(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas AUTOS DA HISTÓRIA

Morte na força pública: o crime que virou marco na Justiça Militar de Minas

Ocorrido há 100 anos, assassinato de soldado no Jequitinhonha é mais antigo caso julgado pelo TJMMG e revela mistério em tortuosa investigação no século passado


06/03/2023 04:00 - atualizado 06/03/2023 14:54

cuidado
Processo de meados do século 20 recebe cuidados especiais e tem lugar de destaque no acervo do Tribunal de Justiça Militar de Minas (foto: Túlio Santos/EM/D.a press )

Nas primeiras décadas do século passado, a noite alta sempre foi sinônimo de alívio em São João do Vigia, atual cidade de Almenara, no Vale do Jequitinhonha. Especialmente em fevereiro, período historicamente mais quente do ano no município que fica a 705 quilômetros de Belo Horizonte. Mas, naquele dia 22 do segundo mês do longínquo ano de 1923, por volta das 23h, batidas insistentes na porta de uma moradia na Rua Rui Barbosa, a pouco mais de 50 metros das praias de areia branca do Rio Jequitinhonha, trariam espanto para quebrar a calmaria e o frescor que chegavam ao lugarejo com o período noturno.
 
Ao destrancar sua casa para atender, o subdelegado do arraial, João de Mercês, se deparou com um soldado ferido que lhe pedia socorro, mas que, instantes depois, morreu diante dele. Mercês não sabia, mas estava diante de um crime que entraria para a história do estado como o mais antigo a ser julgado pelo Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais (TJMMG).
 
Inquérito que se iniciou com as palavras escritas em português antigo pelo subdelegado: "Chegando hontem às vinte e três horas na porta da casa de minha residência neste arraial o soldado de nome V.M.S. offendido por tiro de arma de fogo, pedindo-me socorrê-lo e com momentos depois morreo", registrou em letra cursiva. A grafia, ora arredondada, ora reclinada, repousa um século depois em um processo de folhas pautadas já amareladas, que hoje se destaca em arquivo feito para garantir condições especiais para conservação desse documento histórico do TJMMG.
 
São João do Vigia era então arraial do município de Araçuaí, a capital do Nordeste de Minas, da qual distava 100 quilômetros, percorridos por trilhas de difícil acesso até a sede. Por isso, a subdelegacia não tinha recursos e nem pessoal especializado para a investigação. Surpreendido pelo corpo em sua moradia, o subdelegado se viu obrigado a improvisar. “Em cumprimento que se faça o corpo de delito, nomeei peritos, na falta de profissionais, aos cidadãos”, escreveu em seu relatório centenário.
Feito isso, o subdelegado João das Mercês transformou a própria casa em necrotério e Instituto Médico-Legal. Para ratificar e atestar a morte por disparo de arma de fogo, chamou um coronel – fazendeiro da região de grande expressão política – e um negociante. Dois cidadãos comuns de São João do Vigia foram recrutados para figurar como testemunhas.
 
Arte
 

Confissão

Na manhã seguinte, por volta das 6h, a casa do subdelegado se tornaria mais uma vez palco de surpresa e de outro capítulo do crime centenário. O dia mal raiara quando voluntariamente batia à sua porta da autoridade outro soldado. Suas palavras ajudariam a começar a explicar a inesperada visita da noite anterior: J.J.S. confessava ter disparado um tiro contra o colega militar na noite anterior. Mas justificava ter se tratado de fogo acidental.
 
Imediatamente, o subdelegado prendeu o soldado, como descreveria em seu relatório, hoje apenso ao processo: "O soldado J.J.S. disse ter sido o autor da ofensa. Logo o prendi e o recolhi na casa de prisão deste arraial". Abaixo do relato do documento pautado, consta mais uma vez a elegante assinatura do subdelegado. Talvez uma pista da tensão do momento, mais abaixo se desenha um garrancho trêmulo de letras de grafia de aparência infantil, quase ilegível: a assinatura do militar que confessara o assassinato e que fora preso no mesmo dia.

Investigação em lombo de montaria

Vítima e autor confesso identificados, testemunhas arroladas, a denúncia do assassinato de V.M.S. foi oferecida no Juízo Municipal de Jequitinhonha, da Justiça Comum, em 24 de junho de 1924, uma vez que então ainda não existia Justiça Militar. O crime de “matar alguém” constava da legislação em vigor, de 11 de outubro de 1890, prevendo pena de prisão de seis anos a 24 anos.
 
Mas as providências óbvias paravam por aí. As dificuldades impostas para a investigação da morte seriam muitas. Entre elas estavam as longas distâncias que precisavam ser vencidas a cavalo e por estradas ou trilhas em estado precário. Uma situação que ajuda a explicar por que foram quase três anos para cumprimento de mandados expedidos e citações às testemunhas do episódio, exigência que só chegou ao fim em 1925.
 
Para aumentar as dificuldades, a partir do ano seguinte a região do Vale do Jequitinhonha seria castigada por tempestades e enchentes que destruíram casas, engoliram estradas e caminhos e arrastaram pontes, entre os anos de 1926 e 1928. O processo só seria retomado em março de 1931, após as catástrofes naturais.

Homônimos

Passados tantos anos, novas dificuldades surgiriam. O soldado que confessou o crime já estava solto precariamente e foi determinada a sua localização pela Justiça. O então comandante-geral da Força Pública declarou nos autos que, segundo os registros da corporação, havia dois militares com o mesmo nome do suspeito e que somente seria possível obter informações sobre o verdadeiro réu por meio das características físicas do militar.
 
A identificação, naquela época, de fato não era tão simples. O primeiro Registro Geral (RG) emitido no Brasil data de 1907. Na época do crime, portanto, ainda era uma novidade. Os primeiros RGs traziam o nome, filiação e as impressões digitais, porém, uma vez que registros fotográficos eram raros, o documento tinha apenas a descrição física do cidadão com detalhes como cor da pele e dos olhos, marcas particulares e cicatrizes, profissão e endereço.

Prescrição depois de duas décadas

A Lei Federal 192, de 17 de janeiro de 1936, autorizou a organização da Justiça Militar nos estados e, em Minas Gerais, ela foi criada pela Lei 226, de 9 de novembro de 1937. Em 11 de setembro de 1942, o Ministério Público manifestou-se pela competência do julgamento do homicídio do soldado V.M.S. em São João do Vigia pela Justiça Castrense – nome que se dá à Justiça Militar –, tendo como fundamento a condição especial de tanto a vítima quanto o réu serem policiais.
 
Em 14 de setembro de 1942, o processo foi remetido do Vale do Jequitinhonha para a Justiça Militar com sede em Belo Horizonte, e foi distribuído na Corte em 23 de fevereiro de 1943 – um dia após o assassinato completar 20 anos. Em 3 de março daquele mesmo ano, há oito décadas e mais de duas décadas após a denúncia, o Conselho Permanente de Justiça acatou por unanimidade o parecer da promotoria, pela decretação da prescrição do processo-crime por excesso de prazo para julgamento. O soldado J.J.S. Se tornava um homem definitivamente livre.

Modernização

A evolução dos julgamentos militares foi grande desde aquele primeiro crime, avalia o presidente do Tribunal de Justiça Militar do Estado de Minas Gerais, o desembargador Rúbio Paulino Coelho. "Um homicídio simples tem pena de seis anos a 20 anos. Mas, se a pena é praticamente a mesma, as mudanças foram imensas com relação ao aspecto processual. Se o militar comete um crime contra outro militar, em 24 horas o auto de prisão em flagrante já está presente na Justiça Militar, em 24 horas já é de conhecimento do Ministério Público e a partir daí há toda uma transparência pela facilidade que se tem, com a tecnologia da informação, de os órgãos acompanharem tudo, passo a passo", afirma.
 
De acordo com o desembargador, atualmente o risco de prescrição praticamente inexiste. "Em primeiro grau, o processo todo leva aproximadamente um ano desde o inquérito, a denúncia, para que haja a audição das testemunhas e do indiciado, até o julgamento em si. Melhorou muito. Não corremos mais o risco de prescrição de crimes dessa natureza", atesta. Ao fim do ano, a expectativa, segundo o desembargador Coelho, é de que no momento em que um processo se inicie na Polícia Militar ou no Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais, a integração dos sistemas já possibilite a ciência do TJMMG.
 
Nos crimes que um militar comete contra um civil, o julgamento cabe monocraticamente ao juiz togado (Justiça comum). O Conselho de Justiça vai se fazer presente quando o militar comete crimes propriamente militares, como abandono de posto ou um crime contra a administração militar. O julgamento por crimes militares é feito no chamado "escabinato", que é a presença de um juiz togado, civil, e mais outros quatro militares, compondo, assim, o conselho que leva em conta a hierarquia e o combate à impunidade e à corrupção.


receba nossa newsletter

Comece o dia com as notícias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)