Sheila Martins
Médica neurologista, presidente eleita da World Stroke
Organization (WSO), organização internacional que busca
reduzir o impacto global do AVC, e da Rede Brasil AVC, além
de coordenadora do estudo Resilient
incorporação de novos tratamentos no sistema público de saúde é um desafio para qualquer governo, independentemente de o cenário econômico ser favorável ou não. Estamos falando de um processo complexo que envolve interesses diversos e antagônicos, mas cujo principal foco não deve ser negligenciado: a priorização das necessidades de saúde do paciente. Até que esteja disponível aos mais de 100 milhões de brasileiros atendidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), há muitas etapas para que uma te- rapia seja aprovada. Em suma, são necessárias a comprovação da segurança e eficácia do tratamento por meio de estudos clínicos de relevância, e a apresentação de evidências práticas e objetivas sobre a viabilidade do seu custo/benefício.
No momento, nosso desafio é que seja disponibilizada uma nova terapia para o acidente vascular cerebral (AVC). Seu processo de incorporação junto à Comissão Nacional de Incorporação de Novas Tecnologias (Conitec), órgão de assessoramento do Ministério da Saúde, está em andamento. Já recebeu apreciação positiva em sua apresentação e conquistou mais uma etapa: está em consulta pública. Mas ainda temos muito a percorrer para modificar o cenário desse alarmante problema de saúde pública mundial. Também conhecido popularmente como derrame, o AVC é uma das principais causas de morte e de incapacitação. A cada ano, 13,5 milhões de pessoas têm um AVC no mundo, 5,5 milhões morrem, e 26 milhões vivem com incapacidade permanente. Já o Brasil registra 400 mil casos da doença por ano, com 100 mil mortes e mais de 170 mil internações no SUS, segundo o Ministério da Saúde.
Existem dois tipos de AVC: o isquêmico (AVCi) e o hemorrágico (AVCh). O mais comum deles, cerca de 80% dos casos, é o AVCi, quando ocorre obstrução dos vasos que levam o sangue ao cérebro. Na versão hemorrágica, menos incidente, há um rompimento desses mesmos vasos. A terapia em fase de incorporação é a trombectomia mecânica (TM), procedimento minimamente invasivo utilizado para tratar casos de AVCi agudo por oclusão de um grande vaso. Na intervenção, é usado um cateter que leva um dispositivo endovascular, um stent, para remover o coágulo do vaso sanguíneo ou um sistema de aspiração.
Já aprovada nos Estados Unidos, países da Europa, Canadá e Austrália, além de chancelada por guidelines internacionais e sociedades médicas da área, a trombectomia mecânica teve eficácia e custo/benefício analisados por nove estudos clínicos. A técnica, no entanto, não havia tido até então a sua viabilidade de implementação evidenciada em um país em desenvolvimento. Para atender a essa necessidade, surgiu o Resilient, estudo colaborativo da Rede Nacional de Pesquisa em AVC, com financiamento do Ministério da Saúde, realizado em 12 hospitais públicos do país com 221 pacientes. O nosso objetivo era atestar a redução do grau de incapacidade (sequelas) e o custo/efetividade de tratamentos para retirada de coágulos do cérebro em quadros graves de AVC.
O Resilient não apenas comprovou os benefícios da tecnologia para a saúde do paciente como mostrou a viabilidade financeira do procedimento no SUS, entre outros benefícios. Não há dúvidas de que a incorporação da trombectomia mecânica é fundamental para os brasileiros, já que hoje os pacientes de AVC só têm o tratamento clínico medicamentoso (trombólise) disponível na rede pública, opção com baixa eficácia em dissolver coágulos de grandes artérias ocluídas e uma janela terapêutica restrita, sendo eficaz até 4,5 horas depois dos principais sintomas da doença. A trombectomia mecânica é aplicável até 8 horas do início dos sinais do derrame e, segundo estudos internacionais e o brasileiro Resilient, quando comparada à terapia à base de medi- camentos mostra superioridade.
Estudos demonstram que a taxa de recanalização, quando realizada a trombectomia mecânica na oclusão de grandes vasos, chega a 77% (Nogueira, 2018; Whiteley, 2017), significativamente mais eficiente que a trombólise endovenosa, com 11% (Tsivgoulis, 2018). Os pesquisadores também chegaram à conclusão de que a TM proporciona melhor qualidade de vida ao paciente, aumentando a sua capacidade funcional (cognitiva e motora) e dando maior independência no pós-AVC.
Estudos apontam, ainda, que 46% dos pacientes que foram submetidos a essa nova técnica se mostraram independentes após três meses de tratamento, contra apenas 26,5% do grupo que recebeu a trombólise endovenosa (Goyal, 2016). Em suma, a trombectomia mecânica reduz as taxas de mortalidade, o tempo de internação e dá mais chances para a boa recuperação no pós-AVC.
Esses resultados nos ajudam a entender a importância desta incorporação. Além de reduzir a mortalidade das vítimas de AVC isquêmico, o procedimento interfere de forma positiva no quadro geral do paciente, fazendo com que ele se recupere melhor e mais cedo. Na prática, isso significa redução de gastos públicos, na medida em que a técnica garante melhor prognóstico, tempo de internação reduzido, além de diminuição de despesas com tratamentos complementares e menos custos para o SUS.
Não podemos esquecer, porém, de que já somos beneficiados, mais do que isso, privilegiados, por ter o SUS, um dos poucos e maiores programas sociais do mundo, que garante o acesso universal à assistência médica. O governo também faz campa- nhas importantes de conscientização sobre o AVC. Apesar disso, precisamos, urgentemente, ampliar a oferta de tratamentos, que é hoje um dos principais gargalos, bem como expandir a rede de hospitais que são referência no tratamento do AVC.
Não há tempo a perder. Quando uma pessoa tem um acidente vascular cerebral, cerca de 1,9 milhão de neurônios morrem por minuto. A rapidez no atendimento e o tratamento adotado garantem que essa perda seja mitigada. Por isso, é importante que cada vez mais as pessoas estejam preparadas para reco- nhecer os sintomas da condição, como alteração de força, visão e no equilíbrio, tontura, dificuldade para falar ou compreender o outro, dor de cabeça e náusea. Mas temos que ir além. É preciso não só reduzir o tempo entre o início dos sintomas e a chegada do paciente ao serviço de emergência, mas disponibilizar intervenções mais inovadoras. Adequadas para atender às diferentes necessidades dos pacientes, elas podem representar um verdadeiro divisor de águas no seu destino.
