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Estado de Minas ENTREVISTA

Castro Rocha: 'Bolsonarismo está se transformando em seita'

Autor de livro sobre a retórica do ódio afirma que a guerra cultural dos bolsonaristas se aproxima do fundamentalismo: 'É uma fábrica de inimigos em série'


09/04/2021 04:00 - atualizado 09/04/2021 12:35

João Cezar de Castro Rocha, autor do livro 'Guerra cultural e retórica do ódio - Crônicas de um Brasil pós-político'(foto: Rogerio B. Huss/Flip)
João Cezar de Castro Rocha, autor do livro 'Guerra cultural e retórica do ódio - Crônicas de um Brasil pós-político' (foto: Rogerio B. Huss/Flip)
Para o professor João Cezar Castro Rocha, o governo Bolsonaro é uma fábrica de produção de inimigos em série, que alimenta uma guerra cultural calcada em fatos alternativos, inteiramente movida no universo digital, com diferentes narrativas focadas em perfis específicos.

A imersão em tal realidade paralela, que atrai milícias digitais treinadas em retóricas de ódio e desqualificação do outro, destinadas a questionar os fatos da realidade, tem o seu preço. “Para o bolsonarismo, é impossível a simples noção de um problema concreto, porque qualquer aspecto da realidade é encoberto pela guerra cultural. Isso cria um problema sério, que estamos vivendo agora, que é o colapso completo da gestão pública, é uma crise sanitária e humanitária sem proporções, é a maior tragédia da história brasileira que poderia ter sido evitada se tivéssemos um governo, mas precisamente não temos um governo, porque temos bolsonarismo demais”, avalia Castro Rocha, ensaísta e pesquisador da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), titular de literatura comparada e autor do livro “Guerra cultural e retórica do ódio – Crônicas de um Brasil pós-político” (Editora Caminhos).

Em consequência da guerra cultural e falta de gestão, o golpe –  o autogolpe – fantasma que rondou a história republicana brasileira e parecia enterrado após a redemocratização –, volta a assombrar o país. “Uma vez que não há possibilidade de existir como governo – porque não há política pública, pois em lugar de considerar dados objetivos busca inimigos e se aferra à guerra cultural –, a única forma de manter o poder é o golpe. Não há outra forma possível, porque o golpe é objetivo verdadeiro da guerra cultural”, assinala o autor.

Em nova hipótese de pesquisa, João Cezar Castro Rocha sustenta: “A guerra cultural bolsonarista deu um passo além. Deixou de ser apenas um instrumento para a disputa de narrativas e para vencer campanhas eleitorais. É mais do que isso hoje. Está se transformando em uma seita, numa forma de vida”. É assim que, em vez de apenas contestar os fatos da realidade, o bolsonarismo salta da realidade virtual para o mundo real, sem máscaras, com overdoses de ivermectina e marchas em continência à caixa de cloroquina, como ocorreu em São Lourenço, no Rio Grande do Sul.

Mirando no desfecho do governo de Donald Trump, nos Estados Unidos, o pesquisador projeta: “A minha expectativa é de que o governo Bolsonaro seja atropelado pela realidade, pelos fatos concretos. A pandemia acelerou a desintegração do inevitável, do governo que não há, que é o governo Bolsonaro, porque há bolsonarismo demais.” A seguir, uma entrevista com o ensaísta.

Em seu livro, o senhor sustenta que, embora a guerra cultural seja o eixo do governo Bolsonaro e precisamente aquilo que explica o êxito do bolsonarismo, é também a razão do colapso administrativo do governo federal. Como se explica o paradoxo?
A guerra cultural é precisamente a divisão do mundo entre, por um lado, os “meus” – os que me são próximos – a quem eu defendo porque acredito que possuo a essência, a verdade absoluta do mundo; e, por outro lado, estão todas as pessoas que percebo não como adversárias que pensam legitimamente de forma diferente da minha, mas que são inimigas que encarnam o mal. Infelizmente, a minha hipótese foi perfeitamente confirmada na atual tragédia em que vivemos.

Estamos falando hoje em um dia (30 de março) em que o Brasil bateu um recorde absoluto em toda a sua história de número de mortes em 24 horas. Foram 3.780 notificações, e talvez o número seja ainda maior. Se tivéssemos tido um planejamento sensato para a compra de vacinas, esse número seria muito inferior. Mas o que faz o presidente Bolsonaro? Ele troca o ministro da Defesa, convoca um jejum para a população cristã e a base bolsonarista utiliza uma tragédia – a morte de um PM na Bahia – para tentar incitar as polícias militares de todo o país contra governadores que praticam medidas para conter a disseminação do vírus.

Portanto, a guerra cultural bolsonarista tem um caráter fundamentalista. E, no momento em que a pandemia está fora de controle, não dispomos de vacina, convocar um jejum e a necessidade de encontrar inimigos o tempo todo, agora são governadores e prefeitos, mas já foi o STF, já foi o Congresso, entre outros. É mais uma demonstração concreta da guerra cultural.

Como essa fábrica de inimigos se relaciona com a fábrica de fatos alternativos, uma percepção distorcida da realidade?
O governo Bolsonaro é uma fábrica de invenção de inimigos em série. Só é possível fazê-lo desconsiderando dados objetivos da realidade. Porque na realidade da administração de um país não há inimigos. O que há são problemas concretos para serem resolvidos. Para o bolsonarismo, é impossível a simples noção de um problema concreto, porque qualquer aspecto da realidade é encoberto pela guerra cultural. Agora no Orçamento da União de 2021, o governo cortou 90% da destinação ao IBGE para a realização do censo.

Portanto, é mais uma vez uma demonstração eloquente do que digo. É que, para o bolsonarismo, o censo é perda de tempo. Como não vai mesmo considerar dados objetivos, para que gastar dinheiro com o censo? Agora, se não gasta dinheiro com o censo, como pode ter uma política pública razoável se não se dispõe dos dados concretos sobre os problemas que deve enfrentar? Isso cria um problema sério, que estamos vivendo agora, que é o colapso completo da gestão pública, é uma crise sanitária e humanitária sem proporções, é a maior tragédia da história brasileira que poderia ter sido evitada se tivéssemos um governo, mas precisamente não temos um governo, porque temos bolsonarismo demais. Isso tem uma consequência terrível, que enfrentamos agora: estamos neste momento, como diria um autor mineiro (Guimarães Rosa), com “o diabo na rua, no meio do redemoinho”.

Qual é o desfecho mais provável para um governo com as características que o Sr. descreve, ou seja, que não considera dados objetivos da realidade para a gestão, de modo que consegue existir enquanto governo?
Uma vez que não há possibilidade de existir como governo – porque não há política pública, pois, em lugar de considerar dados objetivos, busca inimigos e se aferra à guerra cultural –, a única forma de manter o poder é o golpe. Não há outra forma possível, porque o golpe é o objetivo verdadeiro da guerra cultural. O golpe é o instante em que o inimigo não é mais apenas hostilizado do ponto de vista simbólico, não se trata apenas de lançar mão de uma linguagem, da retórica, a retórica do ódio propagada por Olavo de Carvalho.

O que se trata agora é de passar da retórica para a ação violenta. O golpe é necessariamente a vocação do bolsonarismo. O que precisamos fazer é fortalecer as instituições democráticas e deixar claro que, como sociedade civil, não aceitaremos mais uma ditadura no país. Mas hoje temos uma situação particularmente complexa.

O fantasma do golpe, que parecia enterrado após a ruptura institucional com o golpe de 1964, volta a rondar o Planalto?
Uma vez que o bolsonarismo não permite que haja governo, o colapso é inevitável. É assim e sempre será. Venho dizendo isso desde março do ano passado e, por isso, escrevi o livro. Já houve no governo Bolsonaro a tentativa de autogolpe em maio de 2020, que eu analiso minuciosamente no livro. E isso será sempre assim.

O que a memória histórica da República brasileira ensina sobre os autogolpes?
Infelizmente, não temos memória histórica, não conseguimos projetar o presente no diapasão mais amplo. O autogolpe é a forma básica do militarismo brasileiro. Floriano Peixoto deu uma espécie de autogolpe e se atribuiu poderes autocráticos que lhe permitiram eliminar fisicamente os seus adversários. “Triste fim de Policarpo Quaresma”, de Lima Barreto, se passa durante o período de Floriano Peixoto. E se chama “Triste fim” porque na última cena do romance fica claro que Policarpo Quaresma será executado pelas tropas florianistas por ser um adversário do regime.

Arthur Bernardes governou durante quatro anos – de 1922 a 1926 – com estado de sítio. O presidente seguinte, Washington Luís, dizia que a questão social era questão de polícia. Após a Revolução de 1930, Getúlio Vargas no poder, em 1937 deu um autogolpe, o do Estado Novo, uma terrível ditadura. O Jânio Quadros, quando renunciou em 1961, tinha por propósito dar um autogolpe. Seguia o exemplo de Charles de Gaulle, na França, que havia renunciado e só aceitou voltar com poderes autocráticos. A ditadura militar que deu o golpe em 1964, em 1968 com o AI-5 deu um autogolpe, porque alijou a chamada linha moderada. Em 1969, quando Arthur da Costa e Silva teve um AVC e faleceu, quem deveria ter assumido era o vice-presidente civil, Pedro Aleixo.

Mas ele foi alijado da sucessão, porque foi o único membro do governo que não assinou o AI-5. Então, houve outro autogolpe, assumiu uma Junta Governativa, os ministros das pastas militares, até passarem o poder para Garrastazu Medici. Em 1977, o general Sylvio Frota, ministro do Exército, tentou dar golpe em Ernesto Geisel. Quem foi o jovem capitão que auxiliou Sylvio Frota na tentativa do golpe contra Geisel? Chama-se Augusto Heleno. O autogolpe é traço característico da história da República brasileira

Como o bolsonarismo forma opinião e se posiciona em relação aos temas da atualidade?
Há um paradoxo muito importante e a razão para escrever o livro. Do ponto de vista da produção de fatos alternativos, notícias de mentira, articuladas em narrativas, o bolsonarismo não tem rival possível na política brasileira. É preciso reconhecê-lo. São profissionais. Fazem isso 24 horas por dia. Descobri na minha pesquisa recente, que ainda não está no livro, e nesse sentido é uma hipótese nova. Começamos pela constatação: o bolsonarismo possui uma midiosfera própria, que é composta pelas correntes de WhatsApp, mas possui também rede integrada de canais de YouTube e aplicativos.

Um em particular, chamado Mano, reúne um número enorme de canais de televisão e estações de rádio disponibilizados gratuitamente para todos. Mas, quando entra em qualquer rádio ou televisão, primeiro é conduzido para a caixa de diálogo, como um chat, e nessa caixa de diálogo é o truque: os conteúdos são sempre bolsonaristas e são sempre muito fortes. Nas cidades do Rio e Curitiba, quando houve a pandemia e decidiram fazer o ensino através de estações de televisão, o governador do Paraná, Ratinho Júnior, e o então prefeito do Rio Marcelo Crivella decidiram, ‘coincidentemente’, utilizar o aplicativo Mano para os alunos da rede pública.

Isso quer dizer que essas pessoas que parecem paranoicas, que vieram de outro planeta, porque sempre se saem com narrativas articuladas, mas evidentemente conspiratórias e falsas, recebem 24 horas por dia informações produzidas especialmente para elas. São vídeos e materiais muito elaborados e de impacto. E hoje, no Brasil, temos situação particularmente grave, porque uma estação de rádio, a Jovem Pan, e uma televisão, a Rede TV, têm servido para fortalecer as teorias conspi- ratórias. As teorias conspiratórias se iniciam nos canais de YouTube e de WhatsApp, então vão para o programa da Jovem Pan, a mesma teoria conspiratória é repetida.

Quando chega no mainstream, a teoria conspiratória retorna aos círculos bolsonaristas, agora com o aval de verdade. Isso é muito grave, porque o que acontece é que existem milhões de pessoas no Brasil bombardeadas todos os dias com informação produzida por canais de YouTube que fazem a “farsa jornalismo”, uma ofensa ao jornalismo, pois são evidentemente destinadas à difusão de teorias conspiratórias e de desinformação deliberada.

Como as pessoas que têm prevenção contra a mídia profissional que apura e veicula fatos foram cooptadas para a midiosfera bolsonarista?
Isso é parte do que chamo a retórica do ódio, ensinada por Olavo de Carvalho há duas décadas. Chamo de retórica de ódio e não discurso do ódio, porque não é uma forma qualquer de desqualificação do outro. É uma técnica ensinada. A lógica argumentativa foi ensinada. Tem pressupostos que são repetidos por todos. É como se fosse uma escola de perversão. Isso leva, creio, a uma questão grave, a hipótese nova que ainda não está no livro: precisamos de entender que a guerra cultural bolsonarista deu um passo além. Se não entendermos, não saberemos evitar o golpe.

Deixou de ser apenas um instrumento para a disputa de narrativas e para vencer campanhas eleitorais. É mais do que isso hoje. A guerra cultural bolsonarista está se transformando em uma seita, numa forma de vida. Não basta mais disputar narrativas. É preciso ostensivamente não usar máscaras, é preciso tomar overdose de ivermectina, como se as pessoas não tivessem sistema hepático. Não basta mais mentir dizendo que o STF retirou a competência do governo federal para agir na pandemia, é preciso fazer o que aconteceu em São Leopoldo (RS): perfilar diante de uma caixa gigante de cloroquina, bater continência e cantar o Hino Nacional.

Ou seja, a guerra cultural está se transformando num fundamentalismo cotidiano. Nunca houve nada semelhante na história brasileira. Se não formos capazes de compreender e de denunciar que a guerra cultural deixou de ser disputa de narrativas e passou a ser uma forma de vida – e é isso o que está por detrás do autogolpe planejado – abriremos caminho neste país para algo que não conhecemos, algo a que não estamos acostumados, que é o terrorismo doméstico.

Qual é o contexto histórico mais recente do qual o bolsonarismo se beneficia?
O bolsonarismo não é a causa da ascensão da extrema-direita no Brasil. Ele é a consequência de uma articulação de duas décadas de forças de direita no Brasil. O bolsonarismo não é a origem, foi o ponto de fuga, o beneficiário de um movimento anterior. Esse é o primeiro ponto. O segundo ponto, e em relação a este, o bolsonarismo é origem e causa: foi a primeira vez no Brasil em que, de maneira sistemática, aplicaram-se no país as estratégias desenvolvidas pelo grupo Cambrigde Analytica, idealizadas por Steve Bannon: em lugar de fazer política para o cidadão, o que Bannon inventou é fazer política para perfis de usuários nas redes sociais.

Então, a política deixa de ser uma ideia geral do bem coletivo, uma proposta para todos. A política passa a ser uma resposta automática e imediata para os anseios de nichos da população. Isabela Kalil, uma brilhante antropóloga de São Paulo, fez, em 2018, um estudo dos apoiadores de Bolsonaro: levantou 16 perfis de apoiadores. Há alguns contraditórios. Você tem o evangélico neopentecostal. Mas você tem o perfil “gay com Bolsonaro”. Como isso acontece na prática? Se colocar lado a lado, numa mesma campanha, no mesmo discurso, o neopentecostal evangélico e o “gay com Bolsonaro” não vai dar certo. Como podem ficar juntos? Na política da era digital você não faz mais campanha para os cidadãos. Não se trata mais do brasileiro cidadão.

Se tem 16 perfis de apoiadores, você produz 16 campanhas e se comparar os conteúdos das campanhas não param em pé, porque são contraditórios. Mas não importa, porque o gay com Bolsonaro não vai encontrar o fundamentalista neopentecostal. Mas eles vão votar na mesma eleição. E, quando se reúnem, a diferença que possuem é suprimida pela descoberta de um inimigo comum. Por isso, o bolsonarismo não vive sem inimigo: a base é muito heterogênea, foi construída não em cima de uma proposta para o país, mas em elementos de destruição.

Como a pandemia impactou a guerra cultural?
Eu preferia não ter escrito o livro, preferia não ter razão, preferia que Bolsonaro estivesse se revelado um estadista e que não tivéssemos hoje a tragédia que vivemos. Infelizmente, e eu anunciei isso em março de 2020, em minha análise do bolsonarismo, devido à predominância da guerra cultural, o bolsonarismo triunfa e o governo Bolsonaro fracassa. O que eu imaginava antes de a pandemia chegar é que por volta do segundo semestre de 2021 o país começaria a entrar em colapso, porque não tem administração pública, é simplesmente isso. Não tem gestão da coisa pública. Não tem censo.

As pessoas não compram vacina, não têm seringa estocada. Isso você pode reproduzir para todos os ministérios. O governo Bolsonaro não tem reunião de trabalho. Vimos aquela fatídica reunião em 22 de abril de 2020, que era reunião, não era nada, foram mais de duas horas, não houve uma única proposta razoável. Não há governo, porque há bolsonarismo demais. Então, o colapso me parecia inevitável e eu dizia, o colapso virá, e será o momento do autogolpe, porque não haverá alternativa. No governo Trump – a economia americana, embora tenha favorecido em muito os ricos, teve muito mais resultados positivos do que o governo Bolsonaro –, o presidente foi atropelado pela realidade.

Trump começou o governo como o governo dos fatos alternativos; terminou o governo como o governo cuja alternativa a ele foram os fatos. Negou a pandemia, estimulou a cloroquina, acreditou na imunidade de rebanho, quando tentou voltar atrás era tarde: há meio milhão de americanos mortos. Depois, quando negou o resultado eleitoral, que evidentemente não foi uma fraude, ele conseguiu provocar um fenômeno na história norte-americana. Tentou dar um golpe. A minha expectativa é de que o governo Bolsonaro seja atropelado pela realidade, pela concretude dos fatos. A pandemia acelerou a desintegração do inevitável, do governo que não há, que é o governo Bolsonaro, porque há bolsonarismo demais.

É possível fazer uma analogia entre o Ministério da Verdade, citado por George Orwell em “1984”, e o Brasil de Bolsonaro?
Com certeza, com uma diferença chocante. Se você se lembrar da distopia de “1984”, era uma imposição de alto a baixo. As pessoas precisavam escolher as suas emoções, não era possível amar, havia um monitor na casa das pessoas que controlava o batimento cardíaco para descobrir se havia emoções suspeitas. Mas nós vivemos uma situação muito pior. Vivemos o 1984 adotado voluntariamente. Isso é o pior de tudo. E uma outra distopia, que lemos muito mal, que é “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury, que só lembramos que as pessoas queimavam livros. Há um professor que diz uma frase que sempre me comoveu muito.

Ele diz para um bombeiro que decide deixar de queimar livros para lê-los: o Estado não começou a queimar livros. Foram as pessoas que deles se desinteressaram. E só por isso eles puderam ser queimados. E, na casa de cada pessoa, em lugar de livros, foi colocada uma grande tela, que não vigiava, porque vigia é muito óbvio. Mas entretinha as pessoas 24 horas, ou seja, as anestesiava. No caso brasileiro, o que é mais sério, é que vivemos um 1984 em que as pessoas voluntariamente aceitaram um big brother; no caso, um “mito”.

Ao apresentar carta de demissão, Ernesto Araújo afirmou que foi vítima de "uma narrativa falsa e hipócrita a serviço de interesses escusos nacionais e estrangeiros". Por que ele faz questão de usar a palavra ‘narrativa’?
Há uma perversão completa no uso dessa palavra. Como um resultado da revolução da contracultura nos anos 60 e como resultado da chamada teoria crítica, que questiona o próprio objeto, não toma o objeto como dado da natureza, um conceito que foi surgindo e nos anos 80 ganhou completo domínio, com dois autores – Jean Baudrillard (“Simulacros e simulação”) e Jean-François Lyotard (“A condição pós-moderna”) – com a ideia de que a pós-modernidade recusava a grande narrativa da modernidade, que sempre era teológica e tudo explicava.

Num primeiro momento, a ideia de que a realidade dura, de que os fatos eram opressões do sistema, foram ideias adotadas no sentido libertador. A genialidade do mal, do Steve Bannon, adotada por Olavo de Carvalho, e, portanto, pelos bolsonaristas, é que tomaram essa mesma ideia, e viraram-na pelo avesso. Se, num primeiro questionamento da realidade como núcleo duro e do fato como algo incontestável, poderia ser política de esquerda, porque liberava sentidos e criava uma complexidade em lugar da homogeneidade, o que aconteceu é que a extrema-direita se apropriou dessas ideias. Se só há narrativas e não há fatos, o que o bolsonarista faz: “Você tem certeza de que morreram ontem 3.780 pessoas?”.

Quando o interlocutor responde que são as estatísticas, o bolsonarista continua: “Quais são as fontes? Você por acaso verificou pessoalmente? Por acaso você sabe o CPF das 3.780 pessoas? Por acaso foi feita autópsia nessas pessoas, viu se o hospital está cheio?”. Então, a extrema- direita se apropriou de maneira perversa de uma reflexão que buscava apostar na pluralidade e na multiplicidade de sentidos possíveis e por isso recusava o império do fato e a ideia da realidade como algo incontestável, para, na verdade, utilizar isso para impor o oposto: uma visão única, maniqueísta e binária.

Qual é o projeto de Jair Bolsonaro com a sua guerra cultural?
No discurso, um Estado totalitário teocrático, em que a família terá acesso a todo o dinheiro do mundo. Não há projeto de país, não tem governo. Mas a tarefa para a resistência é abrir canal de diálogo com eleitores eventuais de Bolsonaro e com a comunidade evangélica. Ou fazemos isso ou, em 10 anos, talvez este país não seja habitável. A crise da pandemia deixa claro que não se pode governar com guerra cultural. Vai faltar kit intubação, vai faltar anestesia, uma tortura medieval. Vai ser isso ou morrer sem ar. Fatos objetivos: o governo gastou R$ 250 milhões para distribuir o kit cloroquina em todas as unidades da Federação.

A dose da AstraZeneca custa 2,5 euros. Isso quer dizer que, com o kit cloroquina, o governo jogou fora entre 13 milhões e 15 milhões de doses de vacina. Não adianta disputar narrativa. É a falência total da administração pública. Esse modelo de administração no país, fundamentalista, sectário, com base na guerra cultural, levará ao colapso absoluto.

O ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta declarou recentemente em entrevista ao Estado de Minas: “O Brasil, hoje, é administrado pela internet e por pessoas que não fazem parte do governo. O Brasil está sendo administrado pelo algoritmo”. Como avalia essa afirmação?
Concordo, é isso mesmo. E há um limite. É que o algoritmo funciona muito bem porque visa sempre à produção de curtidas no espaço virtual. A transferência automática desse modelo para a realidade tem uma dificuldade real, que é a própria realidade. Na circunstância de uma tragédia como uma pandemia, a ineficiência desse modelo vem à tona.

Em quais outros momentos da história brasileira foi empregada a guerra cultural, em voga no governo Bolsonaro?
Ela já ocorreu em alguns momentos de forma bastante aguda. Sobretudo entre 1961 e 1964, e houve inclusive institutos de direita, como o Instituto de Políticas e Estudos e Sociais (Ipes), e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), responsáveis por desestabilizar o governo João Goulart. Esse tipo de guerra cultural já aconteceu no Brasil. Uma das coisas que faço no livro é reconstruir essa história. Nesse período, a polarização foi ainda mais forte do que agora, muitos empresários financiaram o golpe e também capital americano. Durante três anos, houve vários institutos de produção cultural como o Ipes – que teve como presidente o general Golbery do Couto e Silva e um dos financiadores Walter Moreira Salles, cujo objetivo era produzir material anticomunista para desestabilizar o governo João Goulart. E conseguiram. Já houve antes. Mas qual é a novidade agora?

É o universo digital. O bolsonarismo inaugurou uma nova forma de fazer política no Brasil, pela maestria com que domina o meio digital. Além disso, há um contexto. Um efeito colateral de o PT ter governado entre 2002 e 2016 não foi compreendido pela esquerda: houve uma geração que cresceu com um partido de esquerda no poder, para a qual, pela primeira vez, foi possível, para ser de oposição, ser de direita. Para ser revolucionário, ser conservador, porque quem estava no poder era o PT. Essa geração é uma novidade absoluta na política brasileira. É coisa incompreensível uma juventude de direita. Mas se um partido de esquerda ganha quatro eleições, tem uma defasagem temporal de jovens que dominam as redes sociais, são bilíngues, falam português e internetês como línguas nativas.

São jovens de direita porque são rebeldes, num momento em que um partido de esquerda está no poder. Esse fenômeno, que foi absolutamente decisivo, é anterior ao bolsonarismo. É outra razão pela qual não podemos atribuir ao bolsonarismo a causa completa da situação atual. Em boa medida, o bolsonarismo foi tributário. Então, há dois momentos de guerra cultural: primeiro, entre 1961 e 1964. Segundo, a partir de 2002, há uma juventude de direita, aguerrida, produtiva, irreverente, que domina as redes sociais e, no Brasil, quem primeiro produziu memes de qualidade foi a direita. E essa guerra cultural a partir de 2002 tem um tema: para a juventude, ser de oposição é ser de direita e há um conceito, que é um mantra, sem o qual não se entende a chegada de Bolsonaro ao poder.

É o conceito de hegemonia cultural da esquerda. Para esses jovens de direita, o conceito é verdadeiro e eles se unem para combater uma hegemonia. Eles consideram que existe, ainda que não exista, e passe a existir como efeito prático. Mesmo a guerra cultural bolsonarista não é uma novidade absoluta, ela é o acúmulo de energia. O bolsonarismo é o acúmulo de energia da reorganização da direita, com uma novidade, que é radical: a utilização absolutamente profissional das possibilidades criadas para o campo da política e dos relacionamentos humanos, do universo digital.
(foto: Editora Caminhos/Reprodução)
(foto: Editora Caminhos/Reprodução)

“Guerra cultural e retórica do ódio – crônicas de um Brasil pós-político”
• João Cezar de Castro Rocha
• Editora Caminhos
• 456 páginas
• R$ 35


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