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Estado de Minas

Encontro de galerias em ângulo reto favorece alagamentos em Belo Horizonte

Estrutura perpendicular das galerias na confluência de córregos força o refluxo das águas durante as chuvas, diz especialista. Força-tarefa da PBH busca solução para evitar riscos


postado em 16/12/2018 06:00 / atualizado em 16/12/2018 07:55

Saída de galeria do Córrego Vilarinho, quando ele deixa de se canalizado: ao longo de seu percurso, manancial tem dois pontos de alto risco de alagamento (foto: Jair Amaral/EM/D.A Press )
Saída de galeria do Córrego Vilarinho, quando ele deixa de se canalizado: ao longo de seu percurso, manancial tem dois pontos de alto risco de alagamento (foto: Jair Amaral/EM/D.A Press )

A desembocadura direta – em ângulo reto (90°) – das galerias de córregos afluentes nos ribeirões principais é uma das causas para o refluxo de águas e alagamentos nas vias mais afetadas pelas chuvas em Belo Horizonte. Essa é uma das avaliações de especialistas, sobretudo observando a Carta de Inundações editada em 2009 pela Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap). Pelo documento, fica claro que é justamente no encontro desses corpos hídricos que as mais amplas manchas de alagamento ocorrem e não em pontos que podem estar obstruídos – ocasiões pontuais.

Situação nítida no Córrego Vilarinho, onde morreram quatro pessoas no mês passado, três numa dessas manchas de inundação, mas que ocorrem ainda nos ribeirões Arrudas (Avenida Teresa Cristina) e do Onça (Avenida Cristiano Machado), também conhecidos pelos alagamentos. “Essas confluências são complexas e é nas conexões que a condição é crítica. Isso tem influenciado o funcionamento das estruturas. São, usualmente, perpendiculares, quando o ideal seria que fossem como nas estradas, com uma transição com ângulos mais suaves” (confira infográfico), observa o engenheiro hidráulico e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Márcio Baptista. Força-tarefa da prefeitura busca soluções definitivas para evitar as enchentes.

(foto: Arte/EM)
(foto: Arte/EM)

Nas galerias subterrâneas, sob o asfalto por onde milhares de veículos transitam, ou ao largo das vias, em canalizações abertas, o fluxo intenso de águas das chuvas coletadas pelas drenagens engrossa o volume dos córregos que correm nesses dutos. No momento em que os afluentes avolumados deveriam desaguar no córrego ou ribeirão principal, essa confluência é tão direta que o fluxo d’água encontra um paredão líquido que não permite seu ingresso na galeria adiante, provocando um aumento do nível e refluxo com consequentes alagamentos que emanam desses pontos. “Uma obra para melhoria dos ângulos é bastante complexa, sobretudo porque as áreas de desvio das galerias para criar uma confluência mais suavizada podem requerer intervenções em outras onde há construções e que precisariam ser desocupadas ou indenizadas”, observa o professor Márcio Baptista, prevendo custos elevados para essas soluções.

No trecho da Avenida Vilarinho entre a Rua Bernardo Ferreira da Cruz e a Avenida Cristiano Machado, que engloba a Estação Venda Nova e o viaduto da Avenida Dom Pedro I e onde morreram três pessoas nas chuvas e alagamentos de 15 de novembro, a galeria do Córrego Vilarinho recebe as águas de nada menos do que quatro outros mananciais vindos de estruturas subterrâneas. Nesse trecho, por onde passa também a galeria do Córrego dos Borges ou 12 de Outubro, sob a Rua Doutor Álvares Camargos, morreram três pessoas: a estudante Anna Luísa Fernandes de Paiva, de 16 anos, que caiu numa grelha aberta na Rua Doutor Álvares Camargos ao deixar o carro no meio do alagamento; Cristina Pereira Matos, de 40, e a sua filha, Sofia Pereira, de 6, que perderam a vida afogadas, abraçadas dentro do carro submerso no alagamento da Avenida Vilarinho.

A reportagem do Estado de Minas sondou com câmeras as grelhas e outros acessos ao Córrego Vilarinho dentro dessa região e todas as confluências avistadas, tanto de dutos de drenagem das chuvas (pluviais) – que também podem sofrer refluxo e causar alagamentos – quanto das galerias de afluentes (fluviais), tinham desembocaduras diretas e perpendiculares nessa área. A mancha de inundação ali é de quase 100 mil metros quadrados num trecho de 1.150 metros, que conta com 16 cruzamentos, segundo a Carta de Inundações de BH. Os alagamentos chegam a se abrir por até 160 metros de largura na avenida.

O efeito dessas confluências de geometria perpendicular é sentido em toda temporada de chuvas pelos comerciantes. Em15 de novembro, quando as águas do Córrego Vilarinho começaram a inundar as vias, o estoquista e vendedor Álvaro Rafael Dávila Resende Oliveira, de 21, trabalhava numa loja de peças de veículos. Segundo ele, os funcionários começaram a subir as portas de aço e a instalar as comportas metálicas para evitar que a água entrasse nos estabelecimentos. Dentro da loja, os momentos foram de tensão. “Começamos a levantar todos os produtos para cima de balcões e locais altos para evitar que a água chegasse neles. O medo ficou ainda maior quando a água bateu na cintura e vimos que a enxurrada do lado de fora estava pressionando as portas. Ficamos com medo, porque não conseguíamos sair. A força da água era tão grande que entortou as comportas e as portas”, lembra. “Todo mundo sabe que aqui é onde as enchentes são piores por causa do encontro dos córregos com o (Córrego) Vilarinho. Já passou da hora de a prefeitura fazer algo, porque todos os anos é a mesma coisa e ainda tivemos mortos desta vez”, disse.

Álvaro Ferreira passou pelo susto de ver a água subir, invadir a loja onde trabalha e chegar até sua cintura(foto: Edésio Ferreira/EM/D.A PRESS)
Álvaro Ferreira passou pelo susto de ver a água subir, invadir a loja onde trabalha e chegar até sua cintura (foto: Edésio Ferreira/EM/D.A PRESS)


Duas frentes contra os danos


As dificuldades recorrentes que a população belo-horizontina enfrenta durante a estação chuvosa ficaram expostas no incidente que provocou a morte de quatro pessoas na Avenida Vilarinho, em 15 de novembro, levando a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) a atacar o problema em duas frentes inéditas no município. Por um lado, foi criada uma força-tarefa para se debruçar sobre o assunto e apresentar soluções de engenharia e arquitetura, com garantias orçamentárias do prefeito para que sejam implementadas. A outra é a abertura a profissionais do mercado para que tragam sugestões e seus conhecimentos e colaborem com saídas para que as drenagens não mais vitimem cidadãos.

O prefeito Alexandre Kalil criou, por meio do Decreto 17.016, de 20 de novembro de 2018, um comitê com o objetivo de coordenar as medidas de emergência em decorrência dos danos causados por intensa chuva na Regional Venda Nova, com foco especial na Avenida Vilarinho. O comitê deverá apresentar até quinta-feira (20/12) propostas de soluções preventivas, reparadoras e definitivas para as inundações, alagamentos e enxurradas na região da Avenida Vilarinho. “Neste momento, uma equipe multidisciplinar constituída por especialistas do corpo técnico analisa os estudos já realizados sobre a hidrografia e o comportamento pluviométrico da região e avalia as possíveis alternativas de engenharia para solucionar o problema de inundações na Avenida Vilarinho”, informa a Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap).

O órgão informa também que a PBH está aberta para soluções que vierem de fora, algo que não consta no histórico recente de ações para resolver os problemas das chuvas na cidade. “Os especialistas que quiserem contribuir voluntariamente com proposições, estudos e análises técnicas podem entrar em contato diretamente com a Sudecap”, ressalta a superintendência.

O sistema de monitoramento hidrológico, que começou a operar em outubro de 2011, é utilizado pela administração municipal para evitar que as inundações façam mais vítimas. A PBH explica que esse sistema, “descrito detalhadamente no Plano Municipal de Saneamento”, é composto por 42 estações, sendo quatro climatológicas, 11 pluviométricas e 27 fluviométricas. Os dados obtidos pelos sensores são transmitidos de 10 em 10 minutos”, informa a administração municipal.

Na região do Córrego Vilarinho funcionam duas bacias de controle de cheias (Liege e Vilarinho). “Essas estruturas passam por manutenção e limpeza periódica por parte da Sudecap. Este ano, foram retirados, por meio dos serviços de limpeza e manutenção, 23 mil metros cúbicos de sedimentos nas duas bacias. Nos últimos anos também foram realizados tratamentos de fundos de vale dos córregos das avenidas Baleares, Virgílio Melo Franco, Camões, Várzea da Palma e Bacuraus, “com o objetivo de reduzir riscos de inundações nessas regiões”, informa a superintendência.

Dados

 

42 - Total de estações de monitoramento hídrico em Belo Horizonte

10min - Intervalo de tempo entre as transmissões de dados



Turbulências subterrâneas


A vazão atual do Rio São Francisco no seu vertedor da Barragem de Três Marias é de 100 metros cúbicos por segundo. Esse volume, que despenca de uma altura de 75 metros como uma massa branca e volumosa no maior rio de Minas Gerais, é o mesmo que as drenagens subterrâneas da galeria da Avenida Vilarinho e de seu afluente na Avenida Doutor Álvaro Camargos suportam nas chuvas. Foi num turbilhão de água que superava as dimensões da galeria da Álvaro Camargos na tempestade de 15 de novembro que a estudante Anna Luísa Fernandes de Paiva, de 16 anos, acabou sendo tragada por um acesso aberto dessa via, logo depois de ter abandonado o carro do namorado que tinha ficado preso pela enchente. A reportagem do Estado de Minas foi até esse ponto para sondar com uma câmera a galeria, que levou a estudante por um trajeto escuro e turbulento de cerca de 3.220 metros até o local onde seu corpo foi encontrado, no dia seguinte, numa das margens do Córrego Vilarinho, que corre em leito aberto no Bairro Xodó Marise, em Venda Nova, na altura da Rua das Gaivotas.

Trecho a céu aberto do Córrego Vilarinho em Venda Nova. Na região está a principal mancha de inundação do manancial, com risco maior em trecho subterrâneo(foto: Jair Amaral/EM/D.A PRESS)
Trecho a céu aberto do Córrego Vilarinho em Venda Nova. Na região está a principal mancha de inundação do manancial, com risco maior em trecho subterrâneo (foto: Jair Amaral/EM/D.A PRESS)


Um dos motivos de a galeria ultrapassar tão repentinamente o volume-limite, segundo a Carta de Inundações de Belo Horizonte, é que em cerca de um quilômetro entre o local onde a jovem foi tragada, na Rua José Sanguinete, e o cruzamento com a Avenida Vilarinho há uma confluência de seis córregos. Pela carta, essas confluências se dão de forma direta e em geometria perpendicular, uma forma que o engenheiro hidráulico e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Márcio Baptista afirma ser propensa a causar inundações. “As galerias precisam de conexões mais suaves nas suas confluências e não é isso que ocorre na maioria das estruturas, causando esses alagamentos”, disse o professor.

Sob a grelha de aço que foi arrancada no dia da tempestade, a água do Córrego dos Borges (também chamado de 12 de Outubro) chega imersa na escuridão de uma galeria de concreto de cor amarelada e só reaparece na altura dessa abertura, que permite a entrada da luz solar. A altura dessa canalização chega a 2,60m e é intercalada por vários pilares. A largura é de 7,10m e acaba sendo permeada por vários obstáculos, confluências de outras galerias que chegam em degraus e por aberturas que parecem janelas diretas, bem como manilhas que despejam a água que vem dos bueiros e bocas de lobo das ruas e passeios. É difícil imaginar que um curso de água tão raso fora das chuvas, que é capaz de molhar apenas o tornozelo de uma pessoa, possa se agigantar ao ponto de engolir os carros das duas avenidas causando caos e mortes.

A galeria dessa via percorre, ainda, cerca de 960m até chegar à da Avenida Vilarinho, que também é subterrânea, seguindo por outros 960m antes de desaguar num leito a céu aberto e mais largo, com mais de 20m, contido por módulos de redes metálicas preenchidas por pedras, os chamados gabiões, no Bairro Xodó Marise.

(foto: Arte/EM)
(foto: Arte/EM)


No trecho da Avenida Vilarinho entre as ruas Maria Helena Felipe e a Elias Antônio Issa se encontra a segunda mancha de inundação de grande porte, que chega a abranger uma área de 30 mil metros quadrados, bem na confluência com os córregos Candelária (subterrâneo) e da Avenida Baleares (aberto). A força das águas das últimas chuvas foi tão forte que abriu crateras no asfalto da Rua Elias Antônio Issa, onde o Córrego Candelária é canalizado. O comerciante Manuel da Costa Ribeiro, de 38, conta que as inundações são recorrentes e cobra da prefeitura compensações até que os problemas sejam resolvidos. “Arcamos com prejuízos toda vez que chove, somos pacientes, mas acho que deveríamos ter alguma compensação, como um desconto no IPTU, por exemplo. Isso daqui é um encontro muito malfeito de córregos. Lembro-me daqui quando era tudo aberto (leito a céu aberto). Fecharam (a galeria), mas não resolveram o problema”, disse.

Segundo o professor da UFMG Márcio Baptista, além de alterar a geometria das confluências dessas galerias outras medidas seriam necessárias. “No caso da Vilarinho seria preciso fazer também um controle na bacia hidrográfica e melhoria das canalizações”.

Sondagem feita com câmera em galeria do Córrego Borges, tributário do Vilarinho, revela os ângulos retos do perigo(foto: Mateus Parreiras/EM/D.A PRESS)
Sondagem feita com câmera em galeria do Córrego Borges, tributário do Vilarinho, revela os ângulos retos do perigo (foto: Mateus Parreiras/EM/D.A PRESS)


Risco ampliado pela sujeira


A galeria aberta que permite o escoamento do Ribeirão Arrudas na altura dos bairros São Paulo e Betânia (Região Oeste), pela Avenida Teresa Cristina, tem uma capacidade robusta, de 400 metros cúbicos por segundo, mas, ainda assim, o histórico de inundações com muitos prejuízos é frequente. No trecho limítrofe com Contagem, na altura da foz do Córrego Ferrugem, vindo do município vizinho, o ângulo de confluência do afluente é perpendicular e por isso as enchentes são frequentes. “O (Córrego) Ferrugem é um exemplo nítido de quando você tem uma confluência entre galerias com ângulos que precisariam ser suavizados. Esse tipo de obra preveniria os volumes mais expressivos de chuvas e enchentes”, avalia o professor da UFMG Márcio Baptista. Os prejuízos que as cheias do Arrudas impuseram à sua comunidade ainda trazem apreensão para o maçariqueiro Geovane Figueiredo, de 21 anos. “No ano passado, a força da água arrancou o asfalto todo e inundou as ruas. Prejudica mais pelas crianças, que ficam sem ter como passar para ir à escola”, afirma.

No Ribeirão do Onça, na Avenida Cristiano Machado, entre o Beco Marechal Rondon e a Rua Elétron, a água chega a abranger 50 mil metros quadrados quando ocorrem enchentes. No local aparece um outro causador desses problemas, além da geometria das confluências: o lixo e o entulho descartados de forma irregular pelas ruas. “Especialmente quando a intensidade da chuva é alta, ou seja, com grandes volumes em pouco tempo, o lixo e entulho contribuem muito para a redução da capacidade das drenagens”, observa o presidente do Instituto Brasileiro de Avaliações e Perícias de Minas Gerais (Ibape-MG), o engenheiro Clemenceau Chiab.

A impermeabilização do solo também contribui significativamente para que a água das chuvas percorra grandes distâncias escoando diretamente nos grandes canais de córregos e ribeirões, segundo o presidente do Ibape. “A água das chuvas deixa de se infiltrar no terreno natural, com absorção mais lenta, e escoa quase que em sua totalidade diretamente para as partes mais baixas da cidade, contribuindo sobremaneira com as inundações”, afirma. “A única solução que vejo é um controle rígido de ocupação (pela população) das áreas das bacias de contribuição desses pontos críticos e a elaboração de estudos robustos.”

Fantasma afugentado


Corpo hídrico do Cardoso, onde obras barraram enchentes que assombravam a população(foto: Edésio Ferreira/EM/D.A PRESS)
Corpo hídrico do Cardoso, onde obras barraram enchentes que assombravam a população (foto: Edésio Ferreira/EM/D.A PRESS)

Um caso de confluência que foi suavizada depois de dois anos de obras foi na Avenida Mem de Sá, Bairro Santa Efigênia, onde corre a galeria do Córrego do Cardoso, corpo hídrico que nasce no Aglomerado da Serra, entre as Regiões Leste e Centro-Sul de Belo Horizonte. As enchentes lá eram frequentes e a obra seguiu junto com a urbanização do aglomerado e do programa habitacional Vila Viva, entregue em 2008, ao custo de R$ 170 milhões, que contava também com duas bacias de contenção para drenar as águas das chuvas.

Desde então, ninguém mais ao longo da via teve prejuízo outra vez com as cheias do Córrego Cardoso. O açougueiro Edson Braga Guimarães, de 64 anos, lembra-se dos perigos que passou nas quase cinco décadas de trabalho na Mem de Sá. “A rua virava um rio. Desciam carros embolados uns nos outros, motocicletas, era um perigo. Chegou a entrar um metro de água dentro do açougue numa época e a cheia até matou uma pessoa dentro da casa dela. As galerias entupiam. Mas as chuvas agora estão mais controladas. Estamos bem mais calmos. Com a melhoria da galeria arrumou tudo”, disse o açougueiro.


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