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O PASSADO RESSURGE

Em novo romance, Luiz Ruffato revisita Cataguases pelos olhos de um personagem que, de volta à cidade mineira, tem de enfrentar os fantasmas deixados para trás


postado em 10/05/2019 05:08

Luiz Ruffato se recusa a escrever livros que tenham escritores como protagonistas:
Luiz Ruffato se recusa a escrever livros que tenham escritores como protagonistas: "Meus livros não são sobre mim, são sobre os outros, cidadãos comuns" (foto: ADRIANA VICHI/DIVULGAÇÃO)


“E sempre no meu sempre a mesma ausência”. Uma citação do poema Enterrado vivo, de Carlos Drummond de Andrade, é a porta de entrada para O verão tardio, sexto romance de Luiz Ruffato, que será lançado na próxima terça-feira em Belo Horizonte. Por meio do fluxo de consciência e descrições metódicas, o mineiro narra seis dias na vida do cinquentão Oséias, nascido em Cataguases e morador de São Paulo (como o escritor). O reencontro do personagem com a cidade é marcado por lembranças fragmentadas, acertos de contas com pessoas próximas (familiares, amigos) e constatações desoladas. Como a Itabira de Drummond, a Cataguases de Oséias é apenas um retrato na parede – e bem dolorido.

“Para mim, Cataguases não é uma espécie de quadrilátero ferrífero onde aporto apenas para retirar matéria-prima. Eu volto à cidade por razões afetivas: para rever minha irmã e a família dela, uns pouquíssimos amigos e alguns conhecidos”, conta Ruffato, em entrevista ao Estado de Minas. Se o ponto de partida não é muito original, a força narrativa do escritor se impõe a cada passagem de Oséias, que percorre a sua cidade “como um espectro”. Sob céu de poucas nuvens e um calor que “aferventa as pernas inchadas, exaustas”, o personagem revisita endereços, lojas, cheiros, praças, pessoas. Entre pedaços de bife frito e colheradas em sopas de feijão, remói “erros que levam a outros erros”, esbarra em caminhos sem retorno. Não sem traumas: em determinado momento, é confrontado e chamado de “espírito das sombras, que se alimenta
do sofrimento alheio”.

Em um dos momentos da tensa incursão, Oséias questiona se deveria ter permanecido na cidade; conclui que, devido a uma tragédia revelada apenas nas últimas páginas, não poderia ter ficado. Mas prossegue em desassossego. “Os lugares, as árvores, as casas são os mesmos da minha infância — mas não os rostos, não os carros, não as motocicletas”, constata Oséias, antes de se definir: “Sou um fantasma assustado esbarrando em corpos que se movem alvoroçados pelos territórios do passado.”

O reencontro de Oséias com Marilda, antiga namorada, dona de dois cãezinhos lhasa batizados de Brad Pitt e Angelina Jolie (“a duplinha mais fofa do mundo”, diz a dona) durante jantar ao som da trilha de Estúpido cupido e The Cranberries é uma das passagens marcantes de O verão tardio. E evidencia uma das questões do romance: ainda dá tempo de reescrever a própria história? “A gente não consegue mudar o passado, mas pode determinar o futuro”, garante Marilda. “O futuro é uma projeção do passado. Somos o que fomos”, rebate Oséias.

A seguir, o autor de Eles eram muitos cavalos, que participa na próxima terça do projeto Sempre um papo, responde às perguntas formuladas a partir de passagens do novo – e ótimo – romance.

Por que Drummond em uma das epígrafes?

Sou um leitor bastante aplicado de poesia. Todos os meus livros são anunciados por uma epígrafe poética. De alguma maneira, busco, na epígrafe, algo que sintetize o teor do que o leitor encontrará na minha prosa de ficção. Meus livros já tiveram epígrafes da Cecília Meireles (Eles eram muitos cavalos), Jorge de Lima (Inferno provisório), Miguel Torga (Estive em Lisboa e lembrei de você), Iacyr Anderson Freitas (Flores artificiais) e Murilo Mendes (A cidade dorme). No caso de O verão tardio, o verso “E sempre no meu sempre a mesma ausência” funciona como uma espécie de mote do romance. A ausência talvez seja o sentimento mais disseminado ao longo de todo o livro.

Para a sua escrita, a literatura é “enosar os fios que atam o começo e o fim” das lembranças?

Creio que sim. Agora, que já são seis romances e um livro de contos, talvez eu possa fazer um balanço e encontrar, como ponto de convergência entre todos eles, um caráter de rememoração. Mas não como nostalgia, porque não há nostalgia na narrativa, embora possa haver, eventualmente, nos personagens, mas como prestação de contas com o passado. No Brasil, temos uma dificuldade muito grande de lidar com o passado. Aliás, não lidamos. Frases corriqueiras, como “Vamos esquecer isso”, “Bola pra frente”, “Deixa isso pra lá”, demonstram nossa incapacidade de refletir sobre o passado. E quem não discute o passado não vive o presente e não consegue projetar o futuro. Por isso, escrevi certa vez que somos uma sociedade neurótica: tendemos a dar as respostas idênticas a problemas diferentes.

Algumas das passagens mais marcantes do romance acontecem numa rodoviária e dentro de ônibus. Por que esse ambiente o inspira?

Curiosa essa observação! Rodoviárias são lugares de passagem. Quem está ali, o está apenas provisoriamente. Ou está chegando, ou está partindo – ou está então acompanhando alguém que está indo ou vindo. O Brasil, do meu ponto de vista, é assim: não nos enraizamos o suficiente, temos sempre a sensação de que estamos aqui provisoriamente, como se num acampamento. A qualquer momento, podemos ter de partir ou podemos querer partir. Tem sido assim, ao longo da nossa história. Essa sensação de não pertencimento, de desterritorialização, de habitarmos um não lugar, é uma característica nossa, dos brasileiros, e talvez isso explique muito da nossa incapacidade de transformar o país Brasil na nação Brasil.

No romance, há menções a “rostos envelhecidos”, “cômodos vagos”, “silêncios incômodos”, “paredes em destroços”. A exposição das marcas do tempo é uma das características de O verão tardio?

Caetano Veloso tem um verso – entre inúmeros outros maravilhosos – que diz: “Aqui neste país, o que é construção já é ruína”. E O verão tardio constata isso. Nem bem começamos a construir uma democracia e já, neuroticamente, a golpeamos. O resultado é o que vemos: a ausência do Estado em seu papel de garantidor da essência do viver comunitário. Daí a violência urbana, a sujeira das ruas, o cansaço das pessoas, a ignorância, a mediocridade... O tempo, aqui no Brasil, assenhora-se de nós, com mais brutalidade. Tudo se desmorona rapidamente – incluindo a paisagem e as pessoas que a habitam.

“Com o tempo, essa espécie de tédio me transformou em personagem de mim mesmo”. Os escritores também correm esse risco?

Não posso falar por meus colegas. Mas, no meu caso, posso assegurar que o leitor dos meus livros não corre o risco de ler narrativas autobiográficas disfarçadas de ficção. Nenhum livro meu tem escritores como protagonistas – e nunca terão. Meus livros não são sobre mim, são sobre os outros. A minha vida pessoal é absolutamente desinteressante. Interesso-me vivamente apenas pelo outro – e o meu outro é o cidadão comum, que sobrevive nesta selva chamada Brasil.

“O futuro é uma projeção do passado”. Essa afirmação de um dos personagens se adequa ao Brasil em 2019?

Sim, como uma luva. A história é um processo, ou seja, só vamos de um ponto A para um C se passarmos, antes, pelo ponto B. O que fomos ontem é que vai determinar ou definir o que seremos amanhã. Por exemplo: a nossa história política é uma brutal sucessão de ditaduras com pequenos interregnos de democracia. Não nos educamos para a cidadania, não temos tradição de convivência com a diversidade. O resultado é esse que estamos vendo: elegemos (pelo voto direto!) um governo fascista, antidemocrático, totalitário, reacionário (e, veja bem, cada um desses adjetivos refere-se a um ponto de inflexão diferente).

“Deu tudo errado, Galego... Deu tudo errado. Em que momento as coisas começaram a desandar?” Você tem resposta para essa pergunta?

No caso específico desse trecho, trata-se de uma indagação da história pessoal do protagonista. E isso está colocado ao longo do livro – deixo, então, para o leitor responder. Se, no entanto, lermos a narrativa também como uma alegoria (eu gostaria que ela pudesse ser também assim apreendida), podemos tornar essa indagação como  pergunta coletiva: quando foi que começamos a dar errado? Talvez, uma das respostas possíveis, seja: ainda no achamento do Brasil, pois começamos a nossa história coletiva com o genocídio indígena e a continuamos com a escravidão de africanos negros... Uma história que começa assim, e que não encontra pausa para refletir sobre isso, não acaba bem.

“Quanto tempo não leio um livro. O último qual foi mesmo tanto tempo já”, constata o protagonista do seu romance. Você vem observando a diminuição do hábito de leitura? Há como revertê-la?

Certamente. O Brasil não é um país de leitores. O hábito da leitura por aqui sempre foi discriminado, a nossa elite sempre teve um profundo desprezo pela cultura letrada. Mas nunca havíamos tido um governo que não só tem desprezo pela atividade intelectual, como se orgulha disso! Se sempre fomos um país com deficiências culturais graves, hoje nos tornamos o país que exalta a mediocridade, que tornou a deficiência cultural um valor...

Um dos amigos do protagonista Oséias, o de “olhos manhosos”, tornou-se prefeito da cidade. Consegue estabelecer alguma relação, ainda que de oposição, entre a política e a literatura?


A grande beleza do discurso literário é que ele engloba todos os outros discursos possíveis: o sociológico, o psicanalítico, o histórico, o filosófico, o antropológico, o político, etc – mas não se reduz a nenhum deles. O discurso literário é e sempre será de oposição. Sempre será de apontar os defeitos da sociedade para que ela própria se corrija.

O VERÃO TARDIO
. De Luiz Ruffato
. Companhia das Letras
. 232 páginas
. R$ 49,90.



Sempre um papo com Luiz Ruffato
Dia 14, terça-feira, às 19h30, no auditório da Cemig. Rua Alvarenga Peixoto, 1.200, Santo Agostinho, em Belo Horizonte. Entrada franca.

TRECHO DO LIVRO


“(…) Sentado à janela, nesta poltrona de fibra de vidro, dura e desconfortável, que machuca as costas, o corpo suado sacudido, como toda a lataria do ônibus que segue acelerado pelos paralelepípedos irregulares da Reta da Saudade, dissolvendo-se no lusco-fusco, vejo as luzes dos postes acesas, acesos os faróis dos carros que trafegam em sentido contrário.

Passa o prédio do Tiro de Guerra, O preço da liberdade é a eterna vigilância. Nenhuma lembrança agradável. O subtenente Cortes e o sargento Martinez me tratavam como O-Irmão-do-Moretto, soldado perfeito caso houvesse uma guerra, obediente, responsável, destemido, honrado, combativo, solidário, exemplo para todas as turmas que vieram depois — não eu, claro, mas o João Lúcio. Eu sofria com a brutalidade dos exercícios físicos, a estupidez das marchas, a inutilidade dos plantões, a delação dos recrutas, a subserviência dos monitores, o sadismo do sargento Martinez, os calos provocados pelo coturno, as queimaduras de sol, a frivolidade dos colegas.

Silhuetas de enormes galpões abandonados surgem contra a sombra da noite que se estende mansa por sobre o Distrito Industrial. São antigas fábricas, móveis, tecidos, metalurgia, confecções, que faliram, e agora o mato enfezado se adona dos pátios, a água da chuva escarva as paredes, o vento arranca os tetos. Implacável, o tempo corrói, secretamente, o presente que passa, como traça num livro. Quantas vezes, com minha Caloi verde, rompi por essa parte da cidade, então poeirenta estrada de chão batido, de um lado uma árvore ou outra, raquítica, envergonhada, e, do outro, o brejo das margens do rio Pomba, que ali escoa com tanta preguiça que parece uma flecha em repouso. O silêncio. A solidão (…).”


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