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Estado de Minas

Turistas ricos vão à Antártica antes que aquecimento global derreta continente

Urgência em conhecer lugares ameaçados pelas mudanças climáticas vem gerando cruzeiros de navio se aventuram em cantos remotos e selvagens


postado em 29/11/2019 08:37 / atualizado em 29/11/2019 12:15

(foto: Johan ORDONEZ / AFP)
(foto: Johan ORDONEZ / AFP)

Nem palmeiras, nem areia fina... Corpos seminus mergulham na água gelada na frente de pinguins: horizonte fora de alcance, a Antártica tornou-se um playground para turistas, correndo o risco de precipitar sua metamorfose.


Aproveitando a sede de novidades de uma clientela abastada e tomado de um sentimento de urgência de descobrir países ameaçados pela perturbação climática, os cruzeiros se aventuram em cantos cada vez mais remotos e selvagens.


Continente de todos os superlativos - o mais frio, mais ventoso, mais seco, mais remoto, mais deserto, mais inóspito ... -, a Antártica, ao mesmo tempo estéril e borbulhante de vida, é hoje um destino privilegiado.


Para muitos, é a última fronteira. Uma fronteira que deve ser alcançada a todo custo antes que desapareça na sua forma atual.


"É como uma facada". Em seu maiô, Even Carlsen emerge de uma água a 3° C na Ilha Half Moon, na ponta da península antártica.

(foto: Johan ORDONEZ / AFP)
(foto: Johan ORDONEZ / AFP)
 


Ao redor, blocos de gelo em forma de panela, de origami ou até anfiteatro flutuam, fotogênicos. Na costa, uma equipe médica assiste a cena.


"Não é uma praia típica, mas é genial", acrescentou o barbudo norueguês de 58 anos após um "mergulho polar" sob o paralelo 62.


Ele é um dos 430 passageiros do Roald Amundsen, o primeiro navio de cruzeiro com motor híbrido do mundo a atravessar o Oceano Antártico apenas alguns meses depois de deixar o estaleiro.


Uma equipe da AFP estava a bordo, convidada juntamente com outros jornalistas pela Hurtigruten, a empresa proprietária do barco.


Aquecimento


Se o Tratado da Antártica, assinado há 60 anos, transformou o continente em uma terra dedicada à paz e à ciência, o turismo também se desenvolveu. Com um claro impulso nos últimos anos.


A única atividade econômica ao lado da pesca - alvo de um cabo de guerra internacional em torno da criação de santuários marinhos -, concentra-se principalmente na península, de acesso mais fácil e clima mais ameno do que o resto do território.


Neste pedaço de terra que escapa do círculo polar e se estende em direção à América do Sul, observamos uma fauna que geralmente vemos apenas em zoológicos, documentários ou filmes de animação.


Paisagens de gelo deslumbrantes, onde o branco toma tons pastel quando chega o amanhecer e o anoitecer. Colinas cravadas de sulcos como suspiros, cumes como chantilly...


"Pureza, grandeza, desmesura", descreve maravilhada Hélène Brunet, uma aposentada francesa de 63 anos. "É incrível, totalmente incrível. É um enorme prazer estar aqui"


Nem um lixo à vista. Mas por trás dessa limpidez estão, invisíveis, as marcas das atividades humanas.


Carregados pelas correntes oceânicas, os microplásticos estão por toda parte. "Detectamos nos ovos de pinguim", diz o diretor do Instituto Antártico Chileno, Marcelo Leppe.

(foto: Johan ORDONEZ / AFP)
(foto: Johan ORDONEZ / AFP)
 


A Antártica é, acima de tudo, "o coração da Terra", ele explica. "Provavelmente desempenha um papel importante no controle das mudanças climáticas".


Mas esse órgão vital é vítima do aquecimento.


Em particular, a península, uma das regiões que aquece mais rapidamente. Quase 3°C nos últimos 50 anos, segundo a Organização Meteorológica Mundial (OMM), três vezes mais rápido que a média global.


Em março de 2015, uma estação de pesquisa argentina chegou a medir 17,5°C. Nunca visto antes.


"Todos os anos vemos as geleiras derretendo, o gelo do mar desaparecendo e, nas áreas sem gelo, a recolonização de plantas e outros organismos que não estavam presentes na Antártida antes", adverte Leppe.


 'O equivalente a um estádio'

 

Espera-se que cerca de 78.500 pessoas visitem o continente entre novembro e março, segundo a Associação Internacional de Operadores de Turismo Antártico (IAATO).


Um salto de 40% em relação à temporada anterior, devido em parte à passagem rápida pela região de alguns novos navios transportando mais de 500 passageiros e que, portanto, não podem desembarcar, de acordo com as regras estabelecidas pela IAATO.


"Alguns diriam que 80.000 pessoas nem sequer lota um estádio de futebol e que não é grande coisa se comparado às 275.000 pessoas que visitam Galápagos todos os anos", aponta a porta-voz da associação, Amanda Lynnes.


"Mas a Antártica ainda é um lugar especial que deve ser gerenciado como tal", diz ela.


Nessas terras imaculadas, a moda é cruzeiros intimistas, chamados de expedição, que rompem com o gigantismo dos cruzeiros de massa, criticados por seu lado poluidor e invasivo.


Em navios mais limpos do que os mastodontes que navegam nos trópicos - o combustível pesado é proibido na Antártica desde 2011 -, as companhias aumentaram a conscientização sobre questões ambientais como um argumento de venda, que às vezes despertam acusações de 'lavagem verde'.


A bordo do Roald Amundsen, não há pista de dança ou cassino, mas microscópios e experiências participativas.


E conferências sobre baleias, grandes exploradores, Darwin... mas estranhamente quase nada sobre as mudanças climáticas, evocadas apenas em linhas pontilhadas.


"Porque é bastante controverso", justifica Verena Meraldi, cientista chefe da Hurtigruten. "Várias vezes tivemos conferências especificamente dedicadas às mudanças climáticas, mas isso cria conflitos".


Lugar aos "exploradores"


O léxico foi habilmente reformulado. Não se fala mais de "passageiro", mas de "convidado", nem de "cruzeirista", mas "explorador".

(foto: Johan ORDONEZ / AFP)
(foto: Johan ORDONEZ / AFP)
 


"Exploradores" geralmente mais velhos, muitas vezes aposentados que viajaram muito e que agora tomam seus bastões de marcha para desvendar o sexto continente. "Meu 107º país", diz um dinamarquês ao pisar em terra.


"Convidados" mimados que, no Roald Amundsen, têm a opção entre três restaurantes, desde comida de rua até a mesa mais seleta. O glorioso aventureiro norueguês que deu seu nome ao barco, teve que comer seus cães de trenó para conquistar o Polo Sul em 1911.


"Exploradores", finalmente, com certa riqueza, capazes de pagar 7.000 euros cada um por um cruzeiro de 18 dias em uma cabine de nível básico. E até 25.000 euros para a suíte com terraço privativo e jacuzzi.

(foto: Johan ORDONEZ / AFP)
(foto: Johan ORDONEZ / AFP)
 


Algumas companhias apostam no ultra-luxo, com navios a la James Bond transportando helicópteros e submarinos, suítes de mais de 200 metros quadrados e serviços de mordomo.


Com um hidroavião como bônus, o mega-iate SeaDream Innovation fará cruzeiros de 88 dias a partir de 2021. As duas suítes mais caras, a 135.000 euros por pessoa, já estão reservadas.


Encontro de dois mundos


Tanta modernidade e conforto contrastam com o caráter primitivo da imensidão selvagem.

(foto: Johan ORDONEZ / AFP)
(foto: Johan ORDONEZ / AFP)


Indiferente aos bípedes envoltos em seus blusões fluorescentes e protetor solar fator 50, a vida é abundante nesta primavera austral, em um silêncio ensurdecedor.


Pinguins tão desajeitados no chão quanto na água, baleias jubarte pesadas mas majestosas, leões-marinhos e focas apáticas que se aquecem ao sol...


Na Ilha Half Moon, os pinguins de barbicha - chamados por causa da linha preta que circunda o queixo - são numerosos nesta temporada de acasalamento, esticando o bico para o ar do alto de seus ninhos.


"Isso significa dizer para os outros machos que é o seu espaço e também, talvez, que é sua fêmea", diz a ornitóloga Rebecca Hodgkiss.


Eles têm motivo para trabalhar, a colônia de 2.500 palmípedes tem diminuído ao longo dos anos. Declínio relacionado ao homem ou a uma simples mudança de local? Ninguém sabe.

(foto: Johan ORDONEZ / AFP)
(foto: Johan ORDONEZ / AFP)
 


Veneza sob a água


Em contrapartida, sabemos que o futuro de milhões de pessoas e de outras espécies que vivem em áreas costeiras a milhares de quilômetros da Ilha Half Moon dependem do que acontece aqui.


Enorme congelador que abriga 90% das reservas de água doce do planeta, a Antártica também é uma bomba-relógio.


Como resultado do aquecimento global, o derretimento da calota glaciar, no oeste do continente, reformulará radicalmente o mapa do mundo, contribuindo cada vez mais para o aumento do nível do mar.


Uma contribuição de 50 centímetros até 2100, e muito mais além, segundo Anders Levermann.


"Para cada grau de aquecimento, o nível da água aumentará 2,5 metros. Não durante este século, mas a longo prazo", observa o climatologista do Instituto de Pesquisa do Impacto Climático de Potsdam.


"Mesmo que o respeitemos, o Acordo Climático de Paris (que visa limitar o aquecimento a menos de 2° C) nos dará pelo menos cinco metros de elevação do mar: Veneza estará sob a água, Hamburgo estará debaixo d'água, Nova York, Xangai, Calcutá... ", diz.

(foto: Johan ORDONEZ / AFP)
(foto: Johan ORDONEZ / AFP)
 


Quando exatamente? Difícil dizer, mas o processo parece inevitável.


Porque, assim como um navio a vapor não pode parar de repente, o gelo continuará a derreter e os oceanos subirão mesmo que paremos as emissões de gases do efeito estufa da noite para o dia.


Pegada de carbono


Para os profissionais do turismo, as mudanças na Antártica têm sua origem a mil léguas de distância, nas atividades realizadas pelo homem nos outros cinco continentes.


Eles juram praticar turismo responsável. Seu lema: "A única coisa que tiramos são fotos, a única coisa que deixamos são pegadas, a única coisa que guardamos são memórias".


As excursões em terra são regidas por uma série de instruções: limpar seus objetos pessoais para não introduzir espécies invasoras, manter-se a uma distância respeitosa dos animais para não estressá-los, não pegar qualquer coisa...


"Estragamos o resto do planeta, não vamos estragar a Antártica", observa um inglês tirando os pelos de gato no velcro de sua roupa.


E, no entanto... Algumas vozes questionam a relevância do turismo nesta região.


"O continente ganharia mais se fosse deixado apenas para pinguins e pesquisadores, mas isso provavelmente nunca acontecerá", constata o professor Michael Hall, especialista em regiões polares da Universidade de Canterbury, na Nova Zelândia.


Os polos atraem os turistas. Com o francês Ponant, que construiu um navio quebra-gelo para atravessar o Polo Norte do outro lado do globo.


"Como apreciar algo à distância parece impossível para os seres humanos, devemos garantir que seja feito com riscos para o ambiente antártico e com uma pegada de carbono o mínima possível", continua Hall.

(foto: Johan ORDONEZ / AFP)
(foto: Johan ORDONEZ / AFP)
 


"No entanto, quando toda viagem turística à Antártica libera em média mais de 5 toneladas de emissões de CO2 por passageiro, é um desafio", aponta.


A maioria dos visitantes vem do hemisfério Norte, Estados Unidos e China representando quase metade deles.


Mesmo antes de embarcar em navios de cruzeiro que partem da América do Sul - o itinerário mais comum - atravessaram o globo de avião, ajudando a enfraquecer a natureza que querem admirar.


Uma questão de consciência difícil a resolver.


"Eu sinto culpa ao dizer que tomei um avião para chegar aqui", diz Francoise Lapeyre, uma francesa de 58 anos.


'Embaixadores da Antártica'?


Os profissionais garantem que querem tornar os visitantes "embaixadores" que, depois de saborearem esse lugar único, pregarão por sua salvaguarda.


"É bom para a vida animal e para a proteção da Antártica que as pessoas veem o quão bonita é essa área", afirma Daniel Skjeldam, chefe da Hurtigruten.


"Quando vi uma oferta para esta viagem, achei melhor vir enquanto ainda não foi destruída", declarou Mark Halvorson, texano de 72 anos.


"Agora que vi pessoalmente, estou ainda mais determinado a ser o mais ecológico possível".


Mas os críticos denunciam uma forma de "turismo de última chance" esse desejo de visitar destinos vulneráveis.


Vindos da África do Sul, Cathy e Roland James, 68 e 75 anos, dizem-se sensíveis às considerações ecológicas. Mas admitem que não pensaram em sua própria pegada. "Infelizmente, não estou preocupado em parar de viajar", declarou.


Martina e Guido Höfken, 50 e 52, gostam de pensar fora da caixa. Eles pagaram um adicional para compensar o CO2 gerado por seu voo da Alemanha.


Futuros "embaixadores da Antártica"? "Talvez um pouco, mas acho que não vou mudar o mundo", afirmam. "O melhor seria que ninguém viesse."

 

O "coração da terra" precisa ser protegido

 

"Coração da Terra", a Antártica também sofre, apesar do afastamento, o impacto das atividades humanas, lamenta o diretor do Instituto Antártico Chileno, Marcelo Leppe, em entrevista à AFP.

P. Qual a importância da Antártica?

R. Na escola, fomos ensinados que existem apenas cinco continentes no mundo. É o sexto continente, um continente que pode ser definido como o coração da Terra.

(foto: Johan ORDONEZ / AFP)
(foto: Johan ORDONEZ / AFP)

 

A principal corrente marinha do mundo é a corrente circumpolar antártica que se locomove do oeste para leste ao redor da Antártica. Aparecida há 30 milhões de anos, congelou um continente que antes era verde e está ligada à circulação termoalina (oceânica) em todo o mundo.

É como um coração, porque todos os anos a Antártica muda de tamanho: de 14 milhões de km2 para mais de 20 milhões. Cresce no inverno com o gelo marinho e encolhe no verão. É como se estivesse batendo.

E a corrente subantártica se move pelo mundo como um sistema circulatório. Provavelmente, desempenha um papel importante no controle das mudanças climáticas.

Portanto, é muito importante entender, prever e proteger.

P. Qual é o impacto das mudanças climáticas no continente?

R. O principal impacto na Antártica é provavelmente a criosfera: todos os anos, vemos as geleiras derretendo, o gelo do mar desaparecendo (...) e, nas áreas sem gelo, a recolonização de plantas e outros organismos que não estavam presentes na Antártida antes, pelo menos na escala da humanidade (...).

Nos últimos 50 anos, notamos que cerca de 15% do gelo desapareceu. E essa curva se acelerará nos próximos anos, provavelmente mais do que nas previsões do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas).

Até 2100, uma proporção significativa do gelo, mais de 35%, terá desaparecido. A paisagem da Península Antártica e a dinâmica das correntes marítimas serão totalmente diferentes.

(foto: Johan ORDONEZ / AFP)
(foto: Johan ORDONEZ / AFP)


P. Você enxerga outras ameaças? Por que devemos nos preocupar?


R. A Antártica não é tão isolada quanto pensamos. Os microplásticos estão começando a ser um grande problema na Antártica. Eles estão por toda parte e nós os detectamos em todos os ambientes. Detectamos em ovos de pinguim, por exemplo (...)

O que fazemos no resto do mundo tem um impacto até mesmo na Antártica e essa natureza que parece ser poupada pela pegada humana não é, como mostram os microplásticos.

Quando você tem um continente que regula o clima, o clima ao redor da Terra por meio de teleconexões, é claro que você deve estar vigilante.


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