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Estado de Minas OLIMPÍADA

Vida de benzedor dos Arturos pode se transformar em prêmio

Resgate da caminhada de 'Seu Mário', que atua há 53 anos em Contagem, leva estudantes mineiros às finais de Olimpíada de História.


postado em 17/08/2019 06:00 / atualizado em 17/08/2019 07:59

Às vezes à sombra de uma pequena árvore, seu Mário faz atendimentos das 8h às 17h30. Dona Maria Auxiliadora está sempre junto do marido (foto: Paulo Filgueiras/EM/D.A Press)
Às vezes à sombra de uma pequena árvore, seu Mário faz atendimentos das 8h às 17h30. Dona Maria Auxiliadora está sempre junto do marido (foto: Paulo Filgueiras/EM/D.A Press)
Com o objetivo de mostrar a história não contada do país, a Olimpíada da História do Brasil, promovido pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), trouxe à tona a vida de um benzedor, Mário Braz da Luz, de 86 anos, integrante da Comunidade dos Arturos. E os responsáveis por dar luz a essa história são três alunos do Colégio Santo Agostinho Contagem: Ana Carolina Grip de Carvalho, Ana Luiza Reis Silva (ambas de 17) e Lucas Almeida Brandão, de 18, orientados pelo professor de História Robinson Vinicius de Oliveira Lage, de 39. O trabalho feito por eles está hoje na final do concurso, com grande chance de vitória.
E a história teve início há 53 anos, como conta seu Mário. “Eu não era benzedor. Um dia, minha irmã Juventina Paula, que era quem benzia, me chamou e disse que eu teria que fazer o mesmo que ela. Exclamei: Mas como, se não sei fazer?. Ela então disse que iria me ensinar. Ensinou uma reza e mandou que a benzesse. Quando terminei, ela disse que eu estava pronto e daí em diante, não parei mais”, explica.

Encontrar seu Mário não é difícil. Para chegar à comunidade dos Arturos, basta cortar o Centro de Contagem, indo em direção ao Bairro Vera Cruz, já na periferia da cidade. Uma placa anuncia a chegada aos Arturos. Descendo a rua de acesso, chega-se a uma capela. E, logo ao lado, um pátio de cimento, no meio de uma rua. Lá, numa cadeira de rodas, seu Mário” faz seus atendimentos. Próximo, uma fila de pessoas para ser benzidas. Mal uma pessoa é atendida, outra chega para a fila. É assim durante todo o dia. Às vezes, o número de consulentes chega a 100.

Para aguentar o ritmo, seu Mário segue uma rígida rotina. Levanta às 6h, toma café junto com a esposa, Maria Auxiliadora da Luz, de 82 (com quem está casado há 60 anos), e às 8h começa o atendimento. “Sempre que saio de casa, já tem gente me esperando. Fico aqui, quando está quente, debaixo da sombra dessa pequena árvore, mas nos dias frios, como hoje, fico no sol.” O atendimento é feito sempre até as 17h30.Seu Mário só para pra almoçar.

Ele explica que faz isso, esse tempo todo, por prazer e por fé. “Sempre fui devoto de Nossa Senhora e é ela quem me ajuda a ajudar as pessoas. Quem vem aqui também tem fé e crê em Nossa Senhora. Fico feliz com o que faço, que é um dom.” E a benzeção seguirá na família: o filho, Raimundo Luz, de 56, também segue os passos do pai.

Dona Maria Auxiliadora também está sempre junto do marido. Ela conta a história de amor dos dois. “Nós somos primos. O pai dele era irmão da minha avó. Naquela época não existia esse negócio de não deixar primo se casar com primo. Pelo contrário, por sermos de uma mesma família, havia uma confiança maior por parte dos pais. Assim, fomos abençoados por nossos pais e vivemos felizes desde então.”

MODERNIDADE No dia em que recebeu a reportagem, seu Mário também fez atendimento, via celular, no viva voz, de uma mulher que pedia ajuda para seu comércio, “Ninguém está entrando na minha loja, o movimento é muito pequeno, preciso de ajuda”, diz ela. Ele responde. “Vamos fazer uma oração e vou te passar uma receita para fazer aí na sua loja. Vai te ajudar.”.

Próximo estava a estudante Tatiana Vilaça Rangel, de 17, ansiosa para ser benzida. “Venho aqui desde pequena. Meu pai me traz. Saio daqui confortada e sem qualquer problema que estivesse tendo”, afirma. O pai, o vendedor ambulante Ronaldo Adilson Rangel, de 50, diz que seu Mário trata não só de doenças, mas resolve problemas particulares das pessoas também. “Eu, quando vim pela primeira vez, foi para pedir ajuda, pois tinha um inquilino que não queria sair da minha casa. Vim, pedi e fui atendido. Desde então, venho sempre aqui me benzer. É importante que todos saibam que a fé remove montanhas.”
 
Ana Carolina, Lucas e Ana Luíza destacam o envolvimento da comunidade com o trabalho (foto: Colégio Santo Agostinho/Divulgação)
Ana Carolina, Lucas e Ana Luíza destacam o envolvimento da comunidade com o trabalho (foto: Colégio Santo Agostinho/Divulgação)

De uma geração para outra
 
A Comunidade dos Arturos é formada por descendentes de escravos, que ainda preservam as mais belas tradições de danças, festividades e eventos religiosos. Sua importância é tanta que foi elevada à condição de patrimônio imaterial do estado de Minas Gerais.

Tudo começou com Camilo Silvério da Silva, escravo, trazido de Angola para o Brasil no século 19. Vendido para trabalhar na Mata do Macuco, hoje município de Esmeraldas, casou-se com uma escrava alforriada e teve seis filhos. Um deles era Artur, que por ter nascido após a Lei do Ventre Livre, não era oficialmente escravo, mas foi muito maltratado pelos seus patrões.

Um dia, insistiu para ir ao sepultamento do pai e acabou agredido pelo patrão. Fez então uma promessa a si mesmo: seus filhos viveriam sempre juntos. Mudou-se para Contagem, na área que passou a ser conhecida por Comunidade dos Arturos, no Bairro Jardim Vera Cruz. Lá estão todos os descendentes de Artur.

Ele se casou com Carmelinda. Tiveram 11 filhos, dos quais nove já faleceram. Seu Mário é um deles. Lá também vive seu irmão Antônio. Junto deles, mais 90 famílias. No Arturos, as tradições dos negros são preservadas, principalmente através de festas e celebrações, como a folia de reis, em janeiro, a festa da libertação dos escravos, em 13 de maio, e o reinado de Nossa Senhora do Rosário, conhecido como congado, em outubro.

A religiosidade, tradições e a herança do patriarca Artur são motivo de orgulho. No passado, a Comunidade funcionou também como entreposto, pois doces e colheita, assim como animais de corte, eram levados para lá, e dali vendidos na região central de Minas Gerais.

Persistência e brilho

Principal incentivador dos alunos Ana Carolina, Ana Luíza e Lucas Brandão, o professor Robinson Lage vibra com a oportunidade de a equipe disputar a fase final da competição. E revela que a persistência foi um fator fundamental. “Essa é a 11ª edição da Olimpíada promovida pela Unicamp. Estou no Colégio Santo Agostinho há 10 anos, mas somente há seis começamos a participar. Cada ano é um grupo diferente. Esta é a primeira vez que chegamos à fase final do evento”, destaca.

Ele conta que até a quinta fase do concurso o tema ainda não havia sido definido. “Quem participa da Olimpíada tem de cumprir requisitos. Desta vez fomos escolhidos para a fase final e só então definimos o personagem. A proposta é contar histórias de personagens brasileiros que não são conhecidos. Escolhemos um personagem atual, que tem, também, um passado a ser contado.”

Além disso, o fato de ser um personagem de Contagem, onde fica a escola, foi fundamental. “Seu Mário tem uma grande importância na Comunidade dos Arturos. Além de benzedor, ele é também rei do congado e um dos organizadores, junto com sua mulher, da Festa de Nossa Senhora do Rosário. É um personagem muito rico”, acrescenta Robinson.

O professor destaca que os três alunos integrantes do grupo são muito ativos e voltados para a pesquisa. Recentemente, estiveram em Portugal, pois participam também do Grupo de Dança Sarandeiros, projeto da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em parceria com o colégio. E essa parceria teve ligação direta com a escolha por seu Mário.

“Já havíamos tentado na competição do ano passado, mas ficamos na quarta etapa. Desta vez, aproveitamos que já tínhamos contato com o Sarandeiros, por causa de congado, e por serem descendentes diretos da cultura africana, em especial de Moçambique. E sabíamos sobre o seu Mário, nosso personagem. Ele é muito importante para a cultura deles e a Comunidade dos Arturos. Quando fomos lá para fazer o levantamento sobre o personagem, toda a comunidade quis participar. E agora estamos na final”, diz Ana Luíza Reis.

Orgulhoso, Robinson destaca que projetos como esses são importantes para fazer um resgate cultural do país. E já anuncia que seus alunos não vão parar por aí. “Eles já estão falando que vão disputar a Olimpíada de Geografia, também promovida pela Unicamp. O projeto da universidade é apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).


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