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Estado de Minas GUERRA NA EUROPA

Com invasão, Rússia mira 'zona tampão', diz especialista

Receio de avanço da Otan e efeitos de deposição de governo pró-russo em 2014 ajudam a entender investida sobre a Ucrânia


27/02/2022 04:00 - atualizado 26/02/2022 22:39

Na fronteiriça Polônia, voluntários oferecem transporte solidário
Na Polônia, voluntários oferecem transporte solidário às pessoas que fugiram da zona de conflito após os ataques russos (foto: WOJTEK RADWANSKI/AFP)

Pressionada pela cronologia da expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) sobre a fronteira ocidental de seu território, a Rússia, de Vladimir Putin, ataca a Ucrânia com o anunciado objetivo de barrar a presença militar adversária à porta ucraniana de seus vastos domínios. Pretende manter ali uma “zona de amortecimento”, por onde, a história ensina, sofreu inúmeras invasões – a mais feroz delas na Operação Barbarrosa, desencadeada pela Alemanha Nazista em 1941 contra a ex-União Soviética. Desde a invasão napoleônica de 1812, a Ucrânia serviu de “zona-tampão” para Moscou.

“Há um erro da perspectiva tática do Ocidente com relação aos russos. Com o avanço da Otan e dos Estados Unidos, os russos se sentem ameaçados. Foi a razão dessa reação militar sobre a Ucrânia, que também tenta aderir à Otan”, sustenta Danny Zahreddine, diretor do Instituto de Ciências Sociais da PUC Minas e especialista em relações internacionais. Para ele, os embargos econômicos impostos pelo Ocidente terão baixo impacto.

A expansão da Otan se deu, apesar de, nas negociações para a dissolução da União Soviética, em 1990, as lideranças ocidentais terem se comprometido com a não expansão da Otan em direção à fronteira russa, relembra Zahreddine. “Foi uma espécie de acordo não escrito, ao final da Guerra Fria, segundo o qual a área de influência da ex-União Soviética seria preservada. Não foi cumprido e a Rússia se vê cercada pela presença da Otan em ex-repúblicas soviéticas e em países que faziam parte do cinturão de influência soviético, com bases da Otan e com sistemas de mísseis balísticos”, diz ele.

A Otan nega tal intenção, afirmando que “um número reduzido” de seus Estados-membros compartilha fronteiras com a Rússia. Mas, na prática, quase a metade dos 30 países que a integram foram do Pacto de Varsóvia – repúblicas da ex-União Soviética ou na área de influência dessas.

Em 2014, com o apoio do Ocidente, a segunda Revolução Laranja da Ucrânia depôs o presidente eleito, Viktor Yanukovych, interlocutor da Rússia. “A narrativa daqueles que são pró-Ocidente foi de que a Revolução Colorida foi um movimento popular, apoiado pelos Estados Unidos. Mas não podemos esquecer que a ordem democrática estabelecida foi violada, pois o presidente era eleito”, avalia Zahreddine. Putin tratou como “golpe” e acusou o Ocidente de querer transformar a Ucrânia em uma “plataforma antirrussa”.

A primeira reação de Putin à ascensão da oposição na Ucrânia foi a anexação da Crimeia, estratégica península ao Mar Norte – resultando em protestos e sanções econômicas. De maioria étnica russa, a Crimeia foi, em 1954, presente de Nikita Khrushchov (1874-1971) à Ucrânia. Questões identitárias e culturais acrescentam mais complexidade ao tema. Os países compartilham em sua fundação a resistência aos tártaros, poloneses e lituanos, o que gesta o nascimento da Rússia. “Kiev foi a primeira capital da Rússia. É muito presente no imaginário dos russos o sentimento de que a Ucrânia e a Rússia são a mesma motherland, a mesma pátria”, afirma Danny.

A maior parte da Ucrânia fez parte do Império Russo até 1918. A república ucraniana foi criada a partir do acordo de Brest-Litovski, que selou a paz entre russos, representados pelos bolcheviques, recém-chegados ao poder, e as potências centrais da Alemanha, Áustria e Império Otomano. O tratado foi humilhante para a Rússia: perdeu a Ucrânia, Polônia, os países bálticos – Estônia, Letônia e Lituânia –, além da Finlândia e da Bielorrússia. Como as nações que forçaram a Rússia a assiná-lo foram derrotadas ao final da Primeira Guerra Mundial, durou pouco. A República Ucraniana passou a integrar a URSS.

Danny Zahreddine
(foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press %u2013 6/3/20)

Com o avanço da Otan e dos Estados Unidos, os russos se sentem ameaçados. Foi a razão dessa reação militar

Danny Zahreddine, diretor do Instituto de Ciências Sociais da PUC Minas


DIVISÃO ÉTNICA

A Ucrânia já nasceu etnicamente dividida – entre aqueles que fizeram parte do Império Austro-Húngaro e, antes dele, da República Polaca Lituana, e aqueles que pertenceram ao Império Russo. Essa divisão emerge durante a Segunda Guerra Mundial, quando vários ucranianos colaboram e lutam ao lado dos nazistas. Com a vitória soviética e a resistência de cidades como Kiev, ao fim da guerra a Ucrânia volta a ser uma das repúblicas soviéticas.

No Leste, há duas regiões de maioria russa – Donetsk e Luhansk, que se autoproclamaram independentes e foram reconhecidas por Moscou antes da invasão da Ucrânia. O decreto de reconhecimento de Putin permite que a Rússia construa bases militares nas duas regiões, o que levou o Ocidente a acusar violação da integridade territorial e da soberania da Ucrânia.
 

ENTREVISTA
Dawisson Belém Lopes
Diretor-adjunto de relações internacionais da UFMG

Sem entrar em ação, China vence primeiro round

A guerra entre a Ucrânia e a Rússia já tem um vencedor: a China. O cerco da Otan à fronteira ocidental da Rússia vai lançar, definitivamente, a Rússia nos braços da China, potência econômica em ascensão, que polariza com os Estados Unidos a nova ordem mundial. Na avaliação do cientista político Dawisson Belém Lopes, diretor-adjunto de relações internacionais da UFMG, a aliança entre China e Rússia minimiza, para a Rússia, os impactos das sanções econômicas do Ocidente. Ao mesmo tempo, é instrumental para as duas partes, mas vai deixar a Rússia mais dependente da China.

Duas semanas antes de invadir a Ucrânia, o presidente da China, Xi Jinping, que desde 2020 não recebia chefes de Estado em Pequim, recepcionou o líder da Rússia, Vladimir Putin. O representante chinês classificou a parceria entre os dois países como “inabalável, passada, presente e futura”.

Em comunicado conjunto, reafirmaram a aproximação em diversas áreas, como cooperação na Nova Rota da Seda, diplomacia, comércio exterior, combate à pandemia de COVID-19 e a defesa  de um mundo “policêntrico”. Ao mesmo tempo, a China não condenou a invasão russa da Ucrânia.

O que representa a ação russa sobre a Ucrânia para a ordem mundial?
A nova ordem mundial ou a nova disputa que realmente importa para a ordem internacional é entre Estados Unidos e China. Essa é a grande disputa que está nascendo e está consolidada. Se existe um ator que desafia a hegemonia dos Estados Unidos de forma ampla e multidimensional é a China. Agora, essa aliança entre China e Rússia é instrumental para as duas partes. É boa para a Rússia e se sustenta no front econômico. Não vai sofrer quase nenhum impacto dessas sanções aplicadas pelo Ocidente, mas vai ficar mais dependente da China. Por seu turno, a China vai manter uma relação um pouco assimétrica com a Rússia. E também para a China, quanto mais os Estados Unidos estiverem distraídos com outros focos de conflito, tanto melhor. Ela vai tocar o seu projeto de longo prazo, de ascensão. A China não quer causar guerras, disrupção. Não quer que isso aconteça. Ela quer seguir com a sua ascensão, sem perturbações, já que, no limite, a guerra entre grandes potências tem efeitos que não são administráveis.

Como vem se construindo a relação entre China e Rússia e como se diferenciam os dois países na ordem mundial?
A aproximação entre a China e a Rússia vem acontecendo há alguns anos e está dentro do contexto da Nova Rota da Seda. Em 2016, os dois países emitiram um comunicado diplomático conjunto sobre as interpretações que Pequim e Moscou aplicariam aos documentos das Nações Unidas, cartas da ONU, conceitos que fundamentam a ordem institucional internacional. A China consolidou o seu lugar no mundo de potência baseada no comércio internacional, no comércio eletrônico e no campo da tecnologia, a capacidade de operar na fronteira da inteligência artificial. A Rússia tem o poder que advém de um território muito grande, o maior do mundo, com todas as potencialidades, o potencial histórico do povo, capacidade de se organizar e de resistir. As Forças Armadas da Rússia cobrem essa vastidão territorial, conhecem o seu território e estão em estado de prontidão para defendê-lo, investem os seus recursos nisso. A Rússia tem um poderio nuclear sem igual e, nesse sentido, o único paralelo são os Estados Unidos. Além disso, desenvolveu também as formas não convencionais de guerra, a ciberguerra. Então, ela tem ogivas nucleares, capacidade para a guerra cibernética, capacidade de fazer diplomacia, pois a máquina diplomática russa é de alto nível. Mas hoje a Rússia não faz, nas múltiplas dimensões das relações internacionais, frente às potências China e Estados Unidos.

Em sua avaliação, antes de atacar a Ucrânia, Putin sabia que não haveria reação militar dos Estados Unidos, por meio da Otan?
Entendo que sim. Putin avaliou os cenários, farejou que os Estados Unidos têm outras preocupações internas e internacionais: o contexto da pandemia, a inflação alta, o país dividido ao meio, polarizado.

Quais as consequências dessa guerra para o Brasil?
As consequências são econômicas: instabilidade cambial, suprimentos energéticos, sobretudo petróleo, vamos ter consequências nesse sentido, instabilidade no curto prazo. Agora, no médio prazo, depende um pouco de como o Estado brasileiro vai se comportar. Diplomatas do Itamaraty têm temor de que Bolsonaro tente uma política externa mais autoral. Isso vai piorar a nossa situação, seguramente. Nesse momento, contudo, acho que Bolsonaro está enfraquecido internamente, não está em condições de nos arrastar para esse conflito: o que ele fala não se escreve, e na política internacional os principais atores entendem isso. 


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