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Diante das armadilhas do tempo

Mais do que uma trama policial com minuciosa reconstituição histórica, Leonardo Padura Fuentes oferece em seu novo livro uma reflexão sobre as desilusões e as angústias dos que se aproximam da velhice: "É um romance de sabor agônico", define o autor em entrevista exclusiva


postado em 08/02/2019 05:06

Contratado por um amigo para descobrir o paradeiro de uma estátua roubada, o ex-policial Mario Conde mergulha inadvertidamente em uma história que atravessa séculos e continentes até chegar à Havana em 2014. A transparência do tempo poderia ser simplesmente uma nova trama policial protagonizada pelo personagem mais conhecido de Leonardo Padura, autor do best -seller O homem que amava os cachorros (70 mil exemplares vendidos apenas no Brasil). Nos romances do cubano, contudo, sempre há muito mais do que a apresentação de um crime e a instauração de um mistério a ser decifrado nas últimas páginas. A investigação preferida de Padura é outra: como sobreviver ao avanço inexorável e às armadilhas do tempo?. Às vésperas de completar 60 anos, o desiludido Conde parece cada vez mais longe da resposta.

“Este romance tem sabor agônico, de algo que finda, de um tempo que não se recupera, que se repete e que sempre acaba nos esmagando”, explica o autor de 63 anos, em entrevista ao Estado de Minas. “Quando ficamos velhos, ficamos apenas mais velhos – nós nos cansamos mais, não enxergamos bem, nos esquecemos das coisas e nos tornamos nostálgicos e pensamos que, quando éramos jovens, as coisas eram melhores. Porém, se, além disso, nos sentimos derrotados pela história, como ocorre com o Conde e com muitos de sua geração, é ainda pior”, acrescenta Padura, por e-mail.

O sentimento de derrota é explicitado, em A transparência do tempo, pelas descrições desencantadas de Havana (“espelho de um país cujas colunas também se rachavam”) e nas críticas dos amigos de Conde (“Neste país de merda, o medo é um estado permanente”, desabafa um deles) aos efeitos das restrições impostas pelo regime ditatorial cubano. “O essencial nesse romance é constatar como, por meio da vida da cidade, pode-se observar a dilatação de um tecido social que foi homogêneo em uma época e, atualmente, está dilatado”, acredita o autor.

Tudo isso, claro, é narrado com a destreza e desenvoltura características do escritor, vencedor do prêmio Princesa das Astúrias de 2015: longos parágrafos, elipses elegantes, descrições inspiradas e uma impressionante tour de force na reconstituição do cotidiano de uma aldeia catalã na Idade Média. E sem descuidar do que parece ser um dos temas caros ao autor: traçar um retrato das angústias dos que se aproximam da velhice e se sentem “à beira dos mais diversos precipícios”. “Ainda lhes causava amargura constatar que tinham extraviado a maioria dos sonhos que em outros tempos lhes havia sido permitido forjar e as ilusões que quase tinham sido obrigados a modelar, sempre com os olhos voltados para um futuro que se prometia fabuloso – ou seria luminoso: sonhos que lhes foram sendo subtraídos um a um, ou aos punhados”, descreve. Ao final da leitura de mais um grande livro, fica evidente que, para Mario Conde, viver é lembrar. E, para Leonardo Padura, narrar é revolver. Confira, a seguir, a íntegra da entrevista com o autor.

A transparência do tempo alia aspectos e dinâmicas do romance noir – a busca por uma estatueta valiosa (como em O falcão maltês, de Dashiell Hammett), mulheres sedutoras e dissimuladas, uma perseguição no final, até mesmo coronhadas na cabeça do investigador, como ocorre nos romances de Raymond Chandler (citado em seu livro) – com a minuciosa reconstituição histórica, na narrativa da origem da imagem da Virgem de Regla. Como buscou – e encontrou– a confluência de gêneros?
Eu poderia escrever um romance policial tradicional, com um argumento que se passa na Cuba contemporânea e uma investigação com um objeto perdido, pesquisa e investigação, mas... eu também poderia complicar minha vida dando ao romance outra dimensão cultural, conceitual e filosófica e por isso busco num passado histórico algo como uma projeção de um futuro atual, ou seja, nosso presente, para dar maior densidade narrativa e conceitual a um livro que é, ao mesmo tempo, um romance policial, um romance histórico, um romance de tese filosófica sobre a eterna relação entre o homem e a história. E como a história, às vezes, embrenha-se na vida de um indivíduo e a transforma. Uma revolução, por exemplo, na vida de Conde e seus contemporâneos; uma guerra, no caso de outros personagens do romance.
 
“A vida é mais ampla do que a história.” A frase, citada por um dos personagens, aplica-se à sua motivação para escrever livros como O homem que amava os cachorros e A transparência do tempo? Como os fatos históricos permeiam sua ficção? Onde termina a pesquisa e começa a invenção?
Sei, no início, onde começam a investigação histórica e a criação do romance, mas, em determinado momento, me esqueço desses limites e escrevo.... um romance ou um livro de história. Mas certamente cada acontecimento histórico em cada um dos meus livros se sustenta em uma pesquisa exaustiva e no respeito à essência dos processos históricos aos quais me refiro, incluindo o atual processo histórico cubano.
 
“Você não progride, Conde! Você está estacionado!”, reclama um de seus personagens. Como você vê a progressão de seu principal personagem ao longo das décadas? O tempo faz bem ou mal para Mario Conde?
O tempo não melhora muitas coisas. Entre elas, o corpo e a mente dos indivíduos. É mentira que, quanto mais velhos, mais sábios somos. Quando ficamos velhos, ficamos apenas mais velhos – nós nos cansamos mais, não enxergamos bem, nos esquecemos das coisas e nos tornamos nostálgicos e pensamos que, quando éramos jovens, as coisas eram melhores. Porém, se, além disso, nos sentimos derrotados pela história, como ocorre com o Conde e com muitos de sua geração, é ainda pior. Por isso este romance tem esse sabor agônico, de algo que finda, de um tempo que não se recupera, que se repete e que sempre acaba nos esmagando. Além disso, Conde é pré-informático, já que vive no século 21 como se estivesse no século 20. Porque Conde é, se isso for possível, um progressista conservador, em tudo o que diz respeito à sua vida.

 “O grande e pior desastre: a dispersão, a solidão, as perdas acumuladas e as acumuláveis, os sonhos encalhados, a dor do presente e o temor do futuro.” As frustrações do ex-policial são inerentes à sua geração? Já consegue vislumbrar um romance no qual Conde e seus amigos enfrentarão a “solidão final”?
Não, ainda não pensei em acabar com Conde e seus amigos. Ainda temos muitas coisas a dizer, se o tempo da vida nos permitir. Embora eu esteja escrevendo agora um romance em que ele não aparece, certamente vou resgatá-lo no futuro. Inclusive já sei como a história vai começar. Conde se exercita, não fuma, não bebe rum, alimenta-se bem e acorda cedo, quando ouve o galo e os passarinhos. Conde começa esse romance no melhor dos mundos possíveis. Não sei o que vai acontecer depois. Mas, se A transparência é agônico, imagina como serão as futuras aparições do personagem, de seus amigos, seu mundo...
 
Mario Conde vive em um país onde os seus cidadãos têm de “se virar por conta própria para não cair no buraco”. Essa também é a realidade de boa parte dos escritores de ficção no século 21?

Escrever sempre foi difícil. Ter leitores, ainda mais. Somente consegue isso o 1% dos que escrevem e publicam, que são o 1% dos que escrevem, porque 99% não publicam. Acabei de inventar essas cifras, mas elas são possíveis. E será cada vez pior. Estamos entrando em um mundo no qual a superficialidade, o fácil e inclusive o vulgar é o que têm mais aceitação. As pessoas querem diversão e espetáculo, não preocupações e reflexões. Por isso acho que tenho muita sorte de ainda ter tantos leitores num mundo em que as redes sociais são o espaço ao qual as pessoas dedicam seu tempo. No caso específico de Cuba, a luta pela subsistência mais ou menos digna foi uma guerra na qual vivemos por muitos anos, sempre com o risco de cair no precipício.
 
O que guardou da experiência de adaptar seus livros (para a televisão)? O que é mais árduo na conversão de palavras em imagens? Pretende repetir a experiência?
O mais difícil nesse trabalho foi dar esse salto mortal entre a literatura e o cinema, que sempre é gigante, porque são dois meios artísticos diferentes. E, sim, fala-se em possíveis novas temporadas – produzidas pela mesma empresa espanhola. Mas não creio que eu vá repetir a experiência de escrever os roteiros. Quero dedicar meu tempo à literatura, onde tenho todas as liberdades, e não ao trabalho para cinema, em que você faz apenas um serviço para uns produtores e um diretor, que têm sempre a última palavra, embora o trabalho do roteiro seja o que define desde o início a qualidade do filme.
 
Mario Conde cita J.D. Salinger ao revelar a frustração por não conseguir escrever “histórias esquálidas e comoventes”. Que livros “esquálidos e comoventes” gostaria de ter escrito? Algum dia leremos os livros escritos, ou iniciados, por Conde?

Creio que sim, que lerão mais Conde, porque já o leram. Em Máscaras há um relato escrito por ele e também há uma parte escrita por ele em A transparência do tempo. Sobre os livros que eu gostaria de ter escrito, são tantos que não vale a pena tentar fazer uma lista.
 
No último capítulo dedicado à história de Antoni Barral, estamos não mais no passado distante, mas em 2014. O narrador discorre sobre as etapas de criação de um personagem para moldar um “ser histórico e atemporal”. O capítulo pode ser lido como as primeiras páginas escritas por Mario Conde antes de seu aniversário, mas também como uma digressão sua sobre o ato de escrever ficção?
As duas coisas são possíveis, porque esse é o sentido desse fragmento do livro. Conde escreveu e refletiu sobre o valor e o poder da literatura. E o fez a partir de um ponto de vista que casualmente, e apenas casualmente, se parece muito com o meu.

Há pelo menos duas passagens em que a investigação de Mario Conde poderia avançar mais rapidamente se ele pudesse consultar a internet sem dificuldades. A internet e as redes sociais são obstáculos para tramas de mistério? Como integrá-las à narrativa?
Não sei muito a respeito desse assunto. Assim como Conde, sou pré- informático. Não tenho site, nem perfil no Facebook, no Twitter... Procuro na internet somente o tipo de informação que não tenho nos livros que consulto. Acho que a internet é um mundo muito democrático, mas, ao mesmo tempo, muito anárquico, onde qualquer um diz qualquer coisa e muitas vezes a informação que você encontra é tão superficial que até dói.
 
Em sua descrição, o essencial de Havana “funcionava no presente como o espelho de um país cujas colunas também se rachavam, vencidas pelo peso do tempo, pela apatia e pelo cansaço histórico”. O que mudou na Havana descrita em seus primeiros livros para a que aparece em A transparência do tempo?
Muita coisa mudou... e não houve muita mudança. O essencial nesse romance é constatar como, por meio da vida da cidade, pode-se observar a dilatação de um tecido social que foi homogêneo em uma época e, atualmente, está dilatado. Tanto é assim que Conde percorre uma cidade que pode ir desde lugares com lampejos de riqueza a locais com uma manifesta pobreza material e, pior, espiritual.
 
“Quase nunca pudemos escolher, tiraram o nosso direito de errar”, reclama um de seus personagens, comentando sobre Cuba. Você endossa essa crítica ao regime cubano? Gostaria de ter, como pede o mesmo personagem, mais possibilidades de experimentar?
Tenho, hoje, possibilidades de experimentar – na literatura, na minha vida profissional e civil. Mas, durante anos, tivemos que ser pessoas sempre obedientes, porque não havia espaço para nenhuma outra opção. O risco era sofrer consequências como a marginalização. Atualmente, pago apenas o preço de ser mais ou menos invisível em Cuba – não apareço na TV, nos jornais, etc. Mas trabalho e experimento.
 
“Quando o ódio se encapsula, acaba por arrebentar; quando os poderosos conseguem utilizar os fanatismos políticos, religiosos, nacionalistas, em algum momento, se solta a centelha capaz de provocar a explosão.” O que acha da onda mundial de nacionalismo e como acredita que se estabelece a conexão com o ódio? É possível reverter a onda?
Não sou profeta e não sei se será possível reverter o que está acontecendo. Mas a cultura do ódio e o nacionalismo continuam crescendo no mundo e para ver isso basta olhar para os Estados Unidos. Ou, lamentavelmente, ouvir declarações do novo presidente brasileiro. No mundo global, o universal é desprezado. Ignora-se a história da humanidade. Isso é terrível.
 
Para os brasileiros que gritam “Vai pra Cuba!”, o que você responderia?

Que isso aqui não é o paraíso que imaginam. Mas eu diria aos que gritam que não estão mandando os outros para o inferno. Apenas para o purgatório, certo?
 
Do que o Brasil precisa? Mais médicos cubanos, mais livros de escritores cubanos ou mais leitores brasileiros? E do que Cuba precisa?
Como não vivo no Brasil, não posso avaliar do que o país precisa. Mais médicos (de qualquer lugar, mas, principalmente brasileiros, certamente precisa) e menos violência. Cuba precisa de uma política econômica mais aberta para que o governo não cometa novos erros com as mesmas políticas com as quais já fracassou.
 
A fé move personagens em A transparência do tempo. E onde está a fé do escritor?
Em que, talvez, meu próximo livro seja melhor do que os que já escrevi. Em que tenha cada dia mais leitores apaixonados pelos meus livros e meus personagens, especialmente Mario Conde. E em que o que exista lá em cima me dê forças para seguir, seguir e resistir, como escritor e como cidadão.

Tradução de Silvana Arantes


Trechos

A transparência do tempo

** *

Conde acendeu um cigarro e se dedicou a observar de novo o panorama degradado que o cercava. Pensou que daquela miséria compactada pelos anos só podia nascer mais miséria, sobretudo a pior delas: a humana. Os rostos das pessoas, das quais recebia olhares carregados de medo, eram os espelhos de suas almas, e suas almas o fruto do meio: a precariedade sem atenuantes, multiplicada nos últimos vinte anos por uma crise que frustrara o possível sonho de muitos de alcançar melhorias na vida.

** *

Conde havia muitos anos enxergava sua existência como um enorme equívoco contra o qual não pudera nem soubera lutar, pois os afãs da sobrevivência, que se fizeram mais numerosos desde os tempos devastadores da crise, tinham roubado o melhor de sua vontade e de seu talento, poucas vezes provado, para realizar o que mais teria desejado: escrever histórias esquálidas e comoventes.

De muita maneira, os três – Conde, Carlos e Candito – se viam como exemplares perfeitos de sua geração que, em vez de optar pelo êxodo, como muitos outros, tinham decidido permanecer aferrados às origens: a fornada dos que acreditaram, lutaram e depois não obtiveram muitas recompensas pelo sacrifício ao qual tinham sido sistematicamente convocados e, ocasionalmente, impelidos. Foram os que não tiveram forças, possibilidades nem desejo de ir embora, enquanto muitas colunas se desfaziam ao seu redor. E agora viviam como podiam, queixando-se ou sem se queixar demais, conforme tivessem passado o dia, embora sempre à beira da penúria econômica e entrevendo no horizonte um futuro cada vez mais estreito e incerto, ou na realidade mais certo, no qual já lhes seria impossível reciclar-se.


• A transparência do tempo

De Leonardo Padura
Boitempo
373 páginas
R$ 57
Tradução de Monica Stahel


Nas telas

Em 2016, Mario Conde saiu das páginas e ganhou as telas, via streaming. A série Quatro estações em Havana, estrelada por Jorge Perugorría (Morango e chocolate) e basesada em quatro livros lançados no Brasil pela Boitempo, está disponível na Netflix. “A série é da produtora espanhola Tornasol Films”, lembra Padura. “A Netflix foi apenas a plataforma (de difusão). E acho que, até agora, não pagou pela exibição a mim, como autor dos livros nos quais a série se baseia, e a Lúcia (Lopez Coll), minha esposa, pelos roteiros”, revela Padura, que considera “um salto mortal” o processo de adaptação da literatura para a linguagem audiovisual.


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