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Para rir da própria morte

Primeira grande antologia do chileno Nicanor Parra (1914-2018) publicada no Brasil, Só para maiores de cem anos reúne 75 poemas do criador da antipoesia e mostra que sua obra permanece atualíssima


postado em 11/01/2019 05:06



“o poeta é um homem qualquer”, proclama Nicanor Parra em seu Manifesto, publicado em 1963. O chileno, considerado um dos mais importantes nomes da poesia de língua espanhola, incrivelmente nunca recebeu uma edição que faça jus à grandeza de sua obra. Agora, por iniciativa de Joana Barossi, em parceria com Cide Piquet, a Editora 34 lança Só para maiores de cem anos – Antologia (anti)poética.

Desde que publicou seus Poemas e antipoemas, em 1954, traçou um caminho único na literatura latino-americana, criando a antipoesia, uma abordagem literária modernista que rompe com os cânones tradicionais. Em busca da aproximação da poesia do cotidiano, do homem comum, de temas simples e longe da postura grandiloquente da lírica clássica, o autor flerta com o surrealismo, cria uma infinidade de vozes narrativas e recorre sempre ao humor, às vezes sarcástico, para destituir a sisudez da poesia. Para muitos, a poética de Parra supera a de Pablo Neruda (1904-1973) e, para a lírica hispano-americana, existe um antes e depois do irmão mais velho da cantora e compositora Violeta Parra (1917-1967).

A antologia se concentra nas obras em que Parra desenvolve a antipoesia, com 75 poemas, priorizando a produção de 1954 e 1972, com a versão original em espanhol ao final do volume. Joana conta que o processo de tradução durou quatro anos e teve início quando o poeta ainda estava vivo – Parra morreu em 2018, aos 103 anos. “Tive que começar pela lição de casa ortodoxa de tradutora, ler toda a sua obra, estudos sobre o poeta, além de traduções de seus poemas para o inglês e o francês. E, por outro lado, cumpri também as tarefas menos ortodoxas, responsáveis por uma imersão quase tátil na obra de Parra que foram os grupos de estudo, leituras derivantes, conversas e as viagens”, diz.

Por duas vezes, a tradutora foi até Las Cruces, à beira do Pacífico, onde vivia o poeta. Na primeira tentativa de encontro, recuou. Na segunda, acompanhada do escritor Alejandro Zambra, pôde abraçar o mestre. Desde então, o projeto da antologia foi se materializando, mas houve vários percalços – a morte da agente Carmen Barcells dificultou a compra dos direitos, a gravidez e o nascimento do filho. Foi quando o amigo e tradutor Cide Piquet entrou no projeto. “Comecei a palpitar na seleção, acrescentamos poemas (a princípio eram 70, e a gente acrescentou mais cinco para fechar 75), além de poemas de mais dois livros, chegando até os anos 1980. Mas o foco era a antipoesia”, diz o tradutor. Nesta entrevista ao Pensar, os dois abordam o processo de tradução e alguns dos temas da obra de Parra.

TRADUZIR/TRAIR

JOANA BAROSSI – Esse tema é interminável. Uma constante busca, boicote e medo que costuram o processo de tradução. Que não acaba nunca se a gente não colocar um ponto final e, ao deitar a cabeça no travesseiro, se apaziguar com o fato de que a tradução é, e sempre será, uma versão, uma das possibilidades nas infinitas alternativas que as línguas não apresentam. Por esse motivo, enfatizei no posfácio a autorização, digamos, generosa e sarcástica de Parra ao comentar que a tradução é uma “expropriação revolucionária”, como quem diz: “Se vira!”. É, de fato, um atrevimento pôr as mãos na poesia dos outros – e uma oportunidade única de pesquisa e imersão. Mas, francamente, nesse caso, mais do que atrevimento ou coragem, era uma urgência. Parra precisava de uma publicação no Brasil e pronto.

CIDE PIQUET – Tradução é sempre complicado. Poesia ainda mais, porque a forma tem mais importância do que na prosa. A questão de ritmo, métrica e sonoridade é muito mais calculada e delicada. Honestamente, não acho que o Parra seja muito difícil, digamos que é uma dificuldade média em termos de poesia. Mas, na verdade, traduzir poesia do espanhol é muito difícil, justamente por ser muito próximo. As preposições, que, no português, a gente contrai, em espanhol são mais longas, o que já é um problema, especialmente nos poemas com métrica. Quando é um poeta rebuscado, você faz um floreio e resolve o problema da métrica. Mas, no caso do Parra, como é muito coloquial, se você faz isso resolve o problema da métrica, mas quebra a naturalidade da expressão.

O DECASSÍLABO

JB – O próprio Parra tem muitas histórias sobre sua teimosia com o decassílabo, teorias embasadas sobre as classes sociais ao longo da história e as transformações linguísticas resultantes das modificações socioeconômicas. Ele faz análises de obras fundamentais da literatura a partir das contagens silábicas, é maravilhoso. Mas acho que o leitor tem que ter em mente que Parra, além de um obsessivo, era um matemático. É uma tara.

CP – Ele tem obsessão pelo decassílabo, muitos poemas são inteiramente compostos em decassílabos e, quando não é um decassílabo perfeito, ele fica rodeando e mantém o ritmo decassilábico.

OS CORTES


JB – A poesia de Parra tem pontos muito cortantes e mortais, que eu atribuiria especialmente a duas coisas. A primeira é mais jocosa, o poeta gosta de dar olés em seus leitores, colocando sangue nos narizes e caveiras onde não deveriam estar. Sobre esses bailes planejados, o poeta costuma dizer algo assim: “É preciso dar ao leitor duas frases coerentes com as quais se sinta aclimatado e orgulhoso de seu bom entendimento, seguida de uma completamente desnorteante, um tiro sem sentido”. O plano de Parra para uma comunicação poética urgente exigiria deslocar o leitor de sua sonolência, por isso “um tiro”. A segunda razão é seu impulso apocalíptico: “O céu está caindo por terra”. Parra é um sublime questionador das grandes verdades, do status quo, dos tabus e medos do burguês, encabeçados especialmente por instituições como o Estado e a Igreja – que são alvos constantes de sua fúria e agressão.

CP – Os cortes brutos têm a ver com uma visão modernista de poesia, mas também com o modo de pensamento, de raciocínio dele, essa inteligência não linear, de mostrar os vários ângulos e se colocar no lugar de muitos personagens. É um poeta que engana muito porque as pessoas fazem confusão entre escritor e narrador, entre o eu lírico e o eu do autor. Ele joga com esse eixo das filigranas, joga o tempo inteiro. Se você lê o Parra achando que tudo o que ele fala é dele e a voz dele, não vai entender nada. Porque ele se coloca no lugar dele mesmo, no lugar do cidadão comum, da pessoa que está na rua... Num mesmo poema, às vezes, ele passeia por muitos olhares, muitos pontos de vista. E há o humor, ele é muito irônico, sarcástico e provocador, além de fazer questão de destruir esse lugar do autor como alguém que sabe, que tem a palavra definitiva.

VIOLETA E A MORTE

JB – Vale notar que há menções em diversos poemas, que é o suicídio de sua irmã e melhor amiga Violeta Parra, em 1967. Vejo que a Violeta era para Nicanor uma espécie de arquétipo da coragem e do atrevimento, uma mulher que tinha uma posição política ativa, que se lançava ao mundo rastreando a cultura popular chilena, enquanto Nicanor, protegido pela academia e pela ironia, sobrevivia das palavras, do plano teórico, das matemáticas. Parra é um poeta mental, professor do Departamento de Matemática da Universidade do Chile — especialista em relatividade e indeterminação. Inclusive, o fato de o poeta circular dentro do departamento de exatas da universidade, e não se associar a nenhum partido político, o protegeu durante os anos mais duros da ditadura no país. Nicanor viveu 103 anos; Violeta, compulsiva, por sua vez, se matou com um tiro na cabeça. Os dois irmãos compunham uma espécie de equilíbrio de opostos e ouso dizer que Violeta foi a mulher para quem Nicanor Parra dedicou um amor mais constante.

CP – Parra põe tudo no chão, inclusive o tema da morte, como no poema O que o defunto disse a si mesmo, em que diz: “É que troçava até mesmo da morte”. É alguém que atravessou o século passado inteiro, viu todas as tragédias, as guerras, o próprio Chile, o suicídio da irmã Violeta Parra. Ela tem um papel importantíssimo na vida na formação dele. Ela se matou com 50 anos, então, durante metade de sua vida ele conviveu com essa presença ausente dessa figura maravilhosa. Quando comecei a ler o Parra, sempre achava que eram poemas de velho, mas ele escreveu isso com menos de 50 anos. Mas o tema da morte está presente em qualquer pensador ou artista que tenha essa visão da vida a fundo. Como diria Camus, a única questão realmente importante é a morte e, mais ainda, o suicídio.

TRADIÇÃO E RUPTURA

JB – Nicanor Parra apanhou bastante da crítica tradicional: quanto ao conteúdo de seus poemas e quanto a suas posições políticas. Parra apanhou sobretudo da esquerda ortodoxa. Mesmo que politicamente se aproximasse bastante do comunismo, Parra sempre teve um espírito de franco-atirador, um anarquista – isso acabou afastando-o de Pablo Neruda (1904-1973) e da turma do Partidão. Mas, para além dos confrontos no campo político, me parece que Parra precisava se afastar daqueles que o antecederam, se colocar de maneira dialética com a obra de Gabriela Mistral (1889-1957), Vicente Huidobro (1893-1948) e Neruda. Irônico, Parra zomba calorosamente das influências que teve, do passado poético que o alimentou e me parece que foi um processo absolutamente consciente, Parra se recusou a converter-se em outro Neruda. Quando fui visitá-lo, perguntei o que significava “poesia de sombrero alón” (no poema Manifesto), e ele respondeu: “Sombrero alón é para gênios e românticos, naquele tempo se cultivava uma planta estranha chamada genialidade”.

CP – Todo escritor ou artista dialoga com a tradição, quer queira, quer não. O que marca Parra é essa rebeldia contra o status quo, contra essa poesia de matriz romântica que estava sendo feita no começo do século passado. A revolta do Parra é contra esse lirismo desbragado. Ele é matemático e extremamente crítico, analisa matematicamente tudo. E, com certeza, ele bebeu muito nas vanguardas d

ANTIPOESIA

JB – Não sei se seria capaz de uma síntese dessas. Isso deixo aos poetas. Mas tem um aspecto que pode ser mencionado em tempos como o nosso, e que me parece difícil de escapar aos olhos dos leitores atentos, que é uma espécie de democratização da poesia – veja bem, não quer dizer que Parra fosse anti-intelectual, muito pelo contrário, era um acadêmico excitadíssimo com as conquistas intelectuais da humanidade. A ideia de democratização não tem nada a ver com banalização. Escolhi este aspecto da antipoesia (além do humor, da ruptura, do político, das questões da linguagem, do pop, do popular etc.) por conta de uma pergunta: por que as pessoas (no Brasil) insistem em dizer que não gostam ou não entendem poesia?. Aproveito, então, para fazer um convite e dizer que com Nicanor Parra “os poetas desceram do Olimpo”. Eles não são mais deuses nem profetas, não podem mais abarcar o universo, nem iludir o leitor com linguagens difíceis. Na antipoesia de Parra, o poeta e suas vozes são seres comuns, precários e contraditórios como todos os seres humanos. Mesmo que muitos de seus poemas tenham sido escritos há décadas, Nicanor Parra segue sendo fundamentalmente contemporâneo.

CP – O tema da antipoesia é a principal criação de Parra (não é exatamente uma criação, mas ele é quem defendeu essa ideia) e foi o que o lançou como poeta no mundo. A partir de Poemas e antipoemas (1954), ele conceitualizou e cunhou esse termo para defender a antipoesia, no sentido de que a poesia passa muito longe desse lirismo tradicional ainda com resquícios do romantismo. E, de fato, ele levou isso muito longe. A antipoesia de Parra desconfia não se deixa levar pelas sensações e sentimentos, não acredita nas visões de mundo estabelecidas, nas grandes narrativas. Ele é revolucionário, é um crítico da esquerda chilena e latino-americana. Nunca se conformou nem se permitiu a desempenhar papel algum, o que é uma grande lição.



SÓ PARA MAIORES DE CEM ANOS: ANTOLOGIA (ANTI)POÉTICA

. De Nicanor Parra
. Seleção e tradução de Joana Barossi e Cide Piquet
. Edição bilíngue
. 288 páginas
. R$ 55


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