(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas ROMANCE

Márcio Metzker cria uma utopia nos trópicos, com um 'país' no Sul da Bahia

Criação do país independente a partir de um documento secreto de Dom Pedro I é o ponto de partida da obra


09/10/2020 04:00 - atualizado 09/10/2020 09:18

Márcio Metzker: ação incessante e ironia contra as grandes corporações em Utopia tropical(foto: Franzlália Melo)
Márcio Metzker: ação incessante e ironia contra as grandes corporações em Utopia tropical (foto: Franzlália Melo)
Márcio Metzker, no romance Utopia tropical, parte de uma premissa incrível: a criação de um país independente no Sul da Bahia por um polêmico documento secreto do imperador Pedro I, que só teria sido descoberto na década de 1980. Mas essa ficção se torna verossímil graças às engenhosas soluções que o autor apoia em pesquisa histórica. O resultado é uma narrativa fluente e envolvente que prende a atenção do leitor do primeiro ao último parágrafo. 

O romance alinha dois fios condutores em capítulos alternados: o primeiro começa numa cidade pequena do Vale do Mucuri, com os problemas familiares de um alfabetizador de adultos desempregado pela extinção do Mobral e abandonado pela esposa. Depois de uma briga feia com o capataz da fazenda do sogro, ele se refugia no litoral da Bahia.

O segundo fio é a trajetória de um camponês alemão que vai trabalhar na construção de grandes tonéis de vinho para o imperador da Áustria, e conhece uma princesinha que se tornaria a imperatriz Leopoldina no Brasil. Essas biografias tão divergentes vão se juntar bem adiante.

Utopia tropical tem quatro narrativas distintas: a primeira é de um romance clássico ambientado em pequenas comunidades interioranas do Brasil e da Europa; a segunda tem o andamento de um romance de aventuras, com episódios violentos e ações espetaculares; a terceira é a crônica política da viabilização de um país independente dentro do Brasil, com todos os desafios econômicos, políticos, culturais e sociais que isso acarretaria; a última é um painel sobre as adversidades deixadas pela mentalidade colonial no Brasil. O autor atribui o subdesenvolvimento endêmico à incompetência das elites, à subserviência dos governantes e à ganância das oligarquias

Os elementos de sucesso dos romances clássicos estão presentes nessa obra: a trajetória de um homem comum que luta para recomeçar a vida, conseguir um novo amor e ganhar o respeito da comunidade. Depois de experimentar as delícias da riqueza fácil, sofre uma crise de consciência e toma posição definitiva do lado mais fraco da luta de classes.

Ressaltam-se a partir daí as qualidades que, desde o início, conquistaram a simpatia do leitor: sua firmeza de caráter, a energia para o trabalho e a coragem para graves enfrentamentos. A norma de conduta que adota é o adágio criado pelo saudoso bispo dom Pedro Casaldáliga: "Vergonha na cara e amor no coração" (sugeri a frase ao autor, pelo poder de inspirar as pessoas de boa índole). 

A prosa de Márcio Metzker flui com vivacidade em narrativas de cultura local e aspectos místicos que se inserem no campo do realismo fantástico. É bem verdade que não se detém na ourivesaria literária, preferindo manter um ritmo alucinante na ação. Mas presenteia o leitor com algumas pérolas.

As melhores delas estão nos confrontos com as autoridades e nos momentos mais picantes, como naquele em que o personagem tem uma visão momentânea de seminudez de uma secretária francesa, "suficiente para fazer relinchar o garanhão que Álvaro trazia sujeitado em suas estrebarias mais íntimas". Metzker confere ao seu protagonista uma forte heterossexualidade que parece fora de moda na literatura atual.  

Mordacidade

É certo que os historiadores vão torcer o nariz, como torcem para todo autor que pendura sua ficção nos ganchos históricos. Várias corporações são tratadas com mordacidade ou ironia, como os advogados, os tabeliães e a parte ociosa do magistério. E não só elas, mas grupos de militância e movimentos inseridos no campo da esquerda que o autor alfineta, como as feministas e os ecologistas. Mesmo sabendo que hoje existem movimentos identitários que cumprem um papel precioso na luta de transformação social, temos que reconhecer que as patrulhas ideológicas estão de armas afiadas.

No momento atual, é temeridade provocar a esquerda, ao mesmo tempo em que detona o fisiologismo da direita, mas o autor assume que escreve para suscitar polêmicas e não para agradar aos amigos.

Utopia tropical vai descontentar quem espera encontrar a narrativa utópica idealizada de uma sociedade perfeita. Também zomba do ideário dos hippies contemplativos, que buscam a felicidade, a paz interior, o eu verdadeiro pela comunhão com a natureza. Mas o leitor vai encontrar os ingredientes químicos que são o passaporte para essas viagens esotéricas, porque o país utópico legalizou todos os tipos de drogas psicoativas.

Por outro lado, os episódios de vingança e retaliação vão funcionar como catarse para o leitor, e muitos vão gostar de ver a punição rigorosa dos crimes. Outros, como eu, ficarão chocados com as soluções primitivas que adotam. Afinal de contas, lutamos a vida toda pela consolidação de uma prática centrada nos direitos humanos em toda a administração pública, especialmente nas polícias, e para continuar os avanços no processo civilizatório. Na utopia de Márcio Metzker, a justiça é veloz e cruenta. Não oferece atenuantes nem leniência para assassinos ou para corruptos

Grandes surpresas aguardam o leitor no fim do livro. Quando o novo país começa a dar certo e completa uma década de desenvolvimento e prosperidade, uma ameaça fascista se levanta no horizonte político brasileiro e um desfecho dramático se anuncia. Às portas desse confronto, o autor se redime das alfinetadas que desferiu contra a esquerda, porque aponta todo o peso de sua literartilharia contra a estupidez da direita cega e ideológica.

Por qualquer ângulo que se veja, Utopia tropical é um romance capaz de agradar a todos os públicos. Seria incorreto limitá-lo ao rótulo de romance político. Tem paixões arrebatadoras, sensualidade e romantismo,  aventuras trepidantes, umbanda e candomblé, festas populares, temas científicos, avanços tecnológicos. Identifico nessa obra elementos do genial Gabriel García-Márquez, que assim se definia: "Sou um jornalista, fundamentalmente. Toda a vida fui jornalista. Os meus livros são livros de jornalista, embora se veja pouco".

*Durval Ângelo Andrade é professor e conselheiro do Tribunal de Contas de Minas Gerais

Utopia tropical
>> Márcio Metzker
>> Outubro Edições
>> 596 páginas
>> R$ 60 no e-mail chemsmetzker@gmail.com 
>> E-book: R$ 24 (Amazon)


receba nossa newsletter

Comece o dia com as notícias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)