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Estado de Minas

As lições do desastre

O escritor Ailton Krenak diz que 2020 não foi um ano perdido. A crise mundial desafia a humanidade a adotar novos paradigmas


01/01/2021 04:00

O líder indígena Ailton Krenak adverte: %u201CPrecisamos diminuir o consumo e conter a fúria por progresso%u201D (foto: Miguel Aun/divulgação)
O líder indígena Ailton Krenak adverte: %u201CPrecisamos diminuir o consumo e conter a fúria por progresso%u201D (foto: Miguel Aun/divulgação)

A vida não é útil. Contrariamente à noção do utilitarismo do existir, que opera um mundo formatado como se mercadoria fosse, a maravilha de estar vivo na Terra deve ser a experiência de interação do corpo com o entorno – o que comumente é chamado de “natureza” –, uma relação de entrega. A “vida é fruição”, “é uma dança cósmica” que jamais deveria ser reduzida à ridícula coreografia de lógica utilitária, que empurra à ideia de fazer coisas “úteis” para “ganhar mais”, consumir mais, atitude, que, no limite, “devora o planeta” e anuncia o fim do mundo, aliás, um fim que em muitos lugares já ocorreu.

“A ideia do utilitarismo do existir nasce conformada a um mundo pronto e triste, que se revela sob as cinzas de um planeta carbonizado pela ideia do progresso tecnológico desmedido que deixa marcas profundas na Terra, pela ganância, pela falta de empatia e de escuta aos modos de vida diversos. A vida não é útil e não deve sê-lo. Por que insistimos em transformar a vida em uma coisa útil? Nós temos que ter coragem de ser radicalmente vivos, e não ficar barganhando a sobrevivência.”

Este é Ailton Krenak, ambientalista, líder indígena, escritor e um dos mais influentes pensadores da atualidade. Intelectual dos mais requisitados para lives e entrevistas em 2020, foi vencedor do Prêmio Juca Pato, concedido pela União Brasileira de Escritores.

Ao entregar a premiação, o escritor Ignácio de Loyola Brandão assinalou a importância da obra do líder indígena mineiro. “Quem recebe o Juca Pato deste ano é um pensador, um filósofo, um crítico aguçado, um realista. Um homem cujos ancestrais estavam aqui nesta terra, postos em sossego e viram e conheceram e sofreram com tudo o que se passou e continuam a passar. A decomposição de culturas e de povos”, afirmou Brandão. “Krenak. Seu nome, você mesmo nos conta é composto por 'kre', que significa cabeça. E 'nak', que significa Terra. Portanto, Cabeça da Terra. Você mesmo explica que Krenak é a herança que recebemos de nossos antepassados, das nossas memórias de origem, que nos identificam como Cabeça da Terra, como uma humanidade que não consegue se conceber sem esta conexão, sem essa profunda comunhão com a Terra.”

O livro A vida não é útil (Companhia das Letras), organizado por Rita Carelli, reúne cinco textos adaptados de palestras, entrevistas e lives realizadas por Ailton Krenak entre novembro de 2017 e junho de 2020 – um deles extraído de entrevista ao Estado de Minas. O autor retoma reflexões também consolidadas em Ideias para adiar o fim do mundo (Companhia das Letras), que vendeu mais de 50 mil cópias no Brasil e está sendo traduzido para o inglês, francês, espanhol, italiano e alemão.

Utilidade 
O conceito de “utilidade” da existência é desconstruído por Ailton Krenak, ao demonstrar que ele está conformado à lógica civilizatória que há milhares de anos induz os humanos não apenas a agir de forma predatória sobre o planeta, mas também submetendo os povos originais que o habitam, forçando-os a renunciar a si e ao seu modo de vida, além de abrir guerra aos que resistem à “proposta civilizatória”.

Para ele, o conceito de “utilidade da vida”, que orienta a pesquisa científica, a engenharia, a arquitetura e a tecnologia, destrói a natureza, escraviza e explora povos, instalando e perpetuando um sistema de desigualdades sociais profundas.

“O modo de vida ocidental formatou o mundo como uma mercadoria e replica isso de maneira tão naturalizada que uma criança que cresce dentro dessa lógica vive isso como se fosse uma experiência total. As informações que ela recebe de como se constituir como pessoa e atuar na sociedade já seguem um roteiro predefinido: vai ser engenheira, arquiteta, médica, um sujeito habilitado para operar no mundo, para fazer guerra. Tudo já configurado”, considera Ailton Krenak.

O autor adverte: “Neste momento, estamos sendo desafiados por uma espécie de erosão da vida. Os seres que são atravessados pela modernidade, a ciência, a atualização constante de novas tecnologias, também são consumidos por elas.”

Para Krenak, o egoísmo e o individualismo, que constituem o fundamento do modo utilitarista de vida, são parte do desafio que está posto em termos de como adiar o fim do mundo, se isso ainda é possível. “Não vou me salvar sozinho de nada, estamos todos enrascados. E quando percebo que sozinho não faço a diferença, me abro para outras perspectivas. É dessa afetação pelos outros que pode sair uma outra compreensão sobre a vida na Terra. Se você ainda vive a cultura de um povo que não perdeu a memória de fazer parte da natureza, você é herdeiro disso, não precisa resgatá-la. Mas se você passou por essa experiência urbana intensa, de virar consumidor do planeta, a dificuldade de fazer o caminho de volta deve ser muito maior”, considera.

Estar vivo atravessa outra dimensão, que nada tem a ver com a lógica mercantil e utilitária. “A consciência de estar vivo deveria nos atravessar de modo que fôssemos capazes de sentir que o rio, a floresta, o vento, as nuvens são nosso espelho na vida”, diz ele. “Nós estamos aqui para fruir a vida, e quanto mais consciência despertarmos sobre a existência, mais intensamente a experimentamos. Sem autoenganação. As religiões, a política, as ideologias se prestam muito bem a emoldurar uma vida útil. Mas quem está interessado em existência utilitária deve achar que este mundo está ótimo: um tremendo shopping”, acrescenta.

CLIMA 
Face à mudança do clima no planeta, o que afeta indistintamente a todos – inclusive negacionistas –, vai ocorrendo um lento despertar de consciência de que os povos originários, em diferentes lugares do mundo, ainda guardam vivências preciosas que podem ser compartilhadas, acredita o escritor mineiro.

“O que nos resta é viver as experiências, tanto a do desastre quanto a do silêncio”, registra o autor. É por essa razão que os krenaks se recusaram a deixar a margem esquerda do Rio Doce, enlutado há dois anos pelo rompimento criminoso da barragem de Mariana. A experiência do desastre transformou a vida naquela região em abismo. E a aldeia decidiu, por mais dolorosa que seja, vivenciar integralmente a experiência.

“Nós, krenaks, decidimos que estamos dentro do desastre, ninguém precisa vir tirar a gente daqui, vamos atravessar o deserto, temos que atravessar. Ou toda vez que você vê um deserto você sai correndo? Quando aparecer um deserto, o atravesse”, afirma Ailton Krenak.

Carta à Terra e a Terra responde
Destruição da Amazônia é fruto da visão utilitária da natureza, segundo Ailton Krenak (foto: Carl de Souza/AFP)
Destruição da Amazônia é fruto da visão utilitária da natureza, segundo Ailton Krenak (foto: Carl de Souza/AFP)

“Esta carta é destinada a você. Autorizo-me a te escrever, a você, Terra, prolongando através da escrita trocas silenciosas, sonhos e pesadelos. Medos também, tristezas e revoltas face ao que nos acontece.”

Assim a economista e ambientalista francesa Geneviève Azam dá início ao livro Carta à Terra e a Terra responde (Relicário), em que aborda a apreensão face ao capitalismo desenfreado, ao industrialismo frenético que semeia desolação, promove desastres ecológicos que apontam para uma visão prospectiva da história futura sem nós, a humanidade, enfim, um “exílio sem volta”.

Movida pela urgência de afastar esse cenário, Geneviève Azam escreve a carta. No prefácio da obra, Ailton Krenak registra: “Este livro é uma luminosa voz de envolvimento com as fontes de criação e manutenção da vida no organismo da Pachamama, percebida como jardim a ser contemplado em fruição, esta possível presença em simbiose criativa com as constelações de seres que animam o planeta Terra.”

Krenak diz se reconhecer na escrita de Geneviève Azam. “Ante os anúncios de uma Terra inabitável, a poética de uma reconciliação entre terrenos traz esperança crítica a outros modos de estar no mundo. Em tempos de cólera e pandemia, mundos em colisão e guerras por vir, reencontrar a voz da nossa Mãe intangível é como brisa fresca das planícies entrando nos pulmões, alívio imediato para dores que não têm lugar no paraíso terrestre, mesmo apelando a todas as crenças deste mundo dominado por ideologias”, assinala.

Ao relembrar a história da humanidade, trazendo referências científicas, filosóficas e literárias, Geneviève Azam se pergunta como as pessoas podem se aliar para resistir às injustiças e à degradação ambiental. Ela aborda a possibilidade de uma insurreição ética e política para defender o planeta e os diversos mundos que ele abriga. Até porque, considera, a Terra em seu lado selvagem, que se rebela sabotando projetos e frustrando as leis da economia, também tem o poder de despertar nossos sentidos sufocados e fazer vislumbrar um outro modo de habitá-la. Assim, a resposta da Terra à carta é o chamado à desobediência a tudo aquilo que ameaça a sustentabilidade e a dignidade da vida. ( 

ENTREVISTA
Ailton Krenak,
escritor 

Muitos falam que 2020, em decorrência da pandemia, foi um ano perdido. Foi mesmo perdido?
Não é possível imaginarmos que um ano seja perdido. Essa expressão tenta dar sentido crítico ao fato de termos ficado confinados, de não estarmos agitando, mas, na verdade, ganhamos muitas outras observações sobre a vida. Então, é um ano repleto de ensinamentos para todos nós. Precisamos diminuir o consumo e a fúria por progresso, a ideia de que precisamos estar sempre nos apropriando de alguma novidade da natureza, nos apropriando de algum aparato, algum artefato, que obviamente vai ser extraído do planeta. Nem todo mundo teve a mesma observação sobre esse tempo. A minha esperança é de que muitas pessoas, em vários lugares do mundo, atinaram com o entendimento de que habitamos o mesmo planeta e precisamos diminuir a nossa predação sobre o planeta. Essa é uma lição de 2020 que é indelével, que ficou marcada pelo dano, por tantas perdas, tantas pessoas que morreram, o que pode sugerir que foi um ano perdido. Mas foi um ano cheio de instrução para entrarmos em outro tempo.

O que esperar para 2021, neste momento em que a pandemia recrudesce e incertezas ainda rondam a perspectiva da vacinação em massa?
A vacinação este ano se configura na ideia do Papai Noel. A maioria coloca uma meia na janela, em caso de dúvida. A campanha global por vacinação vai acontecer e haverá constrangimento a todos os países para que promovam a vacinação. A Organização Mundial da Saúde estará nesse comando. Não acredito que um país vá continuar insistindo nessa negativa, porque isso poderá causar censura e inclusive retaliação econômica. Agora, sobre 2021, seria bom não esperarmos nada. Estamos sempre em expectativa maior do que a possibilidade do real, e isso frustra muito as pessoas. Melhor não esperar nada, porque toda brisa, todo vento, toda chuva, tudo que vier será uma bênção.

Como mudar o modo de vida sempre focado na produção e no retorno financeiro para um outro olhar para a vida?
O Pepe Mujica tem um Fusca e no capô está escrito assim: 'Só os muito pobres é que precisam de tudo'. É uma expressão muito crítica sobre a ideia de que a gente sempre precisa de alguma coisa. Está sugerindo que podemos viver com nada. Todo mundo quer tudo. Então, quando ele diz que só os muito pobres precisam de tudo, está se referindo aos pobres de espírito. Esses precisam de tudo. Os bilionários são muito pobres e precisam de tudo. São os glutões, têm as grandes fortunas. Observe a experiência da lagarta. A lagarta é um conjunto de tubos digestivos que devora, devora, devora até morrer. Depois vira borboleta, mas não lembra que foi lagarta. É metamorfose. A natureza ensina. E entenda que viver não é empreender. As pessoas confundem a vida com um empreendimento. A vida não é empreendimento, é uma fruição.

Hoje em dia, só se fala em empreendedorismo...
Desde o final do século 20, estamos vivendo a fúria de todos virarem empresários de si, o tal do empreendedorismo. Um jovem deve decidir qual é o empreendimento que será a vida deles. Muitos caem nessa armadilha e para obter reconhecimento, até familiar, abandonam a vida de verdade por um simulacro. Depois, quando estão com 50, 60 anos, descobrem que já foi grande erro, mas aí já são profissionais frustrados porque confundiram a vida com uma profissão. A vida não é uma profissão para ninguém. Essa ideia do empreendedorismo é o novo pensamento do capitalismo, é para que você se torne escravo de si. (BM)


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