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Estado de Minas VIENA

Em busca da nacionalidade austríaca arrebatada pelos nazistas


03/05/2021 10:12

Muito raramente falam alemão, alguns sequer pisaram em território austríaco, mas, quase 76 anos após a Shoah, aceitaram a mão que lhes foi estendida pelo país de onde seus antepassados tiveram de fugir e recuperaram uma nacionalidade roubada pelos nazistas.

"Para mim, era algo crucial", diz Maya, uma americana de 17 anos. Embora ela tenha passado toda sua vida em Maryland, esta estudante queria reconstituir a dolorosa história de sua bisavó judia.

A AFP recolheu os testemunhos destes novos cidadãos da República da Áustria, que se beneficiaram de uma mudança na lei que oferece, desde 1º de setembro, um passaporte aos descendentes das vítimas do Holocausto.

As razões são várias, desde as afetivas ao dever de salvaguardar a memória, ou o desejo de fazer justiça, que levaram os americanos Maya e Noah, o israelense Gal, o argentino Tomás e o britânico Robert a reivindicarem esse direito e reconquistar a nacionalidade tirada de seus ancestrais.

- Exílio forçado -

Suas histórias começam com as migalhas que os alcançaram.

O exílio forçado de Stella Rinde Coburn, de quem Maya Hofstetter é descendente, ocorreu em agosto de 1939, depois que Adolf Hitler anexou seu país natal ao Terceiro Reich em 12 de março de 1938.

O avô do israelense Gal Gershon deixou a Áustria um ano antes. "Não foi decisão sua", lembra Gershon, diretor de vendas da transportadora aérea El Al, de 46 anos.

"Quando ele tinha 13 anos, seus pais o colocaram em um barco, sozinho", a caminho de um orfanato na Palestina. Por muito tempo, não teve notícias de sua família, até que soube que seus parentes morreram nos campos de concentração.

Antes da anexação da Áustria, o Anschluss, o país alpino tinha 200.000 cidadãos de origem judaica. Destes, mais de 65.000 foram mortos durante o Holocausto. Para sobreviver, a grande maioria teve de fugir, indo para Xangai, ou Buenos Aires, por exemplo.

O pai de Tomás Diego Haas conseguiu embarcar para a Argentina, subornando um diplomata, conta o sul-americano de 60 anos, que exerce uma profissão bem vienense: psicanalista.

Já o jovem Noah Rohrlich, de 25 anos e residente de Washington, conta que seu avô deixou o país aos 16 anos, antes do início da guerra. Ele começou a estudar em Harvard em 1946, quatro anos depois que seus pais morreram em um campo de concentração.

- "Saber de onde viemos" -

"Sempre perguntávamos a ele como era morar em Viena, mas nunca recebíamos uma resposta muito detalhada", lamenta o americano de cabelo preto curto, mostrando à AFP o passaporte de seus bisavós Egon e Cilly, com um imponente "J" estampado em vermelho (para "judeu").

Poucos são os refugiados que contaram em que condições tiveram de partir. Era necessário deixar a Áustria para trás e reconstruir uma vida inteira em outro lugar.

Para os descendentes, a obtenção da nacionalidade é, muitas vezes, uma forma de restabelecer os laços com os ancestrais e com seu país de origem.

"Agora, ser cidadão austríaco me dá a sensação de estar mais próximo do meu avô", diz Noah, que escolheu a mesma profissão que ele: engenheiro.

Gal menciona "uma emoção muito forte". "Foi uma forma de encerrar a história, de corrigi-la em homenagem ao meu avô", explica.

Na sua idade, Maya poderia ter outras preocupações, mas "o passado afeta o presente", assegura. "Você tem que saber de onde vem para ter esperança de se tornar alguém bom".

Sua mãe, Jennifer Alexander, pesquisadora de ciências sociais para o governo dos Estados Unidos, também cita motivos políticos. "Meus avós ficariam chateados de ver os Estados Unidos nestes últimos quatro anos", garante.

Já o britânico Robert G.W. Anderson diz estar "feliz" por poder se reconectar com suas raízes austríacas. Ele comenta que o Brexit também o levou a recuperar a nacionalidade austríaca, já que o divórcio do Reino Unido da União Europeia o "chocou".

- Regressar -

A próxima etapa para esses novos cidadãos será visitar a Áustria, um país de 8,9 milhões de habitantes.

"Nunca fui e quero muito visitá-la, espero que com meus filhos", diz Gal.

Maya, por sua vez, "sonha em estudar lá, aprender a língua, a cultura".

Noah gostaria de encontrar o apartamento em que seu avô morava. "Quem sabe também dar um passeio no parque Esterhazy, que fica logo à frente. Tinha um rinque de patinação de que gostava muito, não sei se ainda existe".

A grande maioria dos entrevistados não tem a intenção de se mudar para a Áustria, mas a maioria deseja exercer seu direito de voto e tentar encontrar parentes distantes.

Alguns se perguntam o que as partes interessadas pensariam.

Noah deu como certo que pediria a naturalização, convencido de que isso deixaria seu avô "feliz". Tomás Diego Haas imagina que seu pai "teria sentimentos contraditórios".

"Ele tinha memórias maravilhosas de suas caminhadas na floresta vienense", ou de suas idas à ópera "duas ou três vezes por semana", mas "ele não conseguia perdoar porque sua vida foi roubada".

"Não acho que minha bisavó teria ficado muito feliz", reflete Maya. "Ela pensaria que a havíamos traído. Bem, talvez não até esse ponto, mas ficamos do lado daqueles que a expulsaram".

- "Pedir perdão" -

Das centenas de milhares de descendentes elegíveis para este programa, cerca de 1.900 - principalmente de Estados Unidos, Reino Unido e Israel - já obtiveram seus passaportes, uma porta aberta à União Europeia (UE), da qual a Áustria faz parte.

Até a lei ser aprovada, a cidadania não podia ser transferida para os descendentes, lamenta a secretária-geral do Fundo Nacional Austríaco para as Vítimas do Nacional-Socialismo, Hannah Lessing.

Diante do que interpretavam como uma injustiça, "era nosso dever responder com humildade ao desejo deles", sublinhou à AFP o chanceler austríaco, Sebastian Kurz (conservador), que propôs a reforma.

"Vamos ser claros: nada pode apagar a dor. A única coisa que podemos fazer é pedir perdão com franqueza. Fiquei comovido ao ver que este gesto de reconciliação foi amplamente aceito", afirmou o chefe do governo.

As famílias entrevistadas pela AFP aplaudiram a iniciativa austríaca e as calorosas boas-vindas reservadas a elas por parte do pessoal das representações diplomáticas austríacas de seus respectivos países.

Parece que depois de três gerações, a Áustria tomou consciência da violência de sua história.

Ansiosa por "se desculpar por uma profunda vergonha", a Alemanha fez o mesmo em março, quando decidiu facilitar os procedimentos administrativos.

Para o historiador Oliver Rathkolb, essa mudança de atitude é "um sinal importante" que mostra que a sociedade "leva a sério as consequências da Shoah" no longo prazo.

Por muito tempo, a Áustria fingiu se passar por vítima do nazismo, negando a cumplicidade com muitos de seus nos crimes do Terceiro Reich, apesar do fato de que, após o conflito, terem sido adotadas sete leis de restituição (de obras de arte, imóveis e outros bens).

Em meados da década de 1980, um olhar crítico começou a emergir e a ganhar força, quando Kurt Waldheim, ex-oficial da Wehrmacht, apresentou sua candidatura à Presidência do país.

Além disso, em 1983, o Partido da Liberdade Austríaco (FPÖ), fundado em 1956 e liderado em seus primeiros anos por um ex-oficial da Waffen-SS, entrou no governo pela primeira vez.

Voltou a governar em coalizão entre 2000 e 2005 e entre 2017 e 2019, quando esta nova lei da nacionalidade foi aprovada, graças a um grande consenso.

Depois de rejeitar por muito tempo o que entendia como autoflagelação, a extrema direita austríaca moderou sua posição e deixou de se opor totalmente às iniciativas de reparação, a qual acabou apoiando, como parte de um processo de limpeza de sua imagem.

De Buenos Aires, Tomás Diego Haas lembra amargamente a frieza do funcionário que o recebeu quando tentou reclamar os papéis em Viena há alguns anos.

"O funcionário me repetiu três vezes, com aspereza exagerada, que eu era filho de um argentino. Foi horrível, não queria ouvir que meu pai e, antes dele, meu avô, eram austríacos", desabafou.

Agora, os austríacos, uma população de maioria católica que deve muito de sua riqueza cultural aos judeus, preferem enfatizar para seus filhos que eles não se "esqueceram" e que "eles podem voltar quando quiserem", diz Hannah Lessing.

- Freud, "knödel" e um piano -

Foi graças à sua minoria judia que Viena se tornou o caldeirão artístico da Europa a partir do final do século XIX.

O escritor Stefan Zweig, o psicanalista Sigmund Freud, o músico Arnold Schönberg... A maioria dos intelectuais que colocou a capital da Europa Central no mapa pertencia à burguesia judia e às classes médias.

Um "mundo de ontem", como escreveu Zweig, de onde vem o "tão britânico" Mister Anderson, que recebeu a AFP em sua casa em King's Lynn, no leste da Inglaterra, repleta de móveis vienenses.

Aos 77 anos, de terno e suéter de tricô verde, Robert Anderson é um verdadeiro produto dessa elite austro-húngara: seu avô dirigia uma grande petroleira e fugiu para Londres com toda família.

Como um herdeiro digno, o neto assumiu a gestão do Museu Britânico em 1992. Os londrinos devem a ele o Queen Elizabeth II Grean Court, o espetacular pátio interno projetado por Norman Foster e inaugurado pela rainha Elizabeth II em 2000.

E, mesmo que não seja o idioma, todos guardaram algo da Áustria.

Gal Gershon diz que o seu avô, que "nunca partilhou suas memórias de infância", transmitiu-lhe o gosto pelo "Marillen Knödel", uma espécie de croquete recheado com damasco, receita típica do vale Wachau. Hoje, costuma cozinhar com os filhos, como "uma pequena homenagem à sua memória".

Robert Anderson tem um piano vienense centenário, da casa Bösendorfer; Tomás Diego Haas, uma jaqueta de lã comprada durante sua primeira estada em Viena.

"Meu pai me dizia que eu nunca entenderia Freud, porque o leio em espanhol", diz Tomás Diego Haas, brincando, mas ele esclarece: "Eu tenho uma cultura e educação austríacas".

"Sempre fui austríaco. [Na Áustria] sinto-me em casa. A diferença é que agora a Áustria reconhece isso", conclui Ditch.


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