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Ponto de fuga


postado em 14/12/2018 05:06



ET no parque


O dia 2 de janeiro começou com um toque de milagre: amanheceu ensolarado. Londres retomou o ritmo normal de vida. As pessoas correram nas ruas, no metrô, no trabalho, como se fossem salvar o mundo de um desastre iminente, porém encontraram tempo para uma rápida descontração à moda local:

– Que belo dia, hein?

– Belo dia, hein?

– Belo dia para iniciar o ano.

– Sim, feliz Ano Novo.

– Feliz Ano Novo.

– Até mais.

– Até mais.

Um belo dia, de fato. Previsão de tempo bom, temperatura ao redor de cinco graus, no entanto duraria pouco. Nuvens pesadas chegavam do Mar do Norte, já provocavam neve na Escócia e trariam chuva a Londres dentro de dez horas. O tempo aberto, enquanto permanecesse, merecia uma comemoração. Maria não teve aula, ainda em recesso de Natal, e acompanhou as primas nas andanças. Em vez de conhecer a casa de Sherlock Holmes, decidiram voltar ao zoológico. O clima as convidou.

No meio do caminho, em cima da ponte de ferro sobre o canal do Regent´s Park, mudaram de ideia, tomaram a trilha ao lado dos campos de futebol e rumaram para o lago do parque. Uma vez mais, ficaram fascinadas com as aves que ali vivem. Observaram os bandos de patos, marrecos, gansos, cisnes, gaivotas, garças, cegonhas. Milhares de pássaros. Disputaram com muita garra, ou melhor, com o bico, qualquer comida à vista. As gaivotas, as mais brigonas e barulhentas, roubaram de um menino o sanduíche que ele deixara sobre um banco e o retalharam em pleno voo. As galinhas-d´água, mais discretas, procuraram o almoço no lodo. No topo das árvores maiores, cegonhas com preguiça vigiavam os ninhos vazios. Seus filhotes há muito haviam migrado e curtiam lugares mais quentes. Jaburus, do alto das pernas compridas, fingiam de estátua, à espreita de algum peixe distraído. Debaixo dos chorões, que vergavam até atingir a água, pombos ciscavam o terreno, à procura de restos de piqueniques realizados durante o verão. Luiza observou:

– Tenho a sensação de já ter visto este lugar, em algum lugar. O lago e estas árvores... Os ramos de chorão caindo... Sim, eu já vi.

– Eu também – confirmou Giulia.

– Onde teria sido? – Luiza pensou alto.

– Foi no filme da Mary Poppins – disse Maria. – Na parte de desenho animado, tem um lugar igualzinho este aqui, acho até que copiaram. Já assisti ao filme muitas vezes. Adoro ele...

– Isso mesmo! – exclamou Giulia. – Eu sabia que tinha visto este lugar em algum lugar. Faz muito tempo que eu vi Mary Poppins, mas, agora que você falou, eu também lembrei. Mary Poppins... Isso mesmo.

– Você matou a charada, Maria – concordou Luiza. – Para completar, aqui também tem esse coreto, igual no filme.

– Tem outro desenho animado que também foi inspirado aqui... – prosseguiu Maria.

– Qual? – quis saber Giulia.

– 101 dálmatas.

– É mesmo! – lembrou-se Giulia. – Igualzinho, igualzinho. Por isso a minha impressão de já ter visto esta paisagem. Por isso a quase certeza que eu tive de já ter estado aqui. Elementar, minha cara prima. Já estivemos aqui, sim. Através do cinema.

– Vamos lá no coreto? – sugeriu Marina.

Tão logo entraram debaixo da construção que lembrava um disco voador sustentado por pernas de cegonha, Marina e Maria fingiram que eram Mary Poppins e imaginaram-se usando um guarda-chuva voador. Dançaram como se houvesse música no ar, em movimentos vagarosos, quais astronautas em ausência de gravidade. Luiza e Giulia acharam o balé muito infantil. Tornaram-se cantoras de rock, em concerto para um público que lotava toda a extensão do gramado, até o lago. As mãos viraram microfones invisíveis junto à boca, enquanto os lábios, as expressões faciais e o corpo acompanharam o ritmo de uma canção inexistente. De vez em quando, os dedos percorreram as cordas de guitarras. Curvaram-se para receber os aplausos ao final da apresentação.

Cinco minutos depois, cansadas das performances, as quatro rumaram para o zoo. Ao lado do teatro a céu aberto, onde já se anunciava para o julho a peça Muito barulho por nada, de Shakespeare, perto de um morrinho cheio de árvores, arbustos e bancos para descanso, Marina gritou:

– Olha ali um ET!

Um bicho com orelhas e olhos soltos no espaço, balançando com o movimento, semivestido com trajes de andar na Lua, corria sobre um canteiro onde as roseiras tinham sido recentemente podadas. Fios e tubos, quais intestinos coloridos, ligavam pedaços de carne que lembravam pernas, as de trás bem maiores. Um tufo de pelo crescia onde brotava um rabo. Na outra ponta, um focinho se formava. Cada vez mais, surgiam membros e pele. A criatura se transformava num animal.


Luís Giffoni
Nasceu em Baependi (MG), em 1949. Graduou-se em engenharia civil pela UFMG, além de fazer cursos de astronomia (UFMG) e literatura norte-americana (ICBEU-BH). Tem mais de 20 livros publicados, entre romances, contos, crônicas, ensaios e novelas juvenis. Essas obras receberam diversas premiações, além de estudos, traduções e adaptações no Brasil e no exterior, da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), Bienal Nestlé, Prêmio Minas de Cultura – Prêmio Henriqueta Lisboa, Prêmio Nacional de Romance e Prêmio Nacional de Contos Cidade de Belo Horizonte, além de duas indicações ao Prêmio Jabuti. O Pensar publica com exclusividade um trecho da novela O hacker do tempo (Ed. Miguilim, 146 páginas, R$ 44,90). O lançamento será amanhã, das 11h às 14h, na Livraria da Rua (Rua Antônio de Albuquerque, 913, Savassi, (31) 3500-6750).
 


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