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Estado de Minas PENSAR

Ronaldo Correia de Brito: ''Viver no Brasil tornou-se um pesadelo''

Escritor lança livro de crônicas e lamenta situação atual do país, que "semeia palavras ruins e nos obriga a mastigar o fruto podre que brota delas"


02/04/2021 06:00 - atualizado 02/04/2021 09:07

(foto: Luiz Santos/Divulgacao )
(foto: Luiz Santos/Divulgacao )

"Bolsonaro lembra o mito grego de Cadmo, que semeou na terra os dentes de um dragão. Dos dentes nasceram homens monstruosos, totalmente armados e de aspecto ameaçador"

Ronaldo Correia de Brito

Autor de romances premiados como “Galileia” e livros de contos cortantes como “Faca” e “Livro dos homens”, Ronaldo Correia de Brito reuniu sua produção não ficcional mais recente em “A arte de torrar café” (Objetiva). “Os 55 textos não são apenas crônicas ou ensaios, resenhas ou contos curtos, embora pareçam tudo isso. Prefiro chamá-los apenas de narrativas, o que escrevi sem o intuito de fazer ficção”, conta o cearense, nascido em 1951 e radicado no Recife, na nota introdutória da edição. 

A capacidade de amalgamar reflexões e reminiscências salta aos olhos, bem como o tom de despedida de alguns textos que, lidos à luz das milhares de mortes registradas diariamente no Brasil pelo coronavírus, ganham outra dimensão. “Venho morrendo com amigos que partem e me deixam sem roteiro, porque eles representavam um hábito de vida, um lugar que eu aprendera a visitar sem medo”, escreve o autor em homenagem ao gravurista Gilvan Samico (1928-2013). 

Médico formado pela Universidade Federal de Pernambuco, Correia de Brito critica o comportamento de entidades como o Conselho Federal de Medicina durante a pandemia. “As instituições e seus associados embarcaram na política do governo federal, embora os médicos estivessem individualmente no front dos ambulatórios e hospitais, arriscando as próprias vidas, heroicamente solidários”, afirma, em entrevista por e-mail ao Estado de Minas.  

Dono de uma pequena propriedade rural em Taquaritinga do Norte, no agreste pernambucano, Correia de Brito acredita que a arte de torrar café guarda mais dificuldades do que a de escrever. “Por incompetência literal ao ofício, narro histórias. Ainda perscruto o tempo enigmático com que me deparo. Ele me parece a sentença de uma esfinge. Todos os dias me pergunto o que devo escrever e para quem escrever. Sem resposta, escrevo nem que seja para mim mesmo. Um novo romance? Talvez.” 

O que une as narrativas do livro? Por que elas são “além da ficção”?

O que une é um sentimento íntimo do Brasil. Mesmo quando visito outras geografias, é no Brasil que estou e é a partir dele que falo. Esse o amálgama das 55 narrativas denominadas “além da ficção” por se tratar de ensaios, perfis biográficos, crônicas e textos que alguns até podem chamar de contos.
 
Quais as principais diferenças entre escrever narrativas curtas e romances?

Nasci e me criei em comunidades narrativas, onde as pessoas estavam sempre contando histórias: as próprias, as da família e do lugar onde moravam, as que ouviam de outros. Um costume saudável. Ser capaz de encadear a própria narrativa não é garantia, mas já é um indício de saúde mental.

Tornei-me um narrador falante e depois um escritor. As narrativas curtas são trabalhosas. Em poucos parágrafos é preciso dar conta da linguagem, de uma boa história e, muitas vezes, defender pontos de vista sobre o mundo e as pessoas.

O romance é custoso pelo tempo que ficamos na companhia de muitas criaturas, algumas obsedantes. Mas tem a vantagem de tudo caber nele, do autor ficar livre para expor teses contrárias ao que pensa através das falas de seus personagens. 
 
“Venho morrendo com amigos que partem e me deixam sem roteiro, porque eles representavam um hábito de vida, um lugar que eu aprendera a visitar sem medo.” Como o sentimento de perda tem impactado a sua vida e sua obra?

Até os 20 anos, três gerações me precediam na família. Todos foram morrendo e agora ocupo a fila da frente, aguardando o meu chamado. Em “A arte de torrar café”, traço os perfis de alguns amigos mortos – a aquarelista Guita Charifker, o xilogravador Gilvan Samico, o curador de arte Giusepe Baccaro – e dos meus pais, que também já morreram. Mas não há mágoa nem desespero nisso, talvez uma delicada epifania.

Em “Adeus, Guita Charifker” lembro os versos do poeta Assis Lima: “Cabe-nos o presente, que, por sinal, já passou”. E na despedida a Samico, “sinto uma tristeza que não combina com a brandura do vento”. Essa crescente solidão, quase abandono, me fez procurar novas parcerias, sobretudo no teatro e na música.

Destino um tempo da literatura para filmes, encenações, onde as vezes trabalho com até 300 pessoas, como no “Baile do Menino Deus”. É uma experiência sempre nova, revigorante, cheia de desafios. 
 
“No sertão ainda semeiam palavras. Poucas. De preferência, nas pedras.” E no Brasil?

Ultimamente, no Brasil, semeiam palavras ruins e nos obrigam a mastigar o fruto podre que brota delas.  
 
Como vê a missão dos profissionais de saúde em tempos de pandemia? E o que explica a postura de alguns médicos e conselhos que receitam medicamentos comprovadamente ineficazes para a COVID-19?

De início, eu responsabilizava apenas o governo federal e seu Ministério da Saúde pela falta de valorização da ciência na prevenção e tratamento da Covid-19. O negacionismo, a irresponsabilidade com as medidas preventivas, a propaganda de medicamentos como a cloroquina, de valor negado por instituições científicas, a falta de investimentos na rede pública de saúde, tudo isso nos trouxe ao caos que atravessamos. Mas, depois, fui dos primeiros a alertar sobre a mesma postura no meio médico, no Conselho Federal de Medicina e nos conselhos regionais, nas associações médicas e sindicatos.

As instituições e seus associados embarcaram na política do governo, embora os médicos estivessem individualmente no front dos ambulatórios e hospitais, arriscando as próprias vidas, heroicamente solidários. Apenas em janeiro de 2021, o Conselho Federal de Medicina, depois de carta assinada por cinco ex-presidentes e 14 ex-conselheiros da instituição, cobrando uma postura oficial do órgão, manifestou-se. Negando que sofrera cobrança, o CFM passou a recomendar a vacinação. Mas não se posicionou contra os chamados “tratamentos precoces”. 

Uma das narrativas é sobre uma época de culto aos livros. “Havia algo de sagrado nesse culto.” O sagrado permanece ou se perdeu?

Acho que permanece, mesmo que em pequenas ilhas. Ainda existem os que amam os livros e cultivam bibliotecas. Nosso mundo brasileiro se tornou árido ao conhecimento, à cultura e às artes. Há um profundo desprezo, maltrato mesmo, por todos os valores elevados das várias civilizações.

Nós precisamos lutar bravamente pelo direito à educação. Viver no Brasil tornou-se um pesadelo. Bolsonaro lembra o mito grego de Cadmo, que semeou na terra os dentes de um dragão. Dos dentes nasceram homens monstruosos, totalmente armados e de aspecto ameaçador.
 
“A morte e o sepultamento sempre tiveram rituais e teatro, com as particularidades de cada povo e civilização.” Em tempos de pandemia, como ficam o luto, sem a possibilidade de reuniões para despedida, e o palco, sem público?

Em “A arte de torrar café”, há pelo menos três narrativas sobre sepultamentos. Vivi numa sociedade que celebrava os ritos funerários com naturalidade. A morte durante a pandemia incorporou o isolamento que já vinha acontecendo na história moderna do homem.

Cada vez mais as pessoas entregam seus familiares para morrerem nos hospitais, sozinhas, afastadas e esquecidas, em enfermarias ou leitos de UTIs. Há nisso um forte hedonismo, o desejo de negar a morte. Quanto ao palco sem público, só tenho a lamentar.
 
Muitos textos foram escritos a partir de experiências em viagens para compromissos profissionais ou afetivos. O que mudou na sua visão de mundo neste ano sem viagens?

Mudou bastante minha relação com a literatura e com o significado dela em minha vida. Fiquei menos convencido de seu poder transformador e menos ansioso com o que eu possa ou venha a produzir. Também já não procuro respostas. Tenho lembrado o epitáfio de Nikos Kazantzakis: “Não creio em nada / Não espero nada / Sou livre”. 

Minha literatura se alimenta no convívio com pessoas e lugares. Careço de ver, ouvir, cheirar, tocar, experimentar sensações, tudo o que se tornou impossível. Esses estímulos me provocam um alvoroço na memória, acordam imagens censuradas pelo consciente, desencadeiam surtos de imaginação e criatividade.

Não tem sido fácil atravessar o isolamento, manter-me na abstinência de quaresma. Sonho em ganhar as ruas, viajar, abraçar as pessoas, qualquer pessoa, desde que ela me comunique vida e não apenas o risco de contaminação e morte.  
 
Há narrativas sobre o seu pai e sua mãe. Como a família invade a sua criação literária? Como transformar experiências pessoais em literatura?

Sou fortemente ligado à família. Nossa epopeia familiar é narrada há mais de três séculos, desde que chegamos aos sertões cearenses. Há nela todo tipo de personagem que se possa imaginar, dos mais trágicos aos mais burlescos. Fomos habituados a falar dos parentes como se eles estivessem vivos e contracenando numa peça em que atuamos.

Sou capaz de repetir os nomes de alguns avós até a décima geração, sem nunca ter estudado genealogia, apenas pelo costume de ouvir suas peripécias narradas um número inesgotável de vezes. Quando escrevo, recorro a essas histórias familiares, às histórias dos lugares onde vivi e às dos livros que estudei e costumo ler. Tudo me parece igual, próprio, um patrimônio que acesso quando desejo.   
 
“A arte de torrar café: Narrativas além da ficção”
  • Ronaldo Correia de Brito
  • Objetiva
  • 200 páginas
  • R$ 49,90. 
  • E-book: R$ 34,90. 


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