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Estado de Minas NOVELA

O beijo com a faca em riste: Ariana Harwicz narra relação complicada entre mãe e filha

Em A débil mental, escritora argentina mostra relação que se deteriora numa espiral de violência, loucura e sexo


13/11/2020 04:00 - atualizado 13/11/2020 08:29

A escritora argentina Ariana Harwicz ganhou projeção mundial com seu livro de estreia, Morra, amor, publicado originalmente em 2012. Primeira parte da intitulada Trilogia da paixão, a novela se distingue por oferecer uma experiência radical de leitura, através do monólogo interior de uma mulher que, isolada numa região rural, na companhia apenas do marido e do bebê, lida com os demônios da depressão pós-parto. Para ter a dimensão do reconhecimento, a edição inglesa foi indicada ao Man Booker Prize, prestigiado prêmio do Reino Unido que já elegeu nomes como Ian McEwan e Margaret Atwood. No Brasil, o livro foi lançado em 2019 pela Instante. 

A débil mental, que chega agora às livrarias brasileiras pela mesma editora, é chamada, pela autora, de segunda parte da trilogia, mas, narrativamente, pode ser considerada uma contraparte. Embora tenham histórias fechadas, que não se conectam de forma direta, ambas trazem argumentos siameses e se desenrolam numa ambientação de similar natureza (geográfica e psicologicamente), gerando uma espécie de contextura identitária. A variável está na conduta. Se Morra, amor já apresentava uma prosa sinestésica, vigorosa, crua, em A débil mental, Ariana Harwicz avança para uma escrita mais reacionária.

Não é fácil descrever o estilo da autora argentina sem recorrer a uma analogia. É como tatear por um terreno envolto em névoa e cheio de perigos, onde o que está em primeiro plano são vultos. Os enredos são repletos de possibilidades interpretativas. Como se a história de fato estivesse bispada sob o fluxo frenético de consciência, sob esse desarticulado caudal de palavras, imagens brutas, sensações primitivas e uma essência do que poderia ser uma crítica social deambulando por todo o texto.

O que ressoa na camada principal é a voz descarrilhada de uma filha que vive uma relação de afeto e repulsa, de cumplicidade e desprezo com a mãe, atadas por um estigma que compreende  o corpo simbólico e o corpo físico, lançando-as numa espiral de loucura, violência e sexo. Marginalizadas num vilarejo de aspecto selvagem, a saída possível para se livrarem da maldição da miséria é o amante da filha, um personagem essencialmente fálico a partir do qual se constrói um mosaico gráfico de parafilias.

Tal visão mosaicista é um fator fundamental para toda a trama, pois, a despeito de uma estrutura armada em breves capítulos e de uma tensão contínua de destruição mútua entre as personagens, Harwicz adota um procedimento dúbio de escrita que sugere uma ideia de justaposição. Em algumas passagens, vozes de mãe e filha se fundem, completam-se, pondo em dúvida quem está no controle da narração, de quem é o comportamento relatado; se não é, de fato, uma pessoa absorvida na outra.

A literatura de Ariana Harwicz não é para todo tipo de leitor, mas, ao adentrar o universo caótico engendrado pela autora, é impossível sair ileso



Abuso, prostituição, incesto

Assim, passado e presente coabitam um circuito de feroz desarrumação, embaralhando memórias de forma imprecisa e dissociativa, sobretudo no que diz respeito aos homens que passaram pela vida das duas. Nunca é claro, por exemplo, com quem a criatura pai se relaciona sexualmente, trazendo à tona episódios borrados que (figurativamente ou não) envolvem abuso infantil, prostituição e incesto. Este último, aliás, também entre mãe e filha. "A vida é uma cachorra no cio", diz a personagem. E, mais adiante, complementa: "Às vezes, um corpo não é mais que um coito".

O inusitado (ou talvez bizarro) é que, dessa entropia mental de caráter perturbador, a autora consegue extrair uma alta carga poética. Combinando o soturno do bosque, animais selvagens e um espectro pagão, de ritos, cantilenas e símbolos, o texto adquire uma estética que, por vezes, lembra os contos da carochinha. Mas não aqueles limpos, edulcorados, e sim as narrativas arcaicas de bruxas canibais, mulheres que se conluiam na floresta para sequestrar crianças e devorar homens.

Sim, não seria um lance de marketing classificar a novela de Harwicz de literatura wicca. Um caldeirão ficcional que segue o legado de autoras como Silvina Ocampo, Clarice Lispector e Hilda Hilst, que deram vida a textos com máxima voltagem de erotismo, manifestações de neurose e um brutalismo que se consorcia à condição de fêmea, embora guardem uma beleza imprescindível, uma contemplação lírica. Atualmente, no Brasil, a paulista Márcia Barbieri é a que melhor repercute essa maneira de escrita.

Para 2021, está programado o lançamento da última parte da trilogia, a também novela Precoz (“Precoce”, em tradução livre), que aborda o relacionamento obsessivo e obsceno entre mãe e filho. Como, presumo, ficou claro a esta altura da crítica, a literatura de Harwicz não é para todo tipo de leitor, mas, ao adentrar o universo caótico engendrado pela autora, é impossível sair ileso. Tomando como representação uma fala da protagonista – "(...) nos beijamos. E beijar-nos foi como avançar com a faca em riste" –, são histórias que deixam entrever uma experiência de certo encanto, mas, no fim, sempre aguarda algo maldito, alguém febril a empunhá-lo no peito.

Trecho do livro

Depois, se não estiver delirando, disse que não vai mais poder vir com tanta frequência, queria dizer alguma coisa e não podia. Ainda que o tenha dito claramente ao passar debaixo da ponte e o eco repetiu. Que a sua situação, que o contexto, que ser responsável, que vamos nos ver, que não tem como a gente não se ver, que não estou dentro do cérebro dele para entender, que eu entre um segundo dentro do cérebro dele, mas que não vai poder dirigir até aqui tanto assim, que põe tudo em risco, que vai me escrever para o próximo encontro. Eu o escutei com a reverência e o assombro de uma débil mental que se embaralha e se perde em mil detalhes à sua volta, uma praga de micróbios sobre a esplanada.

Confundo o balançar dos animais com o das plantas, as lagartixas insoladas enfiando-se nas bocas de lobo. E tudo ao final foi difuso, impreciso, brumoso. O que ele tinha me explicado? Conti- nuávamos ligados. Minha boca feito um alongado focinho. De onde vinham esses vocábulos? Por que havia preferido esses a outros? Que idioma escolher para batizar as coisas? Como alguém é capaz de falar? O que tinha dito. Eu tinha esquecido. Era o líquido espesso da saliva se acumulando, desfazendo-se, no seu palato. Essa transmutação de boca em divindade. Como uma doença genética incurável, terminou seu discurso e nos beijamos. E beijar-nos foi como avançar com a faca em riste.

A DÉBIL MENTAL
Ariana Harwicz
Editora Instante
Todavia
96 páginas
R$ 44,90    


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