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Agnès Varda dos 9 aos 90


postado em 29/03/2019 05:08

Agnès Varda com um dos seus autorretratos durante exposição em Paris, em 2012(foto: PASCAL GUYOT/afp)
Agnès Varda com um dos seus autorretratos durante exposição em Paris, em 2012 (foto: PASCAL GUYOT/afp)

Como uma das últimas diretoras vivas da nouvelle vague, a despedida fílmica de Agnès Varda chama a atenção de maneira especial. Sobretudo por ser uma das poucas vozes femininas a embaraçar o coro de testosterona dos notáveis cineastas da política dos autores, Varda ainda adiciona sutilezas onde sobram ambições grandiloquentes. Misto de uma última masterclass com incríveis lampejos de autorretratos, Agnès Varda par Agnès Varda (2019) pode tornar-se previsível na sua primeira aposta, e brilhante na sua segunda característica. Sentada numa cadeira de diretor em frente a plateias teatrais, ela comenta cronologicamente a maioria das obras que compõem a sua vasta filmografia. Seus comentários, todavia, são embalados por um raro bom humor.

Mais velha, ela chega a dar pequenas risadas sobre seus fracassos comerciais, realiza boas tiradas, piadas comoventes nos momentos que antes foram rondados pela incompreensão e pela solidão inerentes à obra de todo artista disposto à inovação. As fagulhas de autorretrato surgem com uma boa síntese desses aprendizados, pequenas escolhas, repercussões de um filme noutro, como se Varda fiasse a teia da sua vida-obra diante da morte de quem a acompanhou, como Jacques Demy, de atores que se somaram, novas parcerias, tantos trajetos deliciosos e perigosos que ela atravessou com maestria.

Varda escreve com a fala, serena, leve, precisa e cheia de preciosíssimos gracejos, e faz deles um dos melhores gestos autorais do cinema, e da nouvelle vague, que, não por acaso, frisou a escritura fílmica como uma das suas assinaturas. Na esteira dessa caligrafia oral, Varda é atenta aos pormenores. Nas melhores sequências dos seus autorretratos ao longo do filme, Varda realça suas escolhas, suas decisões, seus recortes, o apuro de um ponto de vista, nas dobras da sua passagem de uma retratista a uma diretora.

Em Cleo das 5 às 7 (1962), por exemplo, Varda narra como chegou à decisão da compressão temporal da sua personagem. Mas faz algo mais, comenta um ótimo plano-sequência da personagem andando pela rua, onde ela queria captar os momentos de leveza, entre relâmpagos documentais, de todos que estão na rua, à volta de Cleo, e da câmera. Agnès Varda par Agnès Varda é cheio desses instantes de revelação, que permitem uma outra fresta para olhar a cinematografia dessa diretora.

A obra de Varda esmera-se em aguçar uma camada espessa das escolhas no tempo. São escolhas éticas, delicadas, permeadas por riscos, mas que se abrem também para o inesperado. Ao contrário do que ocorre com a tradição masculina das concepções francesas sobre o tempo, que são por demais pesadas, e pairam em debates ontológicos e mais nostálgicos, Varda enfatiza mais o kairos, o tempo de ação certeira, humana, sensível, do que o cronos, que seria a vertente física do tempo.

Num filme como Jane B par Agnès V (1988), Varda realiza um misto de retrato seu sobre Jane Birkin com um autorretrato da famosa atriz. A maior parte da conversa entre a cineasta e a atriz versa sobre a procura de uma imagem, um fulgor, um conjunto de cores que passam a ser a síntese sensível de um momento da vida. O tempo ali revela-se como uma construção, um design, um momento em que a vida deixa de ser apenas contemplativa e interpela todos os envolvidos para uma ação, uma estética da existência.

Após passar pelos filmes dos anos 1980 e 1990, Varda chega bem ao novo milênio. Em Les Glaneurs et la Glaneuse (2000), Varda se encontra mais à vontade com a facilidade da câmera digital e passa a catar imagens (suas) pelo mundo como seus personagens catam comida, objetos, entulhos. Esse gesto de abaixar-se, ver e ouvir o que está fora de si torna-se num dos seus mais notáveis traços. Ela faz das suas aproximações aos “objetos”, aos sujeitos, uma forma de se autorretratar.

O caso da batata em forma de coração que ela coleta no filme de 2000 é revelador. Dali, Varda parte para uma das suas mais famosas instalações artísticas, a Patatutopia, quando o seu cinema ganha uma forte projeção espacial, joga entre fotos paradas, imagens e movimentos, e apontou para uma vibrante renovação, num desdobramento bem inusitado.

Em Visages, Villages (2018), num dos seus filmes mais recentes, Varda chama o fotógrafo francês JR para ser o seu parceiro. Eles se juntam e decidem viajar por pequenas cidades, onde encontram pessoas, ouvem suas estórias e fazem uma foto ampla, que, aos poucos, ganha feições de uma delicada intervenção urbana. Entre os rostos, os bairros, as cidades e as belas viagens pelo interior da França, a dupla é exímia em construir conjuntamente uma imagem que gera reconhecimento, e um instante afetivo entre essas pequenas, remotas vilas e seus habitantes.


NOTÁVEL  LEVEZA


Mais uma vez, é com uma notável leveza que Varda faz do tempo do encontro uma hora de escuta, do instante do flash uma forma de construir outras imagens de si, para si, para o mundo e a cidade. Sutilmente, seus filmes sugerem novas moradas éticas diante de uma imagem que pode mais resguardar o outro, e a si mesmo, do que extirpá-lo.

Filmes de despedida podem ser sempre pesarosos e amargos. Num antigo filme póstumo como Visita ou memórias e confissões (1982), Manoel de Oliveira compartilhava com o espectador a venda da casa onde, até aquele momento, morara. Fazia do filme uma forma de ele mesmo “sumir-se”. Nessa toada, filmes últimos podem ter o doloroso fardo de uma máscara mortuária. Não foi o que Varda nos sussurrou. Ao assumir a docilidade de uma conversa informal, ela se aproxima, como se proseasse ao pé do ouvido do espectador, seus últimos vestígios. Sumir, ora parece ela nos dizer, faz parte, é inevitável e também permite um pulsar com leveza.

Nessa toada, ela opta por acenar como uma notável cena que entraria em Visages, Villages mas ficou de fora da edição final – e lança um gracioso sorriso ao modo réquiem. É com um sopro de vento que ela se despede – e, vale dizer, o filme transforma-se numa boa brisa para pronunciar o vocábulo fim com a tranquila serenidade que a sua obra merece.

*

Pablo Gonçalo é professor adjunto do curso de audiovisual e publicidade da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) e autor do livro O cinema como refúgio da escrita: roteiro e paisagens em Peter Handke e Wim Wenders (Annablume). A versão original deste artigo foi publicada na Revista Cinética e ampliada para o Pensar


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