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Estado de Minas LITERATURA

Biografia da polonesa Wislawa Szymborska, uma luz nos versos que indagam o mundo

Obra enfoca a vencedora do Nobel de Literatura e ajuda a dissipar os mistérios da escritora avessa a entrevistas e que preferia 'gostar das pessoas a amar a humanidade'


postado em 17/07/2020 04:00 / atualizado em 17/07/2020 07:36

A poesia de Wislawa Szymborska é feita de perguntas – pequenas, grandes, surpreendentes. Em uma obra relativamente enxuta – são apenas 13 livros publicados, dos quais um póstumo, em pouco mais de cinco décadas de produção literária –, os poemas da ganhadora do Nobel de Literatura de 1996 são como hastes de interrogação cravadas em território lunar: eles estão ali, perplexos e incisivos diante do cosmos, sem nenhuma esperança de resposta, mas insistentes em sua capacidade de nos assombrar.

Esta solidão abissal inerente à própria escrita – já que nenhum escritor sabe exatamente a quem se destina a sua obra – pode dar a entender que a poesia de Maria Wislawa Anna Szymborska perde-se em si mesma, mergulhada em questões etéreas ou metaficcionais, sem diálogo com um possível outro que dela se aproxima.

Nada mais enganoso que o retrato piedoso de uma escritora bradando seus versos sem ressonância. Foi justamente a vertigem arrebatadora da poeta polonesa que me capturou, há uns 20 anos. O assombro inicial jamais se dissipou. 

A dicção despida de contorcionismos, sem afetação, reveste de aparente simplicidade uma poesia densa e sofisticada, que se ocupa de coisas comuns. Ou quase comuns. Szymborska nasceu em 1923, no vilarejo de Bnin, e viveu em Cracóvia desde os oito anos de idade até a morte, em 2012.

Sua vida ao longo de 89 anos era de pouco conhecimento público. Até ganhar o Nobel, quando tinha 73 anos, ela não havia concedido nem 10 entrevistas. Parte desse mistério se dissipa com a biografia Quinquilharias e recordações (Anna Bikont e Joanna Szczesna, tradução de Eneida Favre, ed. Âyiné), que chega ao Brasil com oito anos de atraso. 

A obra passa pelo ambiente familiar da autora, sua infância e juventude, os anos stalinistas que ela renegou depois – assim como rejeitou os dois livros escritos no período – e sua maturidade. O que emerge em mais de 500 páginas de pesquisa é uma vida sem sobressaltos, dedicada – sem alarde – à literatura.

Ao contrário de outro poeta polonês famoso, Czeslaw Milosz, ganhador do Nobel em 1980, que aceitava todos os convites de palestras e adorava pontificar sobre a relevância da literatura, Szymborska recusava a maioria dos chamados, não opinava publicamente sobre poetas conhecidos e sentia terrível constrangimento em fazer qualquer leitura de seus poemas.

“Um poeta é ótimo, dois é bom, mais de 100 é ridículo”, ela ironizou sobre os saraus. Ela escrevia – e pronto. Szymborska também fez crônicas literárias de livros obscuros, por 30 anos, que estão reunidas em três volumes ainda inéditos por aqui, batizados de Leituras não obrigatórias (algumas foram publicadas na revista serrote, em 2017).

A biografia ilumina a obra ao falar da vida. Os poemas de Wislawa Szymborska guardam um tom cético, mas que não resvala para o trágico, conservando uma leveza que vem do riso e da ironia. Mesmo nos temas mais ásperos, o recurso ao humor provoca um distanciamento apropriado à autora.

“A bem da verdade, o humor é uma grande tristeza que consegue perceber as coisas engraçadas”, ela escreveu em uma crônica. Curiosidade: quando criança, seu pai lhe comprava por 20 centavos alguns de seus versinhos, “desde que fossem engraçados”.

Na vida pessoal, ao que parece, a leveza também prevalecia. A autora avessa aos holofotes prezava as reuniões com amigos, se divertia fazendo limeriques (poemas jocosos de cinco versos), colecionava badulaques kitsch e quinquilharias que espalhava pelos cantos do apartamento, em Cracóvia. Muitas dessas engenhocas, depois de um tempo, eram sorteadas entre os amigos.

Um dos hábitos afetivos que ela cultivou até o fim da vida foi o de enviar cartões-postais personalizados, elaborados com a técnica de colagem de revistas. A edição brasileira inclui caderno de imagens que reproduz, além de fotos da escritora, alguns dos postais recebidos pelos amigos.



Sobre ofício


Para os que gostam de conhecer o modus operandi de seus autores favoritos, ficamos sabendo que Wislawa escrevia à mão em pedaços de papel. Só depois de finalizados os textos eram copiados a máquina ou digitados. “A mais importante atividade do poeta é rabiscar e o utensílio mais valioso deve ser a cesta de lixo”, ela ensinou. “O poema escrito na primavera não necessariamente resiste à prova de outono. Eu guardo o poema por bastante tempo, escrevo muito mais do que possa parecer.”

Ela mantinha um caderno de notas, com palavras e pensamentos que podiam ou não dar origem a algum poema futuro. Se aproveitava alguma dessas ideias, a riscava no caderno. Isso poderia levar muito tempo. Uma frase registrada no caderno de notas em meados de 1960 – “alguns gostam de poesia” – virou título de um poema publicado cinco décadas depois. Sobre o seu processo de escrita e influências, só silêncio.

Pelos poemas, sabemos que admirava Montaigne, Kaváfis, Dickens e Thomas Mann. Não falava sobre seus métodos, nem em entrevistas, nem em recitais ou mesmo nas reuniões com os amigos. Mas ela deixou escapar, certa ocasião, que muitas vezes começava um poema pelo fim, para só depois iniciar a “longa escalada até o começo”.

Szymborska não tinha pressa. Quando recebeu a notícia do Nobel, ela escrevia um poema que só foi retomado quatro anos depois. A persistente procura da palavra certa ocupava a sua existência. Ela nunca teve filhos. Foi casada com o poeta Adam Wlodek, mas depois de cinco anos preferiu ser sua maior amiga. Não se casou com o seu grande companheiro de vida, o também escritor Kornel Filipowicz – “éramos cavalos que galopam um ao lado do outro”. Ela sabia o preço de suas escolhas.

A vida miúda


Um aspecto central na obra de Wislawa Szymborska está no olhar da poeta para o detalhe, o que margeia o grande acontecimento. A vida está naquilo que não se vê de imediato, no que quase se perde frente ao rebuliço do mundo e que, talvez, só a arte seja capaz de fazer sobreviver. Exemplar desse modo de ver e escrever é o poema Visto do alto:

“Um besouro morto num caminho campestre/ Três pares de perninhas dobradas sobre o ventre (...)/ Para nosso sossego, os animais não falecem,/ morrem de uma morte por assim dizer mais rasa/ perdendo – queremos crer – menos sentimento e mundo,/ partindo – assim nos parece – de uma cena menos trágica”. 

Lido o poema, como ver com naturalidade a nossa pegada sobre a terra, o chão onde pisamos, aquilo que nem remotamente imaginamos ignorar? Não surpreende, portanto, a vastidão da imaginação poética de Szymborska. Sua obra se vale de personagens bíblicos à astronomia, de seres arqueológicos a vultos históricos, de gente e de bichos, de plantas e de minerais. “O poeta é um selvagem (...) que conversa em versos com os mortos e não nascidos, com as árvores, os pássaros e até o lustre e a perna da mesa (...)”, escreveu em uma crônica. 

Mais surpreendente é a sensibilidade de traduzir essa consciência a partir das coisas miúdas ou mesmo de um ponto de vista inusitado. Para falar da morte de um amigo querido, em um de seus poemas mais pungentes, ela recorre ao gato agora órfão de seu dono (Morrer/ isso não se faz a um gato/ Pois o que há de fazer um gato/ num apartamento vazio...). A solidão do gato é a própria dor que a dilacera.

Sua poesia, gigante, transcende qualquer fronteira, mas é preciso entender de onde parte. Em Possibilidades, uma espécie de poema-estatuto, ela disse: “Prefiro-me gostando das pessoas/ do que amando a humanidade”. É uma poesia feita de uma memória mais rarefeita. Mais que lembrar, essa memória se constrói junto ao sujeito que também nasce com o poema. Ou que talvez já estivesse ali há muito tempo, esperando apenas a escrita da poeta.

De qualquer forma, sabe-se de onde vem. No mundo enorme, barulhento e corrosivo, o que a poeta exercita é um olhar de amorosa cumplicidade. “Quatro bilhões de pessoas nesta terra/ e minha imaginação é como era/ Não se dá bem com grandes números/ Continua a comovê-la o singular” (Um grande número).

Pois ao falar das pessoas que ela inventa ou recria, da mulher de Lot ou da esposa que espera o retorno do companheiro de uma batalha, da vietnamita que tem uma só resposta vital no interrogatório ou da amante que percebe a distância que a separa daquele que dorme sob seus braços, ela fala de todos nós – os que vivem aturdidos sobre a terra. Os que sofrem e amam. Os que têm defeitos e vícios, os virtuosos e honrados. Os deserdados de qualquer paixão. Os que ficaram à margem. 

Wislawa Szymborska enfrentou todos os seus dilemas como escritora a partir de uma inspiração febril, sensível, dilacerante. No discurso de premiação do Nobel ela disse que “a inspiração, seja ela o que for, nasce de um incessante ‘não sei’”. A poeta se espanta com o que vê, desde o pequeno inseto no meio do caminho, denunciando a indiferença do homem em relação à morte de bichos ínfimos, aos horrores da história da qual foi testemunha.

Sua poesia é feita desse assombro – por isso ela faz tantas perguntas. E nós nos espantamos com o que ela nos provoca com sua escrita. Não é pouca coisa. Se a arte tem algum valor – e me parece obsceno ter de responder a essa pergunta –, é o de nos manter despertos e vivos. Atentos ao mundo, ao outro. A poesia não é capaz de salvar o mundo, disse Szymborska. Mas, sem ela, como fazer essa travessia?

José Eduardo Gonçalves é escritor e editor da revista literária Olympio

Wislawa Szymborska enfrentou todos os seus dilemas como escritora a partir de uma inspiração febril, sensível, dilacerante. No discurso de premiação do Nobel ela disse que “a inspiração, seja ela o que for, nasce de um incessante ‘não sei’”. A poeta se espanta com o que vê, desde o pequeno inseto no meio do caminho, denunciando a indiferença do homem em relação à morte de bichos ínfimos, aos horrores da história da qual foi testemunha. Sua poesia é feita desse assombro.
 
Para ler Szymborska no Brasil
Poemas (2011) e Um amor feliz (2016), ambos da Companhia das Letras, com tradução de Regina Przybycien

Em breve
Correio literário ou como se tornar (ou não) um escritor. Tradução de Eneida Favre. Belo Horizonte-Veneza. Editora Âyiné.

  
» Quinquilharias e recordações 
» De Anna Bikont e Joanna Szczesna
» Tradução de Eneida Favre
» 554 páginas
» R$ 109,90
» Editora Âyiné

TRECHO DO LIVRO

Ela disse a Krystyna Nastulanka: “A criação consiste em arrancar uma partícula da realidade. [...] Às vezes, me parece que aquela ‘alegria de escrever’ consiste simplesmente em encontrar ou mesmo em apenas procurar aquela palavra que me é tão necessária e que muitas vezes não existe mesmo e é preciso criá-la, ou na procura de alguma figura estilística. [...] As ideias vêm, às vezes, ‘do ar’, às vezes, o ponto de partida é a colisão entre duas palavras. Descubro, por exemplo, que essas duas palavras quando se avizinham diretamente se reforçam de forma recíproca. [...]

No poema eu almejo esse efeito, que na pintura chamamos de claro-escuro. Eu gostaria que no poema elas coubessem lado a lado – e até se fundissem entre si –  as coisas sublimes e triviais, tristes e cômicas [...]. Uma coisa em particular jogada numa pilha de outras coisas não tem muito significado; vista isolada, parece completamente diferente. De súbito se verifica que a natureza, mesmo sendo de uma única coisa, é estranhamente complicada. A poesia deve transcender o óbvio, deve dar-lhe outra dimensão.”

Nas palestras que deu nos anos 1990 na chamada escola de escritores, ou seja, no curso de pós-graduação da Universidade Jaguielônica, colocava na cabeça dos jovens escritores que a mais importante atividade do poeta é rabiscar, e que o utensílio mais necessário em seu apartamento é o cesto de lixo. “Eu não publico muito, porque escrevo de noite, e de dia eu tenho o hábito desagradável de ler aquilo que escrevi, e afirmo que nem tudo passa pela prova de apenas uma rotação da esfera terrestre”, disse ela numa de suas primeiras entrevistas.

POEMAS SELECIONADOS

Desatenção

Ontem me comportei mal no universo.
Vivi o dia inteiro sem indagar nada,
sem estranhar nada.

Executei as tarefas diárias
como se isso fosse tudo o que devia fazer.

Inspirar, expirar, um passo, outro passo, obrigações,
mas sem um pensamento que fosse
além de sair de casa e voltar para casa.

O mundo podia ter sido percebido como um mundo louco,
e eu o tomei somente para uso habitual.

Nenhum – como – e por quê –
e como foi que aqui apareceu –
e de que lhes servem tantas minúcias buliçosas.

Fiquei como um prego mal pregado na parede
ou
(aqui uma comparação que me faltou).

Uma depois da outra ocorreram mudanças
mesmo no estrito espaço de um pestanejar.

Sobre uma mesa mais nova, por mão um dia mais nova,
o pão de ontem foi cortado de um modo diferente.

Nuvens como nunca, uma chuva como nunca,
pois caíram gotas diferentes.

A Terra girou em torno de seu eixo,
mas num espaço já abandonado para sempre.

Isso durou umas boas 24 horas.
1.440 minutos de chances.
86.400 segundos para intuições.

O savoir-vivre cósmico,
embora se cale sobre nós,
ainda assim nos exige algo:
alguma atenção, umas frases de Pascal
e uma participação perplexa nesse jogo
de regras desconhecidas.

AS TRÊS PALAVRAS MAIS ESTRANHAS

Quando eu falo a palavra Futuro, 
a primeira sílaba já pertence ao passado. 
Quando eu falo a palavra Silêncio, 
o destruo. 
Quando eu falo a palavra Nada, 
crio algo que nenhum não-ser comporta.

Tradução de Regina Przybycien


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