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Estado de Minas REVISTA

Minas Gerais ganha nova revista literária

'Ouriço', revista de poesia e crítica cultural, homenageia Sebastião Uchoa Leite e tem poemas de Ana Martins Marques e Luci Collin, entre outros


16/07/2021 04:00 - atualizado 16/07/2021 07:56

Obra de Ronald Polito feita com palitos de dente e reproduzida na revista(foto: RONALD POLITO/Divulgacao)
Obra de Ronald Polito feita com palitos de dente e reproduzida na revista (foto: RONALD POLITO/Divulgacao)
"Ainda é possível e desejável arrancar alegria ao futuro? A qual futuro, ou a quais futuros? Em que a poesia pode contribuir para essa tarefa?” Eis as perguntas que impulsionaram o nascimento da Ouriço (Macondo), revista mineira de poesia e crítica cultural com resenhas, ensaios, depoimentos, imagens e, claro, muita produção poética – inédita e traduzida.

Editada por Daniel Arelli, Gustavo Silveira Ribeiro e Victor da Rosa, a revista tem como patrono o pernambucano Sebastião Uchoa Leite (1935-2003),  homenageado também com a publicação de dois poemas inéditos, um depoimento de Ricardo Aleixo e nos títulos das seções que compõem a edição do primeiro número: “pequena estética” (poesia inédita), “babilônia” (poesia traduzida), “antimétodo” (ensaios”), “antilogia” (experimentos críticos), “um olho que olha para dentro” (entrevistas), “gráfico amador” (objeto-livro), “à espreita” (resenhas) e “a ficção vida” (depoimentos).

“A Ouriço quer ser um campo aberto, uma caixa de ressonância em que a questão possa ser colocada em toda a sua dimensão de conflito e aporia. Em seu complexo convívio de fortaleza e desproteção, ameaça e fragilidade, o animal que empresta seu nome à revista é também uma imagem para isso”, afirma o editorial. “Como no poema de João Cabral de Melo Neto ‘Uma ouriça’, que nos deu a inspiração para o título, a ouriça ‘se fecha (convexo integral de esfera)’, e também ‘se eriça (bélica e multiespinhenta)’, ‘mas não passiva’ e ‘nem só defensiva’ – ‘capaz de bote, de salto’, e também de se ‘desouriçar”’, complementa, antes de lembrar: “O tema geral que livremente organiza este primeiro número da revista – o verso de Maiakovski, arrancar alegria ao futuro – se compreende como uma reação ao presente.”

No primeiro número, chama a atenção a diversidade de colaboradores, com diferentes gerações e nacionalidades. Há uma apresentação da produção chilena contemporânea, um poema visual de Augusto de Campos, inéditos de brasileiros como Luci Collin, Sofia Mariutti, Ana Martins Marques (“O ouriço”, dedicado a Carlito Azevedo) e uma entrevista com o prolífico português Manuel de Freitas, nascido em 1972 e que já tem mais de 70 livros entre poesia, ensaio e tradução (a editora paulista Corsário-Satã lançará, ainda este ano no Brasil, “Jukebox”, do autor).

Abaixo, uma entrevista por e-mail com os editores da Ouriço. 

Como nasce a Ouriço e como ela se insere na tradição mineira de revistas literárias?
Daniel Arelli: A ideia de fazer a Ouriço surgiu de forma muito prosaica e espontânea. A gente tinha um grupo de WhatsApp no qual conversávamos basicamente sobre literatura, e aí surgiu a ideia. Acho que a gente partiu da percepção de que hoje em dia há poucas revistas impressas de poesia (não apenas em Minas, mas no país), embora haja um bom número de revistas digitais. Também achamos que seria interessante ter mais espaço dedicado à crítica – não apenas à crítica literária ou de poesia, mas também a isso que um dia se chamou de “crítica cultural” em sentido mais amplo

Victor da Rosa: Se lembrarmos que Drummond foi um poeta que, antes de publicar seu primeiro livro, em 1930, fez um percurso nas revistas mo- dernistas, podemos ter uma dimensão da im- portância das revistas para a vida literária de um país. Provavelmente, ele não teria uma estreia em livro tão poderosa se não fossem a circulação e os debates que se faziam em torno das revistas mo-   dernistas, não só as mineiras. Ao mesmo tempo, em carta a Mário de Andrade à época, Drummond dizia que aqui em Belo Horizonte “isso de revista não pega!”

Em todo caso – dizia ele – vamos fazer uma experiência. A revista mineira durou só três números, e quanto a isso somos mais ambiciosos. Seja como for, temos o Suplemento Literário de Minas Gerais para provar que Drummond estava errado. Apesar de sobreviver por aparelhos, com todos os ataques que a cultura vem sofrendo no país e no estado, o Suplemento é uma das publicações literárias mais longevas do país. Tomara que possamos também ter a vida longa de um Suplemento!

Gustavo Ribeiro: Ainda que não programática, a proximidade da Ouriço com as revistas de poesia de vanguarda que surgiram em Minas Gerais, em Belo Horizonte em particular, é para nós uma alegria. Não deixa de ser, de um modo ou outro, uma forma de homenagem fundar agora uma revista de poesia e crítica que repete, à sua maneira, o gesto de Achilles Vivacqua (entre outros) e Affonso Ávila. A Leite Criôlo, dos modernistas dos anos 1920, e a Tendência, dos artistas de vanguarda e dos intelectuais da década de 1950, são alguns dos marcos da cultura literária de Minas, assim como a Verde, de Cataguases, e outros projetos mais recentes – revistas que se abriram, desde Minas, à produção poética e artística brasileira e internacional, à reflexão densa e provocativa sobre temas de amplo espectro.  

Como foi definido o tema do primeiro número? É possível arrancar alegria ao futuro?
Daniel: O tema do primeiro número surgiu logo no começo do processo, quando decidimos que iríamos tentar organizar a revista tematicamente. Acho que partimos da percepção de que havia um vetor muito forte na literatura brasileira direcionado ao passado, à elaboração e resgate do passado, e que o olhar poético para o futuro tendia a ser minoritário hoje. Talvez justamente porque o futuro não parece muito animador para a grande maioria das pessoas... Daí pensamos em fazer essa provocação a partir do verso de Maiakovski, “arrancar alegria ao futuro”, que nos faz lembrar de uma época em que se pensou a poesia como lugar de pensar mundos possíveis, ainda por vir.

Por que a decisão de ter como patrono Sebastião Uchoa Leite? Qual a contribuição do pernambucano para a poesia brasileira?
Daniel: Escolhemos Sebastião Uchoa Leite como patrono da revista, em primeiro lugar porque somos leitores e admiradores do seu trabalho. Em segundo lugar, porque S.U.L., além de grande poeta, era também um crítico e tradutor da me- lhor qualidade, o que tinha tudo a ver com uma revista que seria de poesia e de crítica. E, por fim, acreditamos também que S.U.L. – como tantos outros poetas, na verdade – mereceria ser mais lido e discutido do que é hoje, razão pela qual quisemos lhe prestar essa pequena homenagem.

“Não antevejo grande futuro para a poesia.” Os editores concordam com a opinião do entrevistado, o português Manuel de Freitas?
Daniel: É muito difícil ter um veredito claro sobre o futuro da poesia. Já há quase dois séculos há quem diga que não apenas a poesia, mas toda a arte, estaria com os dias contados porque nossas soci- edades estão se tornando cada vez mais prosaicas e cerebrais, incompatíveis com certa concepção tradicional de arte e poesia. Recentemente, discutiu-se muito entre nós a questão da “morte da canção” – até cantautores célebres, como Chico Buarque, endossaram essa ideia. E, no entanto, a arte, a poesia e a canção estão aí, persistindo, embora sujeitas a muitas transformações. Acho que mais vale se perguntar como será o futuro da poesia – e a revista pode ser um lugar para se investigar isso.

Victor: Acho que é uma ótima provocação que vale mais pelo que podemos pensar sobre ela, e menos talvez que pelo que diz efetivamente. E talvez não seja uma resposta tão pessimista quanto parece porque ele antevê um futuro, mas não um futuro “grande”. Nesse caso, podemos pensar também sua provocação pelo que tem de afirmativo: “Antevejo um pequeno futuro para a poesia”. Nesse caso eu concordaria perfeitamente. Acho que a poesia é o lugar do pequeno – da pequena dimensão, dos pequenos gestos, dos segredos bem guardados. 

Gustavo: Creio que a própria obra do Manuel de Freitas, poeta, editor e tradutor muito consciencioso, pode ajudar a compreender a dimensão (e o paradoxo) desse diagnóstico. Se a grandeza literária do passado hoje se confunde com os números de vendas de livros ou com a distribuição de likes nas redes sociais, se a qualidade de um poeta parece tantas vezes perigosamente próxima do elitismo e das fórmulas vazias de uma cultura de superfície, os versos de Freitas e os livros editados por ele são o avesso disso.

Escritos e publicados quase às sombras, em tom menor, e voltados para os resíduos do mundo e para lugares e personagens apagados, a poesia do autor, e de tantos outros, em Portugal e em toda parte, continua a ser feita e a pulsar, lançando um olhar agudo sobre as coisas, se inscrevendo como um discurso à margem, uma espécie de antimercadoria fundamental. Se há futuro, não sei, e o próprio Freitas não afirma categoricamente sim ou não. Mas se houver, é possível que passe por essa condição crítica e menor, de recusa à espetacularização geral da vida.

O que pode a poesia no presente do Brasil? E o que pode uma revista de poesia?
Ouriço: Ainda não sabemos bem o que pode uma revista de poesia hoje, mas o nosso objetivo é derrubar o atual presidente.

Dois poemas

Sebastião Uchoa Leite

“Vinde águas”

Ou metais alcalínicos
Por dentro
Lavar as vísceras
Envenenadas
Em sorvos
De fios de prata
De alma lavada
Com o corpo
Seco e oco
Sem nada
Limpo

***

Manuel de Freitas

“1979, Leonard Cohen”

Era bem claro, nessa noite,
o quanto a sua música
se afastava de other forms
of boredom advertised as poetry,
denúncia que se mantém válida.
Não serão bússolas duradouras
– tudo, enfim, falece –,
mas são palavras que nos protegem
da avalanche dos dias e dos meses,
destas poucas horas a que chamamos nossas.
Uma maneira de voltar a morrer?
Talvez,
quando até nas cinzas encontramos lume.


“Ouriço”
Revista de poesia e crítica cultural. Número 1 – “arrancar alegria ao futuro”
Edição de Daniel Arelli, Gustavo Silveira e Victor da Rosa
Design de Léo Passos
Edições Macondo
192 páginas
R$ 42 (pré-venda até o dia 22)
Pode ser comprada pelo site edicoesmacondo.com.br/livrarias

Quem participa da edição

Alain Badiou, Ana Martins Marques, André Vallias, Augusto de Campos, Carlito Azevedo, Carlos Orfeu, Carolina Anglada, Cecilia Vicuña, Celia Pedrosa, Clarice Filgueiras, Daniel Arelli, Diego Vinhas, Dirceu Villa, Eduardo Sterzi, Eduardo Veras, Enrique Lihn, Esther Tellemann, Fabiana Carneiro da Silva, Fabiano Calixto, Francesca Cricelli, Francine Ricieri, Fríða Ísberg, Golgona Anghel, Guillaume Métayer, Gustavo Silveira Ribeiro, Hans Magnus Enzensberger, Jean-Marie Gleize, Júlio Castañon Guimarães, Laís Araruna de Aquino, Leila Danziger, Lenora de Barros, Lígia Diniz, Luci Collin, Manuel de Freitas, Marcos Siscar, Mari Ruggieri, Marília Garcia, Natália Agra, Patrícia Lavelle, Patrícia Lino, Patti Smith, Pedro Lemebel, Pollyana Quintella, Raúl Zurita, Renato Negrão, Ricardo Aleixo, Ronald Polito, Sebastião Uchoa Leite, Simone Homem de Melo, Sofia Mariutti e Victor da Rosa.


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