefe estava a menos de um metro, cumprimentando as pessoas. Repeti exatamente a mesma coisa para ele. Ele arqueou as sobrancelhas, como quem diz: ‘Preciso saber mais’”, narra Karl Rove, assessor sênior da Casa Branca. 

 

Minutos depois, quando o segundo avião se chocou contra as Torres Gêmeas e, na sequência, o Pentágono foi atingido, a poucos quilômetros da Casa Branca, do outro lado do Rio Potomac, a liderança militar concluía: a nação estava em guerra. 

 

“O único avião no céu – Uma história oral do 11 de Setembro”

 

De Garrett M. Graff

Tradução de Julia Debasse e Érico Assis

 Todavia Editora

 555 páginas

 R$ 99,90. E-book: 

R$ 54,90

 

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(foto: STAN HONDA/afp)
 

 

Entrevistas // Dawisson Belém Lopes, Danny Zahreddine e Simone Duarte

Consequências da Guerra ao Terror

Vinte anos depois de 11 de Setembro, acompanhando o desfecho da retirada das tropas americanas do Afeganistão, quais são as consequências trazidas pela Guerra ao Terror para a geopolítica internacional?


Dawisson Belém Lopes (cientista político) –
A ascensão de um competidor no plano do sistema internacional, global, muito mais consistente do que a União Soviética jamais foi, pois opera a fronteira tecnológica, tem parque acadêmico, tem economia gigantesca, tem estabilidade institucional, tem demografia em seu favor e uma classe média crescente, economia pujante. Estamos falando da China. Isso aponta para um certo decadentismo dos Estados Unidos, que, claro, estão longe de entrar numa fase agônica, mas a dianteira em relação ao resto do mundo diminuiu muito.

Existe hoje a percepção de que há alternativa aos Estados Unidos para liderar o planeta. Inclusive, os Estados Unidos já não chegam com tanta força em algumas regiões do mundo, como o Sudeste Asiático, que já foi quintal daquele país. Também a África é muito chinesa. Além disso, a China já é o maior parceiro comercial da América do Sul. Aliás, com a pandemia, a dianteira se alargou, responde hoje por algo como um terço do comércio externo brasileiro e os Estados Unidos respondem por 10%, somando exportação e importação. 

 

Danny Zahreddine (cientista social) – Ao mesmo tempo em que enfraquece a confiança nos Estados Unidos como força estabilizadora, assistimos na região ao crescimento da influência da China e ao empoderamento da Rússia. A retirada das forças americanas da Síria, abandonando os curdos que lutaram ao seu lado, deixou a mesma mensagem. Os americanos não têm cumprido as suas promessas e sido leais às suas alianças. Veja no caso do Irã: Barack Obama assinou um acordo de Estado. O outro governo assume e não o aceita. Isso revela certa decadência da força que seria importante para o mundo.

E isso também gera instabilidade. Outras forças vão ocupar o espaço. Cresce a presença da China e da Rússia na região. E os talibãs, no Afeganistão, tendem a se constituir como um governo à semelhança da teocracia iraniana. É um momento de transição, em que só a força econômica e a força militar não representam o elemento final de quem pode dar as cartas no mundo contemporâneo. Os Estados Unidos não têm o poder de mobilizar todos os atores. E isso é evidente, desde a invasão do Iraque, age unilateralmente sem o respaldo das Nações Unidas e da comunidade internacional.

Simone Duarte (jornalista e escritora) – O Afeganistão é muito rico em minério, em lítio. Alguns afegãos acreditam que se a reserva natural de minério for devidamente explorada, vai beneficiar tanto o país quanto o petróleo beneficiou o Golfo Pérsico. Então, há muitos inte- resses. O Afeganistão é uma rota do comércio. A China tem muito interesse, porque 42% da população mundial daqui a 79 anos vai estar na Ásia e 40% na África. A China dominando todo o corredor da rota comercial, a Rota da Seda, o Afeganistão para isso é importante, ou seja, há um interesse econômico grande ali.

Os Estados Unidos não aprenderam até hoje que com a força militar você não consegue vencer. Como o afegão disse, o americano chega com uma arma. O chinês pergunta o que queremos vender para ele. É diferente a abordagem. Não estamos falando do mesmo talibã de 20 anos atrás, que era formado por jovens que saíam das escolas religiosas muito pobres, sem cultura, a maior parte sem um braço, sem um olho, porque ti- nha lutado contra os soviéticos. E agora há uma nova geração de ta- libãs, que, aliás, aprenderam muito com os americanos.


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