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Estado de Minas PENSAR

"Vivemos em uma espécie de regime de escravidão voluntária e festiva"

Eugênio Bucci explica o que o levou a analisar as consequências de uma nova forma de exploração da humanidade por meio das big techs como Apple e Facebook


30/07/2021 04:00 - atualizado 30/07/2021 11:04

Bucci: 'Ocorreu mutação acelerada do capitalismo, que deixou de fabricar coisas para fabricar imagens. Deixar de explorar a força de trabalho muscular do ser humano para explorar o olhar'
Bucci: "Ocorreu mutação acelerada do capitalismo, que deixou de fabricar coisas para fabricar imagens. Deixar de explorar a força de trabalho muscular do ser humano para explorar o olhar" (foto: Divulgação)

Apple, Amazon, Alphabet (dona da Google), Microsoft e Facebook, big techs norte-americanas, concentram poderio econômico que superam não apenas o Produto Interno Bruto (PIB) da maioria dos países. Têm mais força de mercado do que as bancas do capital financeiro internacional. E, ainda mais grave, guardam a reserva do controle dos fluxos de informação planetários, inalcançáveis às restrições geográficas e jurídicas das legislações e regulações nacionais, incapazes de se contrapor a tamanho império. Para além da submissão dos estados nacionais, as democracias estão sob ataque com o patamar da concentração e monopólio de poder alcançado pelas corporações digitais que mudaram a face do capitalismo. 

A reflexão é de Eugênio Bucci, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e teórico da comunicação, em sua mais recente obra, “A superindústria do imaginário – Como o capital transformou o olhar em trabalho e se apropriou de tudo que é visível” (editora Autêntica). O livro integra a coleção Ensaios, coordenada por Ricardo Musse, professor de Sociologia da USP, focada em obras redigidas por especialistas para o público geral e será lançado virtualmente  na próxima terça-feira, 6 de agosto, no projeto “Sempre um Papo”.  

Neste século 21, o capital aprendeu a monetizar a chamada “atenção”. Deixou de lado os objetos físicos e virou narrador,  contador de histórias, produtor de significações, fabricando discursos, que por sua vez, passaram a ter valor de troca no contexto das democracias digitais, assinala Bucci. E o faz a partir das histórias de vida, pensamentos, valores que cada um partilha e entrega gratuitamente à superindústria, que assim constrói incessantes novos sentidos: dos signos, da imagem e dos discursos visuais, colocando-os em circulação como mercadoria – fabricando os valores das grifes e das marcas, bem como as reputações dos políticos e das empresas. Tal é a essência da “superindústria do imaginário”, que hoje, na avaliação de Bucci, mantém as democracias enclausuradas, à semelhança de um estado de sítio. Se as democracias mais estáveis e fortes não reagirem para regulamentar essa atividade, os estados nacionais correm o risco de se tornar “despachantes da superindústria’”, afirma Bucci. 

O professor dedica-se a demonstrar o porte descomunal dessas megaplataformas, explorando o caminho trilhado para o monopólio da economia da “atenção”. A começar pela captura de dados pessoais, o extrativismo digital virtual ou remoto, o que lhes possibilitou acumular um profundo conhecimento psicossocial de cada indivíduo, a partir do qual mercadejam o foco de interesse e a curiosidade dos consumidores, ao mesmo tempo, e sobretudo, em que fabricam valor e “narrativas” em escala superindustrial, tornando-se assim o centro do capitalismo, do poder econômico e político nos últimos anos, assinala Bucci, em entrevista ao Pensar.

O senhor menciona no livro a tensão dos estados nacionais tentando regulamentar as megaplataformas digitais. Há interesse em estabelecer essa contenção?
Há interesse e necessidade por uma razão simples: o estado democrático está como que sitiado, é um estado de sítio, que o capital joga sobre o estado democrático. A um ponto que ou a democracia estabelece as leis pelas quais as relações de produção podem acontecer ou essas relações de produção superindustriais, que adquiriram grau de acumulação sem precedentes, estabelecerão as regras nas quais a democracia pode funcionar. A pergunta posta é: quem regular quem? Se é a democracia que regula a atividade econômica, temos esperança de que padrões de humanidade, dignidade e saúde serão considerados no estabelecimento das relações de trabalho. Se é o contrário, os estados tendem a se tornar um despachante dessa superindústria, trabalhando para ela. E aí a democracia acabou e a própria política entra em colapso, porque não haverá mais lugar para observância dos fatos e para a elaboração coletiva de soluções para problemas reais, guiada pela razão. A democracia acaba e a própria política, por escassez de razão e de lastro nos fatos, vai se inviabilizando. Se virmos o que acontece com a uberização de uma série de trabalhos, esse embate está posto. Ou a democracia regula esse mercado ou esse mercado vai engolir a democracia. Isso já aparece claramente em algumas manifestações nos Estados Unidos: a senadora Elizabeth Warren, por exemplo, defende a quebra do monopólio das big techs. Esse debate aparece também na Europa, em vários países, inclusive começa a aparecer tensão específica que é obrigar as plataformas a remunerar os conteúdos jornalísticos. Isso é obrigatório se quisermos financiar as redações independentes para fiscalizar o poder. Nesse sentido, sim, existe interesse em regular esse mercado. E mais do que interesse, há necessidade vital: ou é isso ou o projeto de uma sociedade livre, democrática, solidária vai para o vinagre.

Qual o peso político, na formação das opiniões, dessas megaplataformas digitais em processos eleitorais recentes e em outros processos de consulta interna dos países, como o Brexit?
Precisamos levar em conta que o que aconteceu num ciclo muito rápido foi a apropriação de tudo aquilo que chamamos de imaginário pelas relações superindustriais do capitalismo. Normalmente, se fala em sociedade pós-industrial, mas o termo obscurece o centro daquilo que considero a atividade presente do capitalismo: a superindustrialização. Não é a pós-indústria. Mas são relações industriais jogadas no plano da linguagem e da construção de imagens como mercadorias. Isso muda todas as coisas: as coisas corpóreas passam a ser veículo de transporte de um signo, que é aquilo que o sujeito consome. Não surpreende, portanto, que os engenhos, os dispositivos especializados de captura do olhar, e acionamento do olhar como força produtiva, porque o olhar confecciona a linguagem, tenham se tornado as empresas mais valiosas da história do capitalismo. Hoje as empresas mais valiosas na economia global são aquelas que extraem dados pessoais e praticam o extrativismo do olhar, para canalizar o olhar como força de trabalho, como força produtiva. Nesse sentido, quem está no centro dessa atividade também é o centro do poder. Por isso que ocorre isso  que verificamos na observação cotidiana, esse enorme poder de influência dos conglomerados monopolistas globais. Todas as decisões das sociedades democráticas, parecem passar por ali e não saem ilesas. Por isso também que começa a se esboçar cada vez mais claramente um embate entre os esforços regulatórios dos estados democráticos e o poder desses conglomerados monopolistas globais. Não é surpresa que uma plataforma social, através do incremento de algoritmos, inteligência artificial e machine learning, consigam atingir um grau de manipulação que nós sequer éramos capaz de imaginar há pouco tempo. 

Antes das big techs, as democracias eram pressionadas pelo capital financeiro internacional, que, frequentemente, se posicionava em poder, acima dos estados nacionais. Ainda há tempo para que as democracias reajam agora ao poder das big techs? 
O que a nossa época fez foi agravar um quadro que já era de impasse para as democracias. Por isso, volto aos diagnósticos de Guy Debord, que, ao final da década de 1960, descreveu a sociedade de espetáculo. Depois tivemos as superfusões no mercado capitalista nos anos 1980 e 1990. E depois vem a chamada “revolução digital” (apesar de eu não gostar da expressão). O enclausuramento do estado democrático dentro de um estado de sítio é algo mais antigo e está posto. Mas agora estamos vivendo uma questão agravada desse mesmo problema. Em minha forma de olhar há uma carga utópica: a democracia precisa agir ou será atropelada, será posta de lado. Pode ser que seja tarde demais, não descarto isso. Inclusive, relaciono as distopias totalitárias, das quais o governo federal é um exemplo, como manifestação em perfeita simbiose com os conglomerados monopolistas globais. A coisa foi longe demais, é uma espécie de revival do totalitarismo, como se fosse um projeto libertador para as massas fanatizadas. Sim, pode ser que não exista mais como fazer. No entanto, acredito que pela política, pela discussão e pela defesa do que temos de democracia e não pelo ataque da democracia, temos condições melhores de enfrentar esse impasse. 

O termo capitalismo é apropriado para o que estamos vivendo? Qual seria o nosso sistema econômico hoje, que nome é apropriado para nosso sistema sob as superindústrias?
Essa observação é ultrapertinente e toca no nervo do problema. Talvez o termo capitalismo não dê conta de descrever isso. O que ocorreu é uma mutação acelerada do capitalismo, que deixou de fabricar coisas, para fabricar imagens. Deixou de explorar a força de trabalho muscular do ser humano, para explorar o olhar. Deixou de se dirigir às necessidades e passou a se dirigir ao desejo. E, aí, as relações informais de contratação de mão de obra explodiram, as jornadas de trabalho desapareceram, boa parte do trabalho é realizado por multidões que imaginam que estão se divertindo, quando na verdade estão trabalhando. O nível de entrega de cada pessoa para a produção nunca foi tão alto, porque o chamado tempo do lazer foi ocupado pelo tempo da produção superindustrial. E se nós entendermos como grande mutação, para usar o termo que o Adauto Novaes (jornalista, professor e pesquisador) sempre prefere usar, se nós entendermos que se trata de uma mutação, é um capitalismo mutante que está em vigor. 

Podemos entender que estamos entregando trabalho gratuito, produzindo conteúdo numa espécie de escravidão voluntária para as megaplataformas? 
É muito possível. O termo escravidão, no entanto, tem uma localização histórica que carrega uma série de requisitos conceituais, que talvez não se aplique hoje. Mas no sentido de que se trata de um trabalho extenuante, que não é remunerado e que inclusive compromete a integridade psíquica das pessoas, e a integridade física também, porque são jornadas intermináveis – imagina as pessoas que ficam jogando, pessoas que não conseguem sair das redes sociais, existem aspectos viciantes nessas engrenagens todas. Então, existem elementos que podem nos levar a dizer que isso é uma espécie de regime de escravidão voluntária e festiva. Eu quero dar um exemplo, bem simples. Nessas plataformas sociais a mão de obra é toda exercida por pessoas que acham que estão ali se servindo de uma ferramenta para se divertir, ou pesquisar, aprender ou buscar uma informação. Estão achando que se beneficiam de um conjunto de ferramentas para fins lúdicos ou profissionais, tanto faz. Isso vale para as pessoas que postam fotos de gato nas redes sociais e vale também para as pessoas que trabalham na redação e não têm outro caminho a não ser postar. Isso é um volume de trabalho não remunerado numa escala que nunca se viu; portanto, a mão de obra é gratuita nesta superindústria. 

O senhor. poderia descrever um pouco mais sobre como esse trabalho gratuito dos usuários da superindústria é transformado em mercadoria? 
Numa indústria convencional existe uma matéria-prima que é transformada pelo trabalho humano, vira mercadoria e vai para o mercado. O trabalho, nós já sabemos, da superindústria é gratuito ou boa parte dele é gratuita. Imagina que um Facebook da vida não contrata fotógrafo, redator, editor. Quem faz são os chamados usuários. O termo aliás, só é usado para frequentador de plataforma social e consumidor de drogas submetido a uma relação que provoca dependência. Que tipo de coisa esse trabalho está transformando em mercadoria? Uma matéria-prima que não é outra que não seja a própria vida dos tais usuários. A matéria-prima são as histórias deles, as fotografias deles, os vídeos deles, as impressões deles sobre as coisas, as relações pessoais deles. Vamos lembrar que o escândalo da Cambridge Analytica se beneficiou exatamente disso. Através de um endereço, uma página, uma pessoa, o algoritmo tinha acesso às redes de relacionamento dessas pessoas e conseguiam capturar dados de outras pessoas. Essas são as matérias primas: as redes de cada um de nós, as fotos de cada um de nós, as biografias de cada um de nós. As preferências de cada um de nós, que também vão todas de graça para a superindústria. Só para ficar claro, o trabalho vai de graça; a matéria-prima vai de graça. O trabalho envolve a digitação, a fotografia, mas o trabalho é principalmente o olhar, que está trabalhando e fabricando a linguagem. Uma coisa que meu livro traz, e é um ângulo novo, é a compreensão que o olhar confecciona a imagem. Não apenas recebe a imagem. Ele consubstancia, ele confecciona, ele costura o significante no significado. Ele fabrica signos, identificações. Isso é feito através da energia do olhar que essa superindústria aprendeu a canalizar como energia produtiva, capaz de fabricar imagem, fabricar imaginário. Então, temos o trabalho gratuito dos dedos, da atenção, do olhar e temos a matéria-prima gratuita, sejam as nossas memórias, da fotografia do prato que comemos, sejam as nossas relações pessoais, os grupos aos quais a gente pertence. E, aí, vem o desfecho dessa fórmula, completamente inédita em matéria de superexploração. Muito mais violenta essa exploração do que aquela que acontecia na revolução industrial ou nas duas revoluções industriais ou na sequência de revoluções industriais que tivemos. No final disso, onde está a mercadoria? O que é a mercadoria? A mercadoria é justamente aquele que se imagina beneficiário dessas tecnologias. Quem é vendido é o olhar dessa pessoa, são as memórias, o desejo dessas pessoas. A mercadoria é a pessoa. Essa forma de exploração da humanidade para fabricação de lucro é uma coisa completamente nova. Isso não existia. Isso nem sequer se concebia antes. É um nível de exploração inimaginável. 


“A superindústria do imaginário – Como o capital transformou o olhar em trabalho e se apropriou de tudo que é visível”
.Eugênio Bucci
.Editora Autêntica
.448 páginas
.R$ 74,90
.Lançamento: Sempre um Papo,  terça-feira, 3 de agosto, às 19h, com acesso gratuito, tradução simultânea em Libras e transmissão ao vivo pelo YouTube, Instagram e Facebook do projeto.


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